segunda-feira, 29 de maio de 2017


Um oficial em Moçambique - 2
Resposta à letra!

Dos três chefes negro-árabes que no interior de Angoche durante meio século suces­sivamente se opuseram, entre 1855 e 1903, à soberania portuguesa, cada um tinha o seu feitio. Mussa-Momade-Sabo, por abreviação Mussa-Quanto, o primeiro, grande político e hábil general, manifestara-se realmente magnânimo. O segundo Üsseni-Ibrahimo, ou «Mènhênhuà», deixara recordação da sua crueldade. Farelay, o terceiro e último, era, acima de tudo, insolente. E quando se certificou de que o novo capitão-mor, ape­sar de vir expressamente do reino, não trazia soldados, para logo de entrada o achincalhar e assim o impedir de ganhar prestígio, encarregou o Muápála-muno, em audiência pública, de dizer-lhe “que preparasse a melhor cama na Residência porque ele Farelay dentro de poucos dias nela se iria deitar”.
O Muápála-muno, pequeno régulo situado a trez legoas da vila, não, ousou, é claro, levar o recado ao Parapato (que depois se chamou Angoche, António Enes e hoje é Angoche). Mas sabendo que o recém-chegado todas as tardes saía a cavalo e prevendo que breve o veria em Nhamuápála, não se esquivou á incumbência e prometeu ao Farelay que, se tivesse ensejo não deixaria de comunicar a mensagem. E, se bem o disse, melhor o fez. Como o capitão-mór, de facto, lhe aparecesse em casa logo no dia seguinte, Muápála-muno, habilissimo diplomata, a meio da palestra, dando informações sobre o Farelay, repetiu com o melhor dos seus sorrisos, a insolência do rebelde.                              
Aos 28 anos a paciência não é muita. Na volta de Nhamuápála ao Parapato o capitão-mór foi todas aquelas trez légoas cogitando na melhor maneira de responder ao desafio.
Amor com amor se paga. O Farelay mandava-lhe preparar a cama para nela se deitar? Não lhe enviava resposta alguma. Mas iria fazê-lo levantar da sua própria. E iria já amanhã, visto não haver tempo para partir hoje mesmo. Se o prendesse seria ópti­mo; liquidava-se a campanha e a contenda. Se o matasse, as consequências seriam às mesmas. Se ele escapasse, ao menos fica­ria desprestigiado.
Havia outras probabilidades contrárias, mas com essas não se prende gente de espada.
Da tropa, havia um alferes e vinte praças. Era pouca gente para visitar tamanho sobe­rano na sua capital. Mas os novos cipaes já com quinze dias de recruta intensiva, aumentavam a hoste. E como se tratava de um ataque de surpresa, a fazer de madrugada, após uma marcha de noite, o adversário não teria tempo de concentrar o êcôto (brigada) de 300 homens que sempre o acompanhava.


Parapato, hoje Angoche; 
no retângulo, localização aproximada da aringa do xeque Farelay
(Clique na imagem para ampliar)

Amadurecido o plano, guardou-o para si. Do Parapato a M’zeia eram só 7 légoas e o telégrafo em África é rápido nas transmissões. Tinha ido sózinho a cavalo, a Nhamuápála. Ninguém mais ouvira o insulto. Ninguém, por­tanto, nem mesmo à última hora, poderia prescrutar-lhe o desígnio. Só às cinco horas da tarde no dia seguinte começou a expedir as ordens e ainda assim com a maior reserva. Sob se­gredo, determinou ao capitão comandante da 6a companhia que às 9 e meia da noite lhe mandasse apresentar o alferes com todas as praças disponíveis: 20 homens, como ele já sabia.
Obrigado moralmente, por compromisso anterior para com dois brancos, o tenente-secretário e o destemido chefe da alfândega a levá-los consigo quando pela primeira vez saísse para o mato em qualquer empresa, convidou-os para jantar e os preveniu.
Para despiste resolveu fazer parte do trajeto embarcado, pelo Sucubir, (que desagua em frente a Angoche) mas dizendo que ia para o Sul.
A maré enchia até à uma hora, as lan­chas estavam a nado na testa da ponte, os remadores dormiam no quintal: por aí não haveria empeno.
Às oito mandou chamar Üsseni-Câximo, comandante dos cipaes, e ordenou-lhe que reunisse imediatamente metade da sua gente, outros 20 homens.
Tudo saiu certo, e ás dez horas a expedi­ção largava em duas lanchas e um escaler velejando para o Norte: 4 brancos, 4 monta­das, 20 soldados landins, 20 cipaes, nenhuma bagagem.
Primeiramente navegou-se, depois marchou-se toda a noite sem ver ninguém, que em África não há outros noctívagos senão feras. Às 5 horas da manhã o primeiro cla­rear da alvorada permitiu ver na frente a três quartos de légoa, a colina da M’zeia com a povoação do Farelay na crista. Encurtou-se o passo na testa para facilitar a reorde­nação da coluna, fatalmente alongada durante a noite a despeito de todos os cuidados. Mal se tinha normalizado a marcha, ouviu-se se de repente o clássico sinal do alarme macua, o báu-áu-áu um grito agudo entrecortado pelo bater da palma da mão contra os beiços. Era uma escrava que descendo a colina a buscar água, ouvira no silencio da manhã o tilintar das armas e a estrupida dos cavalos.
A surpresa estava frustrada. Espada alta, os quatro brancos montados carregaram encosta arriba direitos á povoação, seguidos pela gente de pé a marche-marche, O báu-áu-áu estrugia de todos os lados. Soou uma palapata. Berravam cabras. Estalaram os primeiros tiros, poucos porque o êcôto estava disperso nas massassa (abrigos de campanha).
As palhotas foram encontradas vazias. No terreiro da povoação, aparvalhados, um velho e duas velhas. Já se ouviam mais tiros. Urgia concentrar. No terreiro fez-se a reunião. Seguiram-se: o saque, o incêndio, e o início da marcha de regresso.
Duas légoas ao sul da M’zeia, em terreno bem aberto e à beira de um regato, armou-se o bivaque para merecido descanso, das 8 horas da manhã às 3 da tarde. Cozinhou-se e dormiu-se por quartos, metade da gente, brancos e pretos, sempre em armas. Mas não houve novidade. Só mais tarde se veio a sa­ber que o fator psicológico da paralisia na reação fôra precisamente o contraste fla­grante entre a propaganda depreciativa do novo capitão-mor, que o Fareley fizera, e a conduta ousada dos portugueses. Tanto o caudilho rebelde, como os seus sequazes, fica­ram tão apreensivos com o receio de uma repetição do caso, sem precedentes, que nunca mais, durante três anos, consentiram em se quedar a menos de três dias de mar­cha de quem «saltava de noute como o tigre».
E como o capitão-mór, no decurso do seu governo, retraçou o território com itinerários que excederam cinco mil quilómetros, muitas e alongadas foram as marcas de quadrilha que o seu fusco opositor deixou, ora avançando em direção do litoral, ora retirando até ás fronteiras do Nyassalanda.  
A pequena coluna no seu regresso teve o último alto horário em Nhamuápála. Paragem de um quarto de hora; todos estavam moídos.
Ao preparar para montar, o capitão-mor, que o Muápála-muno tornado solicito não abandonava um momento, virando-se para o régulo observou-lhe: «Dize ao Farelay que a sua quitanda não prestava para nada, por isso a queimei; a minha cama é muito melhor, que venha, pois, deitar-se nela, que eu cá o espero no Parapato. E se lhe fizerem falta a cabaia, a bura e o alfio que ele deixou quando fugiu de mim semi-nu para o meio do mato, que vá lá buscá-las também, à Residência, porque fui eu próprio por minhas mãos que as filhei na sua palhota.»
A minúscula força poz-se novamente em marcha e entrou no Parapato depois das 10 da noite.
O seu comandante não sabe bem como correram as cousas nas 3 légoas daquela última parte do trajecto. Disseram-lhe depois, o tenente-secretario e o chefe da alfândega, que ele tinha vindo todo o tempo dormindo a sono solto, mesmo a cavalo; e que, para lhe evitar uma queda, no caso de se desiquilibrar, tinham cavalgado a seu lado estribo contra estribo.
Aos 28 anos essas cousas acontecem, e passada a tensão do momento a natureza impõem-se... e dorme.

Glossário:
Cabaia – Roupa de luxo, normalmente de seda, usada pelos chefes.
Bura e alfio – serão outros instrumentos de chefe
Mujojos – indivíduos, árabes ou arabisados, de nobreza local

Fonte: “Escola de Mouzinho” – Eduardo Lupi, Lisboa - 1929


28-05-2017

Nenhum comentário:

Postar um comentário