segunda-feira, 26 de junho de 2017



O Império Português
500 anos... ???

Texto polémico o que se segue. Mas o que há de melhor do que polemizar... para mais nos compreendermos e entendermos? Polémico e o resumo do resumo!
É sabido que em 1483 Diogo Cão chegou à foz do rio Zaire, onde tomou conhecimento de um potentado africano, o Manicongo. Desembarcam e são festivamente recebidos pela população. Para não interromper a viagem de exploração do Atlântico, segue para o Sul até ao Cabo de Santa Maria, mas manda emissários ao rei do Congo. No regresso não encontra os emissários e leva alguns congoleses até Portugal. Regressa no ano seguinte, trazendo de volta os africanos que levara, e é ele quem vai cumprimentar o rei do Congo, na sua embala, a cerca de 200 quilômetros da costa. O reino englobava algumas áreas a que depois se deram nomes “europeus”: ducados, marquesados e condados.
Para ajudar o novo “irmão” do rei D. Manuel, não tardou a que soldados portugueses tivessem que entrar em guerras entre os vários nobres da região, procurando que entre todos houvesse paz. Portugal queria parceiros comerciais e só com paz haveria comércio. Jamais houve.
Entretanto, um pouco a sul, o N‘Gola, sabendo do convívio dos portugueses com o rei do Congo, manda uma mensagem ao rei de Portugal pedindo-lhe missionários. E vai Paulo Dias de Novais, como embaixador, acompanhado de quatro missionários, desembarca em Luanda e segue ao encontro do chefe indígena. Já não era o que tinha escrito a carta, mas um filho seu. Paulo Dias acaba prisioneiro durante cinco anos!
E as guerras entre os vários sobas e destes com os portugueses, não acabam nunca. Ora se alinhavam de um lado ora de outro.
Sem que se conheçam as suas procedências e suas histórias, algumas centenas de portugueses já se haviam espalhado por Angola, negociando diretamente com os povos indígenas. Desde o Congo até Benguela, e para o interior, esses foram, por sua conta e risco, os primeiros europeus a habitarem a África negra.
Por influência destes e de alguns relatórios dos jesuítas, em Portugal era grande o sonho da prata que Angola teria. Nunca teve.
Em 1498, a caminho da Índia, chegam os portugueses a Moçambique. O objetivo desta viagem era muito mais importante do que o hipotético comércio com Angola. A Índia e as suas especiarias, negócio altamente rendoso, na Europa nas mãos de venezianos e genoveses e nos mares até à Europa com os árabes, muçulmanos, inimigos da cristandade, que havia pouco tinham sido despejados da Península Ibérica. O objetivo era tomar esse negócio das suas mãos, e fazer de Lisboa o centro de distribuição dessas especiarias para toda a Europa.
Em Moçambique, a Ilha, era o ponto obrigatório de passagem de todos os comércios com a Índia, e apesar de pequena, era já povoada por árabes e macuas islamizados. A partir desta visita, Portugal consegue uma pequena parte, cria uma Misericórdia para aí deixar doentes, e ter o seu apoio logístico.
Começa a ganância. Naus cada vez maiores e com mais naufrágios, em poucos anos o custo da “Índia” era superior ao seu rendimento e, além de se endividar, Portugal começou por proibir a instalação de colonos nas terras a que se outorgou possuidor, por terem sido “descobertas” pelas suas caravelas.
Assim que o Brasil se mostrou colonizável, Angola passou a viver do negócio da escravatura. Escravos era a principal “mercadoria” que todos encontravam em África. Além disso, Angola, pouco mais tinha: um pouco de cera, para iluminação e para as igrejas, um tiquinho de marfim, e prata... zero.
Na costa Oriental, tudo quanto Portugal pretendia era ter livre o acesso ao Monomotapa. Ao ouro do Monomotapa! Nada de colonizações. Mas arrogava-se o direito de ser senhor das terras primeiro visitadas e depois daquelas em que, em permanência, se batia com os árabes, ali instalados há vários séculos, para garantirem o comércio do precioso metal, e para combaterem o negócio de escravos.
Além do ouro tinha muito marfim, normalmente enviado para a Índia onde era trabalhado por artistas artesãos. Da Índia saíam os principais produtos que serviam de troca com o nativo moçambicano.
E durante séculos as colônias africanas era “propriedade” dos reis de Portugal, mas limitadas a uma pequena faixa de terra litorânea e a algumas capitanias em portos onde pudesse haver negócio.
Lourenço Marques “descobre” a “Baía da Lagoa, que mais tarde teve o seu nome, mas onde durante uns dois séculos não residia nem um único português ou colono.
Foi assaltada por austríacos, ingleses e franceses, porque ali o negócio de marfim era importante. Mas sempre Portugal reclamava que aquelas terras lhe pertenciam porque fora o primeiro a descobri-las!
Em 1781 o ministro Martinho de Melo e Castro mandou povoar o interior de Sofala, porque na fortaleza só havia uma dúzia de famílias portuguesas, todas já mestiçadas ou de origem goesa. Em 1885 Gungunhana afirmava ao Conselheiro Almeida que a fronteira portuguesa passava a duas léguas de Sofala e para o interior o território era dele.
Em Angola a situação diferia um pouco, mas todo o interior pouco mais gente tinha do que um outro sertanejo como o famoso Silva Porto.
Na Zambézia, Portugal criou uma invenção curiosa: para poder arrecadar mais algum imposto passou a conceder “Prazos”, praticamente sempre a famílias mestiças e/ou também de origem goesa, mas neles não exercia nenhum domínio.
As lutas sustentadas contra os nativos não foram provocadas, até final do século XIX por lutas entre portugueses e africanos, mas por necessidade de apoiar um ou outro régulo afim de manter a paz no interior e assim o comércio poder fluir.
É o olho gordo dos ingleses que querem as melhores regiões de África para expandirem a sua “religião” comercial que provocam grande instabilidade. Estavam em plena revolução industrial e descobriram que só para cima de Moçambique havia mais de quarenta milhões de africanos que não usavam calçado nem camisa, o que pressupunha uma imensa possibilidade de negócio.
A partir daí, quando os portugueses, que tanto em Angola como em Moçambique sempre tinham precisado da autorização dos sobas e régulos para comerciarem, o que implicitamente reconhecia a soberania destes, a Conferência de Berlim, estimulada também pela ganância do rei dos belgas, determina que só ficam com direito a terras em África os países que os ocupem militar e administrativamente.
Virou-se o jogo. Agora eram os sobas e régulos que dependiam de Portugal, e isso foi um imenso desastre.
Portugal que até essa altura não admitia, sobretudo em Moçambique, colonizar esses “seus” territórios, começou a “vendê-lo” em parcelas. E mais, se não admitira nunca estrangeiros, teve que os ir buscar, porque, sempre pobre e endividado, não dispunha de capitais para desenvolver as “novas” colônias.
E assim nascem a Companhia dos Diamantes de Angola, com capitais portugueses (pouquíssimo), mas de maioria belgas, americanos, ingleses e sul-africanos, a Companhia Agrícola de Angola - CADA -  financiada por capitais belgas, em Moçambique as Companhias Majestáticas como a Cia. de Moçambique, Cia. da Zambézia, Cia. do Niassa, Cia. do Boror, todas com capitais estrangeiros, que quando viram que o negócio agrícola não era rentável, começaram a vender trabalhadores para as minas de ouro da África do Sul, e outras várias.
Depois lembrou-se de fundar o Banco Nacional Ultramarino, visando o desenvolvimento colonial, mas que se verificou ter sido um elemento de falência para os incautos e entusiastas que se lembraram de a ele recorrer para a agricultura.
Angola rendeu, sobretudo para os traficantes, enquanto floresceu a escravatura, em Moçambique lutava-se contra esse tráfico. O Brasil já independente teimava em traficar e, como sempre, os contrabandistas e desonestos, conseguem durante muito tempo ainda negociar, vergonhosamente, gente.
No século XIX e Portugal, sempre pobrezinho e mal governado, decide defender as colónias, sobretudo das forças de países europeus, e luta sobretudo contra os alemães.
As poucas e mal pagas e mal treinadas tropas da metrópole, auxiliadas por soldados africanos lutaram valentemente. Foi a época dos heróis, brancos e negros, que procuravam pacificar os territórios que lhe foram “oferecidos”!
O século XX abre os olhos da metrópole e começa a desenvolver-se Angola e Moçambique, já sem recursos a escravaria, marfim, ouro ou a imaginada prata, sempre por iniciativa privada, e não por ação e planificação do “reino”, que nem no pequenino espaço europeu se entendia.
Este surto de desenvolvimento, que cresce de forma importante sobretudo a partir do final da II Guerra Mundial, marca profundamente a economia dos dois países que, logo a seguir ascendiam à sua independência.
O que é inimaginável para qualquer outro povo é que o grande surto de desenvolvimento se dá com o começo da guerra colonial, a partir de 1961.
Em 1974 acabam as colónias.
Os 500 anos tão badalados sumiram na bruma do tempo.
Em todo o lado por onde andou Portugal deixou a sua marca própria de convivência, desde Cabo Verde a Timor, Malásia, Indonésia e Índia, e sobretudo em Angola e Moçambique.
Não foram 500 anos de ocupação ou colonização. É um sofisma chorarem os portugueses pelos cinco séculos que “perderam, assim como o é também dos africanos dizerem que sofreram cinco séculos de dominação.
Ainda hoje, em Angola o nome mais respeitado de governante daquela terra, incluindo todos os que vieram depois da independência, é o de Dom Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho.
Por Moçambique também passaram grandes homens: Mouzinho, Freire de Andrade, João de Azevedo Coutinho, e outros.
Os sofismados “500 anos” foram, isso sim, cinco séculos de muita vivência, convivência, apesar de haver páginas tristes, como sempre houve em todo o lado e, infelizmente, continuará a haver.
Cada vez que se falar em “500 anos em África” devemos celebrá-los como sendo “500 anos a conviver” com irmãos mesmo que por vezes desavindos.
Eu estive por lá pouco mais de vinte.
E como guardo toda aquela África no coração.

12/07/2017



segunda-feira, 19 de junho de 2017



Um oficial em Moçambique - 5

O “nosso” heroi

Nasceu em Alter do Chão, a 3 de Feve­reiro de 1865.
Sentou praça no regimento de Cavalaria 4 em 13 de Outubro de 1880, cursou a Politécnica e passou a aspi­rante da Armada em 10 de Novembro de 1882, sendo promovido a guarda-marinha dois anos depois, a 29 de Setembro. Ainda não era oficial e já andava pela África, fazendo levantamentos no rio Muíte, defronte da ilha de Moçambique. Comandou, como guarda-marinha, na­quela colónia, os iates de vela “Luzio” e “Tungue”, e depois as canhoneiras “Maravalt e “Cherim” da esquadrilha do Zambeze, o vapor “Auxiliar”, e mais tarde a “Liberal” e o transporte “Salvador Correia”. Em 1885 combateu o régulo Sangage, que avassalou. Contava, então, vinte anos. Continuou a sua acção no Moguinquale e no Infusse.
Comandou a “Cherim” quando Serpa Pinto chegou à África com a sua missão encarregada de operar pelo lado do Zambeze, Chire e Ruo, nas vésperas do ul­timato. O fim da expedição consistia em manter o predo­mínio português naquelas regiões onde os ingleses iam captando alguns régulos e entre eles o de macololos.
Em 1889 foi encarregado de reduzir aqueles povos à obediência, em Chilomo, onde o gentio se entrinchei­rara. A tripulação da “Che­rim” compunha-se de dez brancos e trinta e quatro negros, que chegaram para vencer os rebeldes. O moço comandante viu o seu chapéu varado pelas balas. Os indígenas admirados pela vitória, espalharam a sua fama e passou a ser conhecido por Musungo Icuro ou M'Pezene. Tomou a seguir as terras de Massea e Katunga; aprisionando o filho do soba e logo o régulo Gambi, estendeu o domínio português do Ruo ao Milange.
Portugal celebrou as suas vitórias e o nome do bravo tornou-se ilustre. Comandara vinte ações militares. O consul inglês Johnston, declarou que os macololos estavam sob a protecção britânica e pretendeu impedir o avanço dos expedicionários, o que não conseguiu. Nasceu desta questão o ultimato. O seu nome ressoou mais intensamente e o Parlamento proclamou-o
“Benemérito da Pátria”, tinha vinte e quatro anos!
Paralisadas as operações em virtude das exigências britânicas, ficou comandando as forças a fim de manter a neutralidade. Nomeado para vingar no Mataca a morte do tenente Valadim, cumpriu o seu dever e, no ano seguinte, comandou a expedição denominada Júlio de Vilhena, que bateu o Maconga e logo apaziguou os povos revoltados de Muíra, bongas e baruístas. Em 18 de Novembro de 1891 ficou gravemente ferido no ataque à aringa do Mafunda, em virtude de tiros e da explosão dum cunhete de pólvora. As suas forças sofreram mais de trezentas baixas; chefiou a retirada em trágicas cir­cunstâncias, pois tinham morrido dois belos combatentes, Barbosa de Meneses e Carlos Paiva e o capitão Andrade estava tão ferido como ele. Durante dois meses esteve em perigo, tendo o corpo em carne viva. Ia ficando cego, mas logo que melhorou pensou em resgatar o desastre. Mostrara-se tão bravo soldado como hábil marinheiro e nos seus comandos de frágeis embar­cações demonstrou tanto estas qualidades que os seus camaradas lhe votaram grande admiração. Cognomi­naram-no “João Trabalhador”, tal era a sua faina. Navegou no Zambeze em péssimos barcos, mas destemidamente.
Em 17 de Dezembro de 1896 foi comandar volunta­riamente a companhia de guerra de marinha que ia combater os namarrais. Ganhou a medalha de prata de Bons Serviços, que se juntou ao oficialato da Torre e Espada e à insígnia de cavaleiro de Cristo, recebidas em 1891. Mousinho escrevera a seu respeito, ao propô-lo para aquela condecoração: “pela maneira como comandou as forças engajadas na Nagüema, Ibrahimo e Mucuto Muno e pela boa ordem e disciplina que manteve na sua companhia”, e nomeou-o governador da Zambézia.
Começara uma revolta com assassínios nas proximi­dades do Sena e tão seguramente os indígenas esperavam vencer, que chegaram a atacar, em Tete, uma lancha carregada com material de guerra e, apoderando-se de duas peças “Hotchkiss”, dispuseram-se a maior resis­tência. Era em 25 de Maio de 1897; quatro dias depois saiu de Sena à frente duma coluna de cento e cinquenta soldados indígenas e dois mil cipais irregulares de Maganja, e em 4 de Julho atacava a aringa de Mayuca, que foi defendida com a artelharia tomada no rio Tete, e a qual recaiu em poder dos portugueses. Foram arrazadas doze aringas após vinte combates.
No ano seguinte já estava em Maganja da Costa a castigar as ofensas feitas pelos cipais desta região a Aires de Ornelas e o trucidamento do l° tenente da Armada Simeão de Oliveira e de oito angolas que ali o tinham acompanhado em 1886. Tomou a aringa, subjugou o Mocuba e o Robe e não ocupou Angoche porque demorou a autorização pedida a Mousinho, governador geral de Moçambique, que o propôs para a comenda da Torre e Espada.
Quando o poderoso gentio do Barué se revoltou, muito animado por suas anteriores proesas, foi-lhe entregue, em 19 de Abril de 1902, o comando da expedição contra eles. Arrazou cerca de noventa aringas e entre elas a do célebre Inhachirondo, na qual fora morto um grande amigo dos portugueses, o índio Manuel António de Sousa, capitão-mor de Manica. Aprisionou-se o Macombe e o seu chefe de guerra, Combuemba, pereceu. Recebeu a medalha “Rainha D. Amélia”, e a Geografia entregou-lhe a sua medalha de honra.
Por decreto de 9 de Dezembro de 1904 foi nomeado governador geral de Moçambique, e, dois anos depois, adido à Comissão de Cartografia, tendo dirigido acertadamente a província que lhe fora confiada. Fez parte da comissão de reforma administrativa das províncias ultramarinas, e recebeu a nomeação de vogal da Junta Consultiva do ultramar.
Após a morte de D. Carlos, aceitou o difícil cargo de governador civil de Lisboa, e, desde 11 de Março até 14 de Maio de 1909, ocupou a pasta da Marinha, cargo que voltou a exercer em 22 de De­zembro daquele ano, demitindo-se em 26 de Junho de 1910.
A queda da monarquia encontrou-o em Sintra, pois residia naquela estância. Foi para Mafra, onde o sobe­rano se refugiara. Dispôs-se logo a defender o paço com as forças que encontrou, apesar de não lhe pare­cerem muito seguras em virtude das hesitações do seu comandante. Aconselhou a partida de D. Manuel II com a família real para o Porto, afirmando-lhe que iria ter à capital do Norte.
Foi lugar-tenente de D. Manuel.
Após a morte de Sidónio Pais, em Janeiro de 1919, estava doentíssimo no hos­pital de S. Luiz, quando ali o foram buscar para, com a sua presença, dar valor ao movimento monárquico de Monsanto. Pensou num ataque mais directo e decisivo, que Aires de Ornelas evitou, e o resultado foi cair nas mãos dos vencedores, comandados pelo seu antigo camarada, e companheiro nas lutas em Moçambique, o capitão-tenente Afonso Julio de Cerqueira, a cuja grandeza de ânimo se deveu a salvação dos presos. Esteve recluso na Penitenciária, em S. Julião da Barra, no Laza­reto e na ilha da Madeira, beneficiando da amnistia e voltando à política como julgou do seu dever.
Depois da morte de D. Manuel aceitou o cargo de lugar-tenente do pretendente, D. Duarte Nuno.
Além de grande oficial da Torre e Espada e de Aviz, por serviços distintos, recebeu a carta de conselho, as grã-cruzes de Cristo e do Império Colonial, medalha de Filantropia, medalhas de ouro de bons serviços no ultramar com as barras comemorativas das suas cam­panhas. Oficial da Legião de Honra e grã-cruz da Es­trela Brilhante de Zanzibar, comendador de Mérito Naval e Militar de Espanha. Foi ajudante de campo de D. Carlos e de D. Manuel, deputado em 1900, sena­dor monárquico, pelo distrito de Portalegre, em 1925 e 1926.
Quando governou Moçambique recebeu as visitas dos duques de Connaught, em 1906. oferecendo-lhes magní­ficas festas e o celebrado batuque de vinte mil guer­reiros que produziu assombro.
Não foi apenas decorativo o seu período governamental; fez a ocupação, com Massano de Amorim, das capitanias de Angoche e Macuama, como já ocupara mais de me­tade da área da Zambézia quando ali estivera, e tratou da reforma administrativa da província.
Publicou: Do Níassa a Pembe, Relatório da Campanha do Barué, em 1902, O combate de Macequece, as Duas Conquistas de Angoche, etc.
Este homem chamou-se
João de Azevedo Coutinho.

Abaixo a sua assinatura, quando estava preso em Lisboa

Muito jovem, nas suas campanhas em Moçambique.
Segundo um dos seus netos, grande amigo meu, o avô teria
1,90 de altura e era robusto como um carvalho!


Vamos continuar com assuntos moçambicanos, mas, por ora deixemos o “nosso” heroi descansar.
A verdade é que gente desta estirpe parece que desapareceu. Pelo menos em Portugal !!!


Junho 2017

Junho 2017

segunda-feira, 12 de junho de 2017



Um oficial em Moçambique - 4
Grande  Milando*

Aquele cargo com o seu título eufônico de Capitão-mor era realmente interessante pela variedade e amplitude das ocupações, enquanto resistiu o espirito que Mouzinho lhe insuflara.
Em Angoche, por muito afastado de Mo­çambique e por haver substituído, com assinalada vantagem, o ridículo governo que vegetara no Parapato entre 1861 e 1897, constituía uma espécie de pro consulado à romana muito de apetecer a gente moça com ombros e animo para suportar o fardo.
O capitão-mor, Gavana, como lhe chamavam os negros, era tudo: suprema autoridade e primeiro obreiro.
É claro que na maior parte das suas quase ilimitadas atribuições tinha a competência mais ou menos regulamentada pelas leis do reino e da província - na medida do aplicável, mas havia uma esfera, inteiramente por codificar, que pelas suas instruções lhe era tão especialmente recomendada como deixada por inteiro à discrição do seu tino: era de juiz, único, em pleitos cafreaes.
O capitão-mor conhecia e comungava fielmente nas ideias gerais do comissário-régio criador do cargo e que fora seu chefe supremo assim como seu comandante-em-chefe. Achavam-se elas consubstanciadas nas modelares instruções dadas por El-Rei D. Sebastião ao Viso-Rei na Índia, Dom Luis de Athayde.
Fazei muita cristandade. Fazei justiça. Conquistai tudo quanto poderdes. Tirai cobiça dos homens e favorecei os que pelejaram. Tende cuidado com a minha fazenda. E para tudo isto vos dou meu poder. Se o fizerdes assim, muito bem, far-vos-hei mercê: e se fizerdes mal mandar-vos-ei castigar. Se al­guns Regimentos forem em contrário destas cousas suponde que me enganaram e por isso não haja nada que vos estorve isto.
E se à primeira máxima a sua condição de mísero pecador decerto o impediu de dar brilho, da última teve de socorrer-se constantemente, desde o dia da posse, no desem­penho dos seus deveres como julgador, tão inaplicáveis se lhe manifestaram os diversos códigos metropolitanos promulga­dos pelo liberalismo reinol do século XIX e logo mandados observar na África adusta.
E meteu-se a estudar afincadamente a Charia (Direito) macua. Suleimane-Issufo, o octogenário irmão do sultão Hassani e de Mussa-Quanto, fora o seu primeiro professor, logo nos tempos de simples comandante da Maravi.


Que maravilha de “máquina de guerra”! E que conforto!

Cinco anos depois, elevado a capitão-mor, já falecido o velho Suleimane, valeram-lhe o Mualimo (Bispo) Xá-Daúde e outros. Nem lhe faltava tempo para estudar e anotar princípios fundamentais, porque no transcurso de cada doze meses os cinco da época das chuvas de todo impediam passeios pelo mato. Dois anos de estudo e prática va­leram-lhe nesse capítulo certa nomeada pelo sertão, até ao ponto de um belo dia vir de Sangage uma deputação de notáveis convi­dando-o a ouvir o velho pleito do xecado e a sentenciar sobre a matéria arrumando o caso de uma vez para todas. Aceitou, como era seu dever, e trasladou-se em correição para o posto militar durante nove dias, que tanto durou o julgamento da causa. Por terem algum interesse, visto darem uma tal ou qual ideia da formidável divergência existente entre a Charia tribal macua e o Direito europeu se resumem aqui as alegações procedentes recolhidas em nove fatigantes audiências de sol a sol.
Era o que se chama na Contra-Costa um “milando grande”, arrastado durante gera­ções seguidas e recheado de incidentes de toda a casta que corriam de lés-a-lés o teclado da jurisprudência. Na sua origem assentara sobre uma questão dinástica, causa pri­mária de conflitos máximos entre povos. Pertencer o xecado de Sangage ao Uazir Mussa-Piri (Vizir) ou ao usurpador Momade-Omar, era o nó górdio. Cortado este, fácil se­ria liquidar perante a Charia a vasta série de assaltos, morticínios, roubos, raptos e ofensas intertribais praticadas du­rante mais de cem anos pelos partidários de um ramo dinástico contra o outro.
Momade-Omar, nascido e educado entre os brancos do Parapato, como o haviam sido já, em Moçambique, seu pai e seu avô, co­nhecia pela observação do seu atento espí­rito de velhaco as noções gerais do Direito europeu reveladas pela conduta correntia da gente do Rei.
Querendo agradar, “pintou-se de branco” na defesa do seu pleito, alegando direitos, muitos direitos, e negando a cadeia de deveres que tanto aperta e man­tém a Charia macua.             
A sua primeira negação em defesa própria foi a do “princípio de responsabilidade”, ba­silar entre os cafres por ser o alicerce do or­ganismo tribal. Mussa-Piri não teve dificul­dade em rebater-lha expondo, com aplauso de todos os ouvintes, que o xecado exercia autoridade sobre várias tribos, cada uma das quais estava subdividida em regulados, e es­tes em povoações compostas por agrupamen­tos de famílias; e que assim como os filhos eram responsáveis para com o pai pela sua conduta pessoal, assim este respondia perante o chefe da povoação pela sua família, os chefes de povoação para com os seus régulos e estes perante o xeque, chefe supremo do povo. E exemplificou com o caso de furto (Momade-Omar tinha praticado muitos) mostrando na fase inicial das investigações o local do crime e o ponto de partida, tornando responsável o chefe da família ocupante do terreno até que prove a saída desse terreno da cousa furtada, quer por mostrar para onde ela foi, quer por patentear o seu rasto; e salientando como pela prova de saída feita de grau territorial em grau territorial - local ocupado por uma família, área da po­voação, território do regulado - sempre es­teve assente na Charia macua o “princípio da responsabilidade” como cavilha mestra do edifício tribal. Eh-Eh; Aiô-Aiô; Aíomai - aplaudia a assembleia,
E confortado pela impassibilidade do branco, aquecido pelo auditório, reforçou: Que não, que o cafre não tem direito algum a fa­zer o que lhe apraz. Que o macua, como fi­lho, sempre pertenceu absolutamente ao seu régulo como pai da tribo, em tudo e para tudo, ele próprio e até a sua machamba (horta) pois nem tem direito a tocar no milho ou no feijão colhido senão após o Festival das Colheitas, de centenária tradição, depois de o régulo ter apartado as quantidades pre­cisas para satisfazer os espíritos dos antepas­sados e para as compras de armamentos ne­cessários à defeza da tribu. Que seria da sal­vação desta se a gulotonaria de um Momade-Omar lhe permitisse faltar ás suas obri­gações tribais? Sem prosperidade e seguran­ça para a sua tribo, o macua não teria defesa alguma, visto não haver Charia que re­gulamente as relações entre tribos, as quais sempre se têm por inimigas umas das ou­tras. Não tinha Mussa-Quanto uma vez chegado mesmo a proibir que as pessoas morres­sem sem sua licença? Porquê? Porque antes deste Momade-Omar também naquele tempo tinham aparecido heréticos do mesmo estofo a enfeitiçar gente fazendo-a morrer, quando todos os homens válidos eram poucos para a guerra contra a Imbamela e quando todos muito bem sabem pelas revelações do Liputu (Satanaz) que as pessoas só podem morrer de maneira natural por velhice ou na guerra - e nunca sendo moças senão por efeito de feitiçaria maligna apontada contra a grandeza e contra a existência da tribo, tão dependen­tes do número e da força dos seus homens.
E volvendo-se acusador, Mussa-Piri exprobava a Momade-Omar todas as suas com­provadas malas-artes. Para achincalhar a sua autoridade de xeque, Momade tinha-se oposto a que a ele Mussa fosse pago pela gente do Etagi, a indenização devida pela fratura do braço de um estafeta seu, persuadindo essa gente a indenizar diretamente o pró­prio ferido. Jamais se vira semelhante atro­pelo dá Charia. O estafeta era seu, mesmo dele, como membro da sua tribo, e a indenização pertencia-lhe como único dono do homem que ficara inutilizado e de todos os demais homens. O contrário seria uma imo­ralidade, um incitamento ao egoísmo, uma ofensa à tribo.
Eh-Eh; Aiô-Aiô; Alômai - apoiava a assem­bleia. E seguiu-se, com muitos pormenores, o rosário de todas as culpas do réprobo. A sua atitude em casos de propriedade pes­soal - favorecendo o espírito da ganância tão antagónico do ideal de fraternidade na tribo, pois só à custa do seu semelhante e roubando-o ou explorando, o um homem pode enriquecer enquanto os outros con­tinuam desprovidos, A sua oposição crimi­nosa, e ruinosa, contra o sistema miliciano de defesa da tribo pela imposição da serviço militar obrigatório a todos os homens validos - e a sua propaganda favorável às guardas de corpo permanentes, á moda dos brancos, mantidas na ociosidade à custa da tribo mesmo em tempo de paz.
As suas infrações constantes à Charia da caça - caçando só para ele, como as feras, a pouca caça comestível restante, que o costume imemorial mandava ser reservada às grandes caçadas coletivas depois das colheitas, em benefício de todos. Ofensa máxima - aquela sua prática de se apropriar de terrenos, absorvendo e vedando os melhores, os mais produtivos, com prejuízo da única dona do solo, que o nacionalizara empossando nele somente o régulo, para que este, com justiça igual, confiasse a cada qual aquela área que por si próprio e pelas suas mulheres pudesse cultivar, e não mais. E suma injúria - a do apelo para os tribunais brancos em questões da alçada judiciária tribal, sujeitando todos os demais às iniquidades do Direito europeu, em tudo antagônicas da Charia destruindo a vera essência do viver social macua. Ao branco, ao “filho do Rei”, só é licito recorrer em casos como aquele sob julgamento, que vão além da Charia., E, mesmo assim, só não desconvém fazê-lo quando, como naquelas circunstân­cias, visivelmente o Rei mandou para Angoche um “filho” com ordem de acatar a Charia.
Eh-Eh; Alô-Alô; Alômai - apoiavam todos, amigos e inimigos do Mussa, estimulados pela invocação da boa doutrina milenária.
Momade-Omar ainda replicou, outra vez ferindo a nota dos direitos, de muitos direi­tos, de todos os direitos ouvidos nas cantinas do Parapato e de Moçambique a outros de­senraizados da tradição tribal. E se não citou leis promulgadas em Cortes, se não in­vocou a letra dos venerandos Códigos do liberalismo reinol, porque a tanto não che­gava a sua sabença, não deixou de referir de­cisões tomadas à face do Direito europeu pelo comando da polícia e pelo julgado municipal nos dias, que ele considerava gloriosos, do antigo Governo de Angoche, anteriores àquela ominosa ditadura militar instituída por Mousinho de Albuquerque na pessoa do capitão-mor, a quem ele errando todas as passadeiras, supunha suspirando, também, pelo título antigo e mais pomposo de senhor governador. E para mais “engraxar” pedia “indulgência para aqueles brutos do mato” que nunca tinham tido a fortuna de viver, como lhe acontecera, em localidades administradas diretamente pelos brancos, onde havia muitos, todos gente grande, um governador, outros secretários, outros juízes, outros es­crivães, outros administradores dos concelhos, outros comissários da polícia com secretarias e livros e papel e tinta. Ao contrá­rio de Mussa-Piri, não falava voltado para o auditório, e não tinha um só Eh-Eh; Aiô!Aiô; de aplauso.
É claro que houve mais, muito mais dis­cursos de parte a parte.
Terminadas as alegações, ao nono dia, o branco, cheio de sede, antes de proferir a sentença pediu chá, que tomou com vagar em presença de toda aquela multidão abso­lutamente silenciosa - talvez por imaginar que a inocente libação fizesse parte do ritual judiciário, ou fosse mezinha inspiradora de justa decisão.
A sentença conformou-se com a Charia macua: Momade-Omar, com enorme surpresa sua, foi desapossado do xecado que usurpara, proibido na sua pessoa ou na dos seus des­cendentes de reabrir a contenda, e dester­rado para Moçambique com prisão na velha fortaleza quinhentista de S. Sebastião. Se­gundo a Charia, foram também resolvidos to­dos os crimes, como tal considerados à face da lei cafreal, cometidos durante a luta di­nástica e à sua sombra.
Para os meros delitos políticos pratica­dos de parte a parte foi decretada amnistia e perpétuo silêncio. O Uazir Mussa-Piri foi reintegrado no seu poder de xeque e prestou excelentes serviços, dedicados e leais.
Parece que mais tarde voltaram a prevale­cer os Códigos do liberalismo reinol sobre a Charia e que o Mussa foi destituido o que se afigura erro, mas não surpreenderá nin­guém, pois destas alcatruzadas está cheia a nossa história - e a dos outros também.

Quem foi este Gavana?
Veja o próximo e último “capítulo”!
* Milando: em Angola seria “Grande Maca” e em português “Grande problema”!

Maio, 2017






Maio, 2017


segunda-feira, 5 de junho de 2017


Um oficial em Moçambique - 3
Salvo pela Monogamia

M’cuépêre-muno, senhor de Mihéhé, devia medir 1m, 90 e pezar na balança os seus 110 kilos.
Em 1904 andaria pelos 35 anos e cogno­minava-se a si próprio, alternadamente, de “Macua-muno” e de “Macuana-muno”, o que queria dizer rei dos macuas ou rei da Macuana. E, não exagerava muito porque de facto era o mais poderoso régulo de toda aquela vasta região, quase como Portugal in­teiro, exigindo e recebendo preito de vassa­lagem em larguíssimo círculo.
Nunca tinha visto brancos: há 5 anos* todo o sertão entre a Zambézia e os territó­rios de Cabo Delgado estava inteiramente por penetrar. Mas mandara enviados a Moçambique, um deles fora filado, alistado, e em três anos de serviço militar nada volun­tário, observara muito: de regresso à terra havia sido nomeado (como diremos?) almo­xarife-encarregado-do-depósito-de-material-de-guerra, e era o grande informador de M’cuépêre no tocante aos usos e costumes, especialmente militares, desses fenomenais homens brancos, dos Alungo, isto é, dos portugueses.
Ora começou chegando a M’cuépêre o boato de que em Angoche estava um Gavana (capitão-mor) que andava pelo mato, umas vezes com gente de guerra em expedições militares, mas as mais delas a passear assim mesmo e sozinho.
A princípio não queria crer, e com razão porque o caso não tinha precedentes conhecidos em recordação de velho ou sequer por tradição mais antiga. Mas como os boatos se acentuassem mandou verificar e certificou-se.
Tanto bastou para logo arder em desejos de ver o branco. E informado de que este se dava com o seu amigo Mussa-Piri, a quem mesmo reintegrara no xequado de Sangage, serviu-se do velho xeque como intermediário para expedir um convite de visita.
O emissário voltou logo com uma sur­preendente aceitação e com a notícia de que o Gavana não tardaria meia-lua a chegar. E foi uma azáfama de preparativos.
Na raia da linda terra de Mihéhê, logo ao desembocar da densíssima floresta de M’lay, o branco teve a surpresa de se ver esperado pelo chefe do estado maior do grande régulo a desejar-lhe as boas vindas e a pôr-se à sua dis­posição como uma espécie de oficial às ordens.
Chegados à povoação, o Gavana foi enca­minhado para uma grande palhota, nova em folha e retangular, com telhado de duas águas, construída de propósito, à imitação das casas de Moçambique*, única no seu gé­nero, dotada de quintal privativo e rodeada de palhotas redondas para a sua gente e montada.
M'cuépére-muno não estava presente. Mas o seu chefe do estado maior, renovando as boas vindas em nome do amo, explicou que o régulo presumia haver o branco chegado fatigado, após dez dias de marcha e seis horas na sela aquela manhã, pelo que não im­portunava logo ao apear; que comesse e descansasse em sossego, e o mandasse chamar quando lhe aprouvesse. (Andou entre 250 e 300 quilômetros para o interior!)
Luiz XV não teria procedido com maior requinte.
Juntando os atos ás palavras, o favorito do régulo fez um sinal: e logo começaram desfilando em frente do Gavana, grupos de escravos ajoujados com arroz, farinhas de milho e de mandioca, frutas, cabras, galinhas, ovos, peixe do rio, toda a ucharia local. Chegavam, ajoelhavam, arriavam os presentes, batiam as palmas três vezes seguidas, e seguiam ao seu destino.
O terreiro da povoação em cuja orla o branco fora alojado, devia andar pelo tamanho do Terreiro do Paço, em Lisboa (uns 20.000 m2 !). No meio uma pa­lhota circular enorme, erguendo a sua cúpula à altura de um segundo andar, era a do régulo; na periferia talvez meio-cento de outras palhotas pequenas, e por detrás des­tas, em toda a volta, aquela bem conhecida faixa de mato, densa, mas de pequena lar­gura e de terra remexida, cujo letreiro, se o tivesse, poderia limitar-se às simbólicas ini­ciais: W.C. Para lá desse mato as machambas (hortas) com mandioca de 4 metros de altura e milho capaz de esconder um lanceiro montado.
À primeira indicação do branco, M’cuépêre-muno compareceu logo, com imensa pompa, acompanhado por todos os seus di­gnitários e, também, por meia dúzia de moleques e outras tantas molecas já destina­dos, desde a mais tenra idade, a acompa­nhar para o outro mundo o seu senhor quan­do lhe findasse a preciosa vida.
Cumprimentos, apresentações, discursos, seguiram-se até, em plena Macuana, num pro­tocolo nada dissemelhante daquele que rege os encontros de chefes de estado na Eu­ropa.      
A salva de artilharia que o “almoxarife” muito recomendara a M’cuépêre-muno, pelas recordações do que observara na fortaleza de S. Sebastião em Moçambique, sofreu percalço e ficou limitada a um só tiro. Foi disparada por uma daquelas pequenas peças que ainda a esse tempo artilhavam os pangaios mujojos de Mascate; mas como o «almoxa­rife» a atacara de pólvora até à boca, o recuo excedeu a resistência do velho re­paro que todo se esbandalhou ao dar en­contro a um morro de muchém, formiga térmite.


Verdadeiro sucesso de novidade, para o régulo e para todo o seu povo, tiveram três cousas: a montada (velhíssimo macho que fizera parte de uma expedição enviada da metrópole 3 anos antes), a Browning, que despejava 8 tiros com um só puxar de gati­lho, e os garfos com que o branco segurava os alimentos sem precisar tocar-lhe com os dedos.
A própria pessoa do branco impres­sionou aquela gente, como não podia deixar de ser, que nunca tal vira. Mas as damas não se agradaram e bem lho fizeram sentir com remoques—“olha como ele é feio, que cor de pele, parece uma galinha depenada” - quando, escondidas, o examinaram da outra margem, na ocasião em que ele, despreve­nido, tomava banho no rio, com agua só pelo joelho não aparecesse algum jacaré.
Os motivos do convite de M’cuépêre-muno tinham sido múltiplos e complexos, como sempre acontece com as determinantes da ação humana, na Europa como na África adusta. Os objetivos políticos, comerciais e militares, transpareceram logo às primeiras palavras e foram tratados adequadamente, primeiro em conferências secretas e depois em assembleias magnas, durante os quatro dias da visita. Mas o branco pressentia que no espírito de M’cuépêre-muno ainda havia mais um propósito que até então não fora desvendado: e maravilhava-se de qual seria.
A revelação veio na última tarde, à hora do cocktail que foi substituído por uma ópti­ma cerveja de milho fino (pôbe) tomada na grande palhota do régulo, e importou na confidência dos grandes apuros em que vivia aquele homenzarrão, senhor incontestado de toda a Macuana.
O caso, realmente, apresentava-se tão difícil que era insolúvel. M’cuépêre-muno tinha 39 mulheres, e este batalhão de beldades tor­nava-lhe a vida um inferno. Não fora por sua culpa nem gosto que tanto bigamara. Obrigações do cargo. Para melhor firmarem com ele tratados de paz e amizade, todos os outros régulos das redondezas o haviam que­rido para genro, e o dilema havia-lhe sido posto diplomaticamente numerosíssimas ve­zes: ou paz para o seu povo e mais uma mulher às costas, ou a sua independência conjugal e o país a ferro e a fogo. Como bom pai da sua gente submetera-se, sucessivamente: eram já 39 - e tinha motivos para recear que ainda viessem a ser mais...
“Não poderia o branco valer-lhe? Levar-lhas quase todas, deixando-lhe só duas ou três? Podiam combinar aquilo particular­mente entre eles e anunciar depois pelo ser­tão inteiro que era “ordem do Rei” - à qual todos tinham de submeter-se, a começar pelo Gavana e por ele próprio M’cuépêre-muno”. 
“Anda, dize que sim. Pois não és tu muana-a-rey o filho do Rei? Podes falar em nome de teu pai.”
Ao Gavana valeu naquela conjuntura o “almoxarife” de M’cuépêre-muno, o tal que durante três anos serviu como soldado em Moçambique. Fê-lo vir, e sem lhe dizer por­quê obrigou-o a responder à pergunta clara e categórica – “se vira na fortaleza algum branco casado com mais de uma mulher”. O “almoxarife”, que chegara a impedido do coronel-comandante da praça de S. Sebastião, na Ilha de Moçambique, e que por isso observara de perto o viver conjugal dos brancos, disse a ver­dade, afirmou e jurou a monogamia euro­peia.
assim aquela primeira visita não con­cluiu por um desaguisado.


* Refere-se a 1899.
** Da Ilha de Moçambique, de duas águas. As do interior, Norte, de Moçambique eram circulares.

Fonte: “Escola de Mouzinho” – Eduardo Lupi, Lisboa - 1929

21/05/2017