terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Do Brasil por Francisco G. de Amorim




CONFITEOR , DEO



Aproxima-se o final do ano. É época de Natal. Os sentimentos se não afloram no coração e mente, aparecem, por vezes muito bonitos e muito frios em alguns cartões de Boas Festas que se mandam por obrigação. Assim mesmo é melhor do o total esquecimento do “outro”.

Uns momentos de solidão, no silêncio, um fixar os olhos além, no horizonte, no infinito, em nada, uma introspecção, um exame de consciência, não custa nada. E é bom.

Muita, muita gente se prepara para o Novo Ano com promessas, previamente falsas e sabidamente a descumprir (sobretudo os políticos), “desejando” que este novo tempo venha consertar tudo quanto temos ajudado a destruir, mas... tudo, tudo mesmo, já esquecido antes da Festa de Reis!

Não é de admirar; é quando aparece o ouro, as riquezas, e as promessas... esquecidas.

Não é admirar porque todos sabemos que cheio de boas intenções está o inferno. No entanto é sempre bom – não tem efeitos colaterais – analisar o tempo que passou, ver o que se fez de errado, ou pouco, e...

De qualquer modo, eu venho fazer um exame de consciência publicamente, já que o blog está à disposição de quem quiser.

Comecemos por ver como vivemos dentro do estabelecido pelas Tábuas da Lei, os Dez Mandamentos!

1 - Amar a Deus sobre todas as coisas! Hhiii...! Quantas vezes tive que colocar uma venda nos olhos de Deus para ficar “amando” um carrão, sei lá, um Jaguar, outro cruzeiro à vela pelo mundo fora, apesar de sempre querer que Deus me acompanhasse. O que, aliás, Ele jamais deixou de fazer!

2 - Não invocar o nome de Deus em vão! Então aqui não há perdão. Até misturamos o nome de Deus com palavrões, como por exemplo, quando vimos um político roubar (um não, a corja quase toda) e exclamamos: “Meus Deus! Olha só o que o f. da p. agora aprontou”!

3 - Guardar domingos e dias de festa! Quem guarda? Quantas vezes trabalhei aos domingos, e até em feriados, e tive subordinados a quem estas tarefas eram fundamentais. A fábrica não podia parar! Bom, mas isso faz tempo, porque agora não faço nada! Talvez por isso não me preocupe com este mandamento

4 - Honrar pai e mãe. Creio que este sempre foi o meu maior ponto de honra. A memória deles ainda hoje me faz sentir mais responsável, e cada dia que passa mais sinto a sua falta, o seu conselho, o seu carinho, o seu exemplo!

5 - Não matarás. Não me recorda de ter morto alguém. Nem à bala, nem atropelamento, nem com veneno. Simplesmente não vou esquecer nunca, de ter dado um tiro de carabina, e pesada - .375 - na perna de um amigo! Mas foi culpa dele. Mas isso não me livra da culpa de pensar que anda por aí muito ser indigno, que precisava de ser transformado em picadinho. Para salsichas!

6 - Guardarás castidade! Aqui o problema complica-se, mas na minha idade este mandamento ... está já bem guardado!

7 - Não roubarás. Pensei, pensei, pensei e, com certeza, alguma vez devo ter roubado alguma coisa. Ah! Sim! Lembro bem; quando tinha os meus dez ou onze anos e voltava do liceu para casa, passava na frente duma minúscula mercearia, que tinha na porta uns sacos com castanhas piladas (secas). Ainda hoje sei bem que roubei umas quantas, e me devem ter ajudado a quebrar algum dente! O merceeiro ou não via ou não se importava, porque nunca reclamou. Saravá, meu amigo merceeiro!

8 - Não levantarás falsos testemunhos. Não, Deus, isso é que de todo creio que não fiz. Posso ter feito julgamentos errados; mas, quem não erra?

9 - Não cobiçarás a mulher do próximo! Outra complicação. Tem cada “avião” sobrevoando por aí... Quem podia olhar para a Sofia Loren e ficar indiferente? E a Brigitte Bardot? E a Marylin, a Silvana Mangano? Fala sério. Se não cometemos adultério, por vezes éramos obrigados a sonhar, deixando a nossa imaginação percorrer os corpos daquelas estátuas de carne! Neste mandamento estou ferrado! E poucos se safam. No entanto, a verdade, é que também nunca tive uma vizinha, boazuda que me tentasse. E... safei-me!

10 - Não cobiçarás o que a outros pertença. Cobiçar, na verdade não cobicei, mas que roí a cabeça por ter sido sempre um idiota, quando tantos bens passaram pelas minhas mãos e de nada me apropriei... Oh! Deus, acho que me podeis dar aqui uma nota baixa.

Por enquanto o descanso eterno está a ficar cada vez mais longe.

Vejamos os pecados ditos capitais:

- Ira: Senhor! Eu fico irado com tanta malandragem que nos rodeia, que rouba, que maltrata o menor, em idade ou situação econômica, que abusa do poder, que corrompe ou se deixa corromper, que vendem armas, drogas e abusam as empresas farmacêuticas fazendo os habitantes dos países pobres a servirem de cobaias, a todos os que... colaboram conscientemente na destruição do mundo; se ira é um pecado, confiteor Deo...

- Gula: este também é um pecado lixado! Quantas vezes comi demais, porque me apresentavam cada petisco... Não, Senhor, na altura não podia compartilhar com outrém que tivesse fome. Não estavam a meu lado. Se estivessem, Senhor, Tu que tudo vês sabes que eu até teria comido menos do que o necessário. Mas naquelas horas, quando nos põem debaixo do nariz um ensopado de cabrito a fumegar, ou a caldeirada do meu amigo Alberto, ou uma bacalhauzada no restaurante de outro amigo, o Pereira, não há quem não caia na gula. E a nossa feijoada brasileira??? Confiteor...

- Inveja. Inveja não tive, mas como atrás digo, algum, vago, arrependimento pelo que poderia ter feito melhor. Não fiz.

- Orgulho: Até hoje, velho, nem sei bem o que é o orgulho. Fazemos algo bem feito e se somos cumprimentados ou elogiados, o nosso ego... ri de satisfação. Será isso orgulho? Se for, já me aconteceu muitas vezes, mas foi “doença” que rápido se desvaneceu.

- Avareza: nessa não caí. Odeio avarentos, mãos de vaca, prestamistas, bancos, agiotas, investidores ou aplicadores de fortunas em jogo financeiro, corruptores, etc.

- Preguiça: aahhh! Estou cada vez mais preguiçoso! As forças vão fugindo, o corpo obedece com dificuldade, e... ficar na cama mais uns minutinhos... Quando era novo, não! Este pecadilho chegou tarde!

- Luxúria. Também não será por esta porta que vou enfrentar o famigerado Lúcifer. Nunca estive nessas bacanais que hoje são cada vez mais freqüentes, não xinguei nem maltratei nenhum subordinado. Nessa da luxúria, estou fora.

Chegamos finalmente aos chamados pecados veniais, que são tratados, como dizem nuestros hermanos, como pecadillos. Não são pecados graves. Mas por exemplo, o pecado da omissão; se a gente se omite sempre, se deixa a banditagem pôr-nos, a toda a hora, o pé na cabeça, ou se a vê fazer o mesmo a outros, sem intervir, aqui o venial passa a ser pecado covardal.

Não sei qual será a minha “nota” quando enfrentar, primeiro o São Pedro, e, se conseguir “levar este bom homem no papo”, depois a Deus.

Mas alguma coisa ainda sei: não vou deixar de lutar, e sempre me manifestar contra a vergonha dos poderosos. Se possível com cada vez mais violência.

Que Deus me perdoe.



21 dez. 10

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

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Do Brasil de antigamente

e hodierno

 

Que me perdoem os fãs e obstrusos, mas, graça a Dio, pouco nos falta para nos livrarmos do ceguinho à corrupção, o falastrão ignorante, que durante oito anos dividiu o país pelos apaniguados.
O que vem a seguir pode ser uma “pororoca”! Para melhor? Para pior? Esperamos estar por aqui para ver e, quando oportuno, comentar.

Há muita gente, parece que a começar pelos cariocas, que chama de “cabeça chata” ao cearense, a maioria das vezes imigrante, quantas vezes ignorante e sempre humilde e bom trabalhador, apesar de entre estes, muitos terem alcançado, por méritos próprios e fora da politicagem, lugares de relevo na vida brasileira. Não vou procurar enumerá-los porque sempre ficaria em dívida com muitos. Mas... quem sabe a origem dos “cabeças chatas”?
Creio que o soube Francisco Gomes de Amorim, como o explica no famoso II volume do Cedro Vermelho – 1874:
Cambebas são os netos dos antigos omaguas. Omagua quer dizer, em língua peruviana, cabeça chata, porque em pequenos lhes achatavam o crânio. Foram índios emigrados do Peru que desceram o Amazonas e ali fixaram residência.”
Segundo cronistas do século XVII estes omaguas tinham a cabeça em formato de cone! Devido ao contato com europeus e às doenças a que não tinham imunidade, os Omaguas foram enfraquecendo e desaparecendo, tendo morrido o último em 1779.

 

Porque não citar também Varnhagen, sobre os tupinambás:
“Não só falavam dialetos idênticos, como em geral se denominavam a si quase sempre do mesmo modo: Tupinambá. Se no Maranhão como no Pará, na Bahia como no Rio, houvésseis perguntado a um índio de que nação era, responder-vos-ia logo: Tupinambá. Parece pois que Tupinambá se chamava o primeiro tronco nacional, donde se tinham separado todos aqueles ramos, garfos e esgalhos, que apesar de se produzirem em terras distantes das em que se haviam plantado, não mudavam de nome. Acerca porém do vocábulo Tupinambá tem-se até tratado pouco. Esta palavra é composta de duas: Tupi e Mbá. A última deixava-se de acrescentar desde que cessava a liga ou amizade, e que a nação se fracionava. Se se declaravam logo inimigos, a alcunha menos injuriosa com que se podiam ficar mutuamente designando era a de Tupi-n-aem, isto é, Tupis maus, perversos.(Serão os tupinambarana?) Se não ficavam em desinteligência, faziam-se cortesia em que se apelidavam de Tupi-n-ikis; isto é tupis vizinhos, contíguos ou limítrofes. Mbá significava o mesmo que varão ilustre ou guerreiro; e este título não concediam, tal era a sua vaidade, se não a si mesmo.” (História Geral do Brazil - Varnhagen)
Só para encerrar este assunto, Tupi, parece derivar de Tu-upy, o pai supremo, o primitivo.

Seguindo para os antípodas, no Japão, por lá se dá algo no mesmo tipo, no que se refere a “chefes”: Hirohito!
Hirohito, segundo Wenceslau de Morais, virá de erai-hito, que significa importante senhor! Aliás o Japão tem nomes curiosos. Por exemplo os Tin-Tins. Para o ocidente só há um Tin Tin, personagem maravilhosa, de encanto, criada pelo imortal Hergé. Mas lá pelas bandas de Cipangu, como lhe chamou Marco Polo, os Tin-tins são, ou eram aqueles homens que vendiam de tudo, usado, tudo mesmo desde, aproveitáveis a imprestáveis!

Deixemos o Japão em paz e voltemos à nossa Amazônia, e ao mesmo livro de FGA. Não esqueçamos que estamos em 1840!
“Estar de sentinela à cadeia e não haver outro para o substituir! Quando eu estive em Alenquer acontecia isto com freqüência. Não me lembro da organização que ali tinha nesse tempo a polícia (o livro é escrito trinta anos mais tarde), mas recordo perfeitamente de que era como se não houvesse nenhuma. Os soldados encarregados de manter a ordem pública, eram tapuios, uns naturais da vila, outros das vizinhanças, e talvez que a maior parte de arribação. Como era natural, todos eles tratavam o serviço como o dos patrões: fugiam, mudavam de nome, largavam a sentinela para ir cear com a família; e se apertavam muito com eles, soltavam os presos confiados à sua guarda e iam-se embora todos juntos. Era uma verdadeira patuscada, que o coronel Duarte lutou muito tempo para reformar, e penso que conseguiu por fim, depois da minha partida.
Alenquer, hoje! Lá... nas belezas da Amazônia

N’uma ocasião em que todos os índios empregados na casa Carmello & Barros iam fugir, roubando os negociantes e a mim, vi-me obrigado a usar de várias manhas a fim de os poder prender; mas depois de metidos na cadeia, achou-se apenas um soldado disponível para os guardar, e eu tive que ficar por vezes de sentinela, enquanto ele dormia, e de levar de comer aos presos para que não morressem de fome! Por fim, soltei-os para me livrar de trabalhos.
Não se julgue porém que Alenquer fosse um viveiro de crimes. Durante os dois anos que lá residi houve um só caso grave, entre índios mansos, que se esfaquearam horrivelmente; e isso mesmo não foi dentro da povoação.”

Hoje as cadeias de todo o país estão superlotadas e volta e meia, aliás com (in)razoável freqüência há até presos de alta periculosidade que saem delas, pela porta da frente, tendo ainda um carro de luxo para os levar embora! Isto passados só cento e setenta anos!!! E não é na Amazônia, em Alenquer. É nas cadeias “especiais”!

É a evolução!

16-dez-10



quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

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Aculturação

Uma pintura de Moçambique
 

Ocupa espaço principal na nossa sala de jantar um quadro, grande, com uma história curiosa, que merece ser contada. Devido ao animado movimento das suas figuras e colorido, encanta todos quantos o vêm, sobretudo as crianças pequenas, os bebes, que não desgrudam os olhos dele! Curioso como sempre prendeu tão intensamente o olhar de todos os bebes!
É de um moçambicano, L. Makwakwa, o L. já não sei o que abrevia, o resto, nome difícil de escrever! Este Makwakwa, grande artista, sempre andou metido em confusões, não tanto políticas, mas bebedeiras, brigas, e até drogas, e acabou preso em Lourenço Marques. Esteve, creio que uns bons meses, na cadeia da cidade. Algum tempo antes de ser solto, foram-lhe dadas, pela direção da cadeia, telas e tintas para que, além de estar ocupado, preparasse uma exposição a inaugurar com a sua liberdade, e assim conseguir dinheiro para seguir uma carreira fora do alcool. Gesto bonito do diretor da prisão.
A pintura dele é rica, intensa, marcadamente moçambicana. Como não sou crítico de arte não posso afirmar que seja da escola do mestre Malangatana, mas a verdade é que parece ter sido este o percursor de um estilo que distingue, ao primeiro olhar, o artista moçambicano de qualquer um de outro país africano.
Fomos visitar a exposição e o quadro que mais agradou foi este, o maior, que dominava a sala. Estive algum tempo a apreciá-lo até que o artista me veio explicar o seu significado: a Ceia de Cristo, vista por olhos africanos. Um reunião entre um Grande Chefe e os seus doze seguidores, onde sempre se bebe muito, e In Vino Veritas, é grande a alegria e animação de uns e prostração de outros.


Um dos presentes, depois de ter bebido por uma cabaça o vinho, ali configurado como fazendo parte do corpo do Grande Feiticeiro, e com um gesto de falsa amizade, ter colocado a mão no Seu ombro, acaba repudiando a cabaça que está a cair-lhe da mão! Os outros seguidores, tal como rezam os Evangelhos, são uns mais tranquilos, outros mais irrequietos, mas sente-se um misto de animação e até admiração, reações que o vinho dá a cada um.
Mais ainda fiquei a gostar daquela obra.
Achei sensacional o quadro e mais ainda a idéia, mas como o preço pedido eram vinte e cinco contos, demasiado para o meu sempre curto bolso, não comprei. O João Marco comprou dois menores, muito bons, e eu limitei-me a olhar e ficar na minha.
Trabalhava nessa altura no BCCI - Banco de Crédito Comercial e Industrial - e tinha a meu cargo as relações públicas, publicidade e afins. Terminada a exposição, pouco tempo passado, um dos meus diretos colaboradores pediu-me para receber um pintor que precisava de trabalhar. Estaria sem dinheiro para comprar material.
- Quem é ele?
- Makwakwa.
- Interessante. Fui ver a exposição dele, onde vendeu uma boa porção de quadros e já está sem dinheiro? Gostei muito de toda a obra e tive pena de não ter dinheiro para comprar o quadro maior, uma Ceia muito curiosa e bem pintada. Era muito dinheiro para mim!
- Foi o único que ele não vendeu.
- Eu não discuto preço de arte, mas posso fazer uma proposta a ser considerada entre amigos, apesar de não o conhecer. Ele dá-me esse quadro, e eu dou-lhe uma razoável quantidade de material de telas e tintas. Volto a repetir que não tenho vinte e cinco contos!
- Vou falar com ele.
- Ainda podíamos fazer, paralelamente, outra coisa, mas para o Banco. Ele que estude e nos apresente uma idéia sobre a visão africana do dinheiro! O que ele entender e quiser. Assim como concebeu esta Ceia, diferente, ele que pense em algo relacionado com dinheiro, transações comerciais, o que quiser. Três a seis esboços para discutirmos. O Banco compra-lhe os quadros e fará para o próximo ano um calendário com eles.
Encurtando razões. O esperto do Makwakwa, depois de fechado o acordo comigo, foi pedindo sempre mais um pouco de dinheiro, para mais uma tela, mais um pincel, mais uma cor, e não tardou que eu tivesse pago praticamente os vinte e cinco contos que teria custado o quadro! Burro, eu.
Para com o Banco, teve uma outra atitude, dentro da mesma tónica: antes de apresentar os esboços pedidos para se discutir o seu custo, pediu também dinheiro adiantado! E ficou enrolando, enrolando, até que um dia chegou a Revolução e o projeto dos quadros, bem como tudo o mais, se esvaiu, evaporou.
Dinheiro recebido como adiantamento, também por lá ficou!
Passou-se isto em finais de 1973 para 74.
Passados uns quantos anos, em 2001, quando fui estar uma temporada na Casa do Gaiato, ao lado de Boane, a 45 quilometros de, agora, Maputo, já de regresso a casa, fui apresentado no aeroporto a um secretário da embaixada de Moçambique na África do Sul que viajou comigo nesse primeiro trecho. Chamava-se também Makwakwa!
De imediato perguntei-lhe se conhecia ou era da família de um pintor L., que eu não lembrava o que significava, Makwakwa.
Respondeu-me que Makwakwa era um nome muito comum em Moçambique e até na Zambia, porque designava algumas localidades com esse nome. Tinha ouvido falar desse tal pintor, e pelo que, mais ou menos, lhe constava tinha saído há muito da capital, estaria no interior, e, infelizmente, sempre ligado à bebida, sem produzir mais nada!
Uma pena.

7 dez. 10

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Do livro “O Cedro Vermelho”, II volume,

“Notas e Esclarecimentos”,

de Francisco Gomes de Amorim, 1827-1891

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Soldados desertores... que se reuniam aos assassinos
para roubar de sociedade

(I Vol., pag. 81, lin. 18)
Manteve-se a ortografia original.



É sabido como a maioria dos denominados cabanos se compunha de facínoras, aptos para todos os crimes. Expulsos da cidade do Pará, internaram-se no sertão e divididos em pequenos bandos continuaram flagelando a provincia. O presidente d'esta enviava de vez em quando destacamentos em perseguição d'elles para todos os rios, onde lhe constava que appareciam. Succedia porém ás vezes, que os soldados, não só se associavam com esses malfeitores, mas depois de os terem destruído os ficavam substituindo em alguns logares! Referirei um caso que se passou commigo.
Em 1841 construia-se uma escuna, por conta da casa Carmello & Barros, na margem direita do Xingu, próximo á foz do Curauatá. N'um sabbado á tarde todos os mestres e tapuios de casa pediram licença para irem passar a noite e o dia seguinte a uma aldeia da margem occidental, onde se fazia a festa de S. Thomé ou do Espirito Santo. Em casa ficaram apenas José António Carmello, portuguez, que teria trinta annos de idade; uma senhora branca, ainda moça, com um filhinho de collo; um preto de oito ou nove annos; e eu, que teria quatorze, e me achava empregado como caixeiro dos citados negociantes.

O logar era inteiramente deserto; a casa, construída de terra e estacas, e coberta de palha, estava situada quasi á borda do rio, no sobpé de uma collina. Os vizinhos mais próximos ficavam a distancia de meia légua, na embocadura do Ourauatá, onde Ricardo Feio, natural de Lisboa, também construia um navio. Alem dos indivíduos acima ditos, havia em casa de Carmello & Barros um grande cão, de raça dinamarqueza, que a communidade de infortúnio me tinha associado como único amigo. Chamavam-lhe Rabicho, em vez de rabão, por lhe terem cortado a cauda! Este infeliz fora da cidade com Manuel de Lima Barros, sócio de Carmello; e os marinheiros, entre outras judiarias com que o atormentaram, por dis¬tracção, brearam-n'o e alcatroaram-n'o, sob pretexto de o tornar impermeável. Chegado ao Xingu, deixou-se ficar ali, quando o navio voltou para a cidade, vivendo do acaso, moído por todos com pauladas, porque a fome o tornava ladrão, e repellido sempre, por causa, da sua figura pouco sympathica das feridas cruéis que lhe tinham feito, da sua magreza repugnante e do seu caracter insociável, azedado pêlos maus tratos. Por acaso ou por uma tal ou qual identidade de destinos, reparámos um no outro e insensielmente nos approximámos. Rabicho começou a seguir-me por toda a parte com solicitude, atirando-se aos rios onde me via saltar para tomar banho, nadando ao meu lado, sem nunca me perder de vista, não me permittindo grande demora dentro da agua, explorando as florestas adiante de mim, cada vez que eu n'ellas entrava, e velando-me enquanto eu dormia. Grato a estas demonstrações, retribuia-lh'as com metade da minha ração; tosquiei-o cuidadosamente, livrando o da cobertura de breu; curei-lhe todas as mazellas; e quando lhe cresceu novamente o pêllo, ensaboava-lh'o com frequencïa, lavando-o por vezes com água de plantas aromáticas. Ao cabo de pouco tempo o animal tornara-se inteiramente diverso do que fora e ligara-se á mim com uma affeição, que só acabou com a sua morte.
Francisco Gomes de Amorim em 1891


Na noite a que me refiro tinha eu adormecido no copiar da casa, espécie de telheiro saliente para o lado do rio, onde o calor excessivo do clima me obrigava por vezes a atar a rede. No melhor do primeiro somno, senti que me sacudiam, e, acordando, vi o cão que me agarrava as bordas da rede, agitando-a com violência. Como n'aquelle tempo não havia noticia de se ter manifes¬tado a hydrophobia no Brazil, julguei que Rabicho se divertisse commigo e empurrei-o com os pés, preparando-me para adormecer novamente. Vendo esta disposição, o intellígente animal, que tinha a grandeza dos maiores da sua espécie e raça, metteu-se debaixo da rede, e, suspendendo-a, deitou-me ao chão; em seguida correu para fora do copiar, voltou atraz, tornou a sair, e a entrar, como convidando-me a segui-lo; e tudo isto sem ladrar e sem fazer o menor ruído!
Levantei-me furioso, com intuito de puni-lo pela inopportunidade dos seus gracejos, quando me pareceu ouvir rumor do lado de traz da habitação. Fazia luar, claro como se fosse dia; Rabicho, notando que eu tomava a attitude de quem escuta, soltou um rugido surdo e correu novamente para fora.
—Avança, cão!
A este grito, dír-se-ia que um obuz o tinha arremessado contra a collina, e que lhe saia da garganta a voz dos trovões! Comprehendi então a causa por que elle me acordara; e todos os seus esforços para me advertir de um perigo imminente. Entrei logo em casa, fechei a porta por dentro, chamei Carmello, e accendi um candieiro.
— Que é?
— Não ouve o Rabicho? Penso que são ladrões!
— Ladrões?
— Tem-se dito que no Xingu anda uma quadrilha de cabanos e de soldados desertores...
Cannello, que tinha no quarto seis ou oito armas de munição, ergueu-se de um pulo acordou a mulher, e abrindo uma grande caixa de folha de Flandres, onde tinha mil cartuchos embalados, ensinou-a a carregar as armas com grande rapidez. Depois voltando-se para mim:
— O senhor sabe atirar?
Como eu hesitasse em responder, acrescentou:
— Tem medo?
— Ainda não sei bem do que se trata...
— Ah! trata-se simplesmente de nos tirarem a pelle.
— Isso é serio?!
— Vae ver.
— Estas espingardas darão grande couce? Se tivesse alguma mais pequena?...
— A occasiâo é boa para escolhas! E dirigindo-se outra vez á mulher:
— À medida que eu as for descarregando, faze assim... vê que fiquem bem escorvadas e vae-mas ponde a jeito.
Mordia os cartuchos, escorvava as armas, que eram todas de pederneira, mettia-lhes as cargas, batia com as coronhas no chão e em menos de um minuto as tinha todas promptas e encostadas á porta, que do lado de traz da casa deitava para a encosta.
— Se não quer morrer, vá fazendo o mesmo que eu fizer. Tira essa luz para traz da parede; convém que não nos vejam, nem saibam se somos muitos ou poucos. Como o Rabicho trabalha!
Effectivamente, o cão avançava com furia, segundo os seus latidos aos annunciavam.
— O senhor ha de abrir a porta muito devagarinho; como o luar vem do rio, a sombra da casa projecta-se para a encosta; assim que abrir, deixe-me manobrar, mas atire também, se gosta de viver... Tome sempre cuidado, não me mate a mim!
Abri a porta, como elle ordenara, e avistei uns poucos de homens, querendo encobrir-se com um grupo de pequenas arvores que havia a meia subida da collina, e defendendo-se do cão que os acommettia sem cessar. Carmello deu quatro tiros segui¬dos, fazendo pontaria ao bando; eu descar¬reguei também duas ou três armas, emquanto a mulher de Carmello carregava com rapidez admirável, e varonil sangue frio, as espingardas que o marido largava. O cão, sentindo-se mais forte com o nosso apoio, atacava com maior bravura.
— Mata esse diabo com uma baionetada! gritou um.dos assaltantes.
— Mata! e avancemos á casa!
— Ai!
— Mata! Mata!
— Ai! Ai!
— Atira, diabo!
— Fujamos, que são muitos!
Estes gritos foram soltados pelos salteadores quasi todos a um tempo. Aos nossos tiros respondeu apenas um, cuja carga de chumbo foi cravar-se toda ao lado da porta, sem que nos tocasse um bago.
— Fogo, rapazes! Fogo n'aquelles cães! Avança, Rabicho! Ahi, cão! Aboca! Aboca!
Gritando assim, Carmello atirava com tanta rapidez, que os assaltantes desappareceram de corrida no alto da collina, persegui¬dos sempre pelo cão, que apesar de ferido não os largou senão depois de o chamarmos repetidas vezes. Pelos gritos e gemidos que ouvimos, ficámos suppondo, que as nossas balas nem todas se perderam e que Rabicho tinha marcado bem alguns dos ladrões. Revistando-o, logo que elle chegou ao pé de nós, achámos-lhe a boca cheia de sangue e fragmentos de pelle humana, misturados com fios da roupa dilacerada, conjunctamente com as carnes.
— Coitado! — exclamou Carmello, que o examinava.
— Fizeste bem o teu dever!
— Devemos-lhe a vida! —acrescentei eu, afagando-o. — Se elle me não acordasse, estávamos servidos!

— Ah! foi elle?!
Referi a Carmello como as cousas se tinham passado.

— Todos se portaram bem! Eu penso que matei dois d'aquelles cachorros.

— Eu atirei ao monte... —E conclui commigo: — Fechando os olhos!

— Agora é arriscado irmos ver o effeito dos nossos tiros. O Ricardo Feio deve tê-los ouvido na sua feitoria, e, provavelmente, mandará alguem pela manhâ saber o que foi.

— Talvez se persuadisse de que eram salvas que nós dávamos, festejando o dia em que se poz a primeira tábua do costado?...

— Isso é verdade... Aqui não se faz nada sem descargas ou sem foguetes! Maldito costume dos tapuios!... Se a gente quizer pedir alguma vez soccorro, ninguém percebe!...
— Quem sabe se os ladrões não iriam tambem assaltar a feitoria do Ricardo?!
— É possível... Mas elle não ha de ter sido tão asno como eu, que deixei ir os carpinteiros todos para a outra banda, sabendo que o Xingu anda ha dias mal assombrado!
— Pobre Rabicho! Tem umas poucas de picadas no cachaço, e está perdendo muito sangue!
— Vá lavá-lo com sal e vinagre, que eu, pelo seguro, fico aqui de sentinella até ama¬nhecer. Dá cá o meu cachimbo, e arranjem café.
Fiz o curativo ao cão, que protestava latindo dolorosamente contra a brutalidade do medicamento; mas comprehendendo sem duvida que era para seu beneficio, não me recompensou, mordendo-me, como poderia fazer qualquer creatura de certa espécie que sabemos... Depois voltei com elle para junto do Carmello e ficámos conversando e fumando até pela manha; é claro que Rabicho não to¬mou parte nos nossos prazeres e distracções, comquanto fosse tão digno como qualquer outro de se associar a ellas; mas tinha profundo horror ao café, e não era mais tratavel com o tabaco.
No dia seguinte pela manhã subimos a collina e achámos a terra revolvida de meia encosta para cima, e as folhas que a juncavam abundantemente regadas de sangue. Como não apparecesse ninguém, embarcámos todos n'uma canoa e fomos á feitoria de Ricardo Feio. Encontrámo-lo em casa, com todos os seus tapuios, e referimos-lhe os successos da noite. Os nossos tiros tinham sido ouvidos; porém, como eu suspeitara, attribuiram-n'os a causas festivas. Logo que souberam o verdadeiro motivo, armaram-se e partiram comnosco para a feitoria de Carmello. Chegados ali, seguimos, guiados pelo cão, o rasto do sangue, perfeitamente visível; e depois de termos andado por espaço de uma hora através da floresta, descemos novamente para a Beira do rio. Ahi notavam-se na areia não só os vestígios sanguinolentos como as piugadas de muitos homens. Pareceu-nos, pelo exame a que procedemos, que os facínoras não seriam menos de vinte! Apesar de nós não sermos tantos, como íamos armados e sabíamos por experiência que elles tinham apenas uma espingarda ou que lhes faltava pólvora ou balas para se servirem de outras, continuámos a dar-lhes caça. Mais adiante havia uma coroa de areia, separada da margem por um canal que teria meia dúzia de braças de largura. As piugadas sumiam-se na agua em direcção a essa pequena ilha. Rabicho atravessou o esteiro e começou a cavar do outro lado. Como o passo era fácil, fomos atraz d'elle e em poucos segundos o vimos descobrir o cadáver de um homem agigantado, que lhe ajudámos a desenterrar. O morto era mulato e vestia a fardeta de soldado de um dos regimentos que, das outras províncias, haviam ido em auxilio do Pará. Tinha o peito varado por duas balas e uma das pernas dilacerada pelos dentes do meu guarda fiel. O rasto dos que fugiam desaparecia no fim do areial, á beira do rio. Provavelmente ali os esperara a canoa em que tinham vindo e na qual reembarcaram mas os signaes de sangue e a impressão de alguns passos mais profundamente marcados na areia, radicavam que o morto deixado não fora o único ferido pelas nossas balas. Talvez que outros corpos fossem confiados ao Xingu, cujos monstros sabem ás vezes guardar melhor um segredo do que as sepulturas da terra. O certo ó que nunca mais ouvimos fallar dos que foram nem dos que ficaram.

Este facto não foi único; houve differentes assaltos d'esta natureza, e nem sempre os malvados encontraram para recebe-los homens com a bravura e sangue frio de Carmello. Muitas canoas dos negociantes chamados regatões foram tomadas por elles, roubadas e desamparadas ás correntes dos rios, depois de assassinadas as guarnições. E se não fora a justiça summaria e a energia do general Andréa, presidente da província, só Deus sabe como e quando esta se veria livre dos malfeitores cabanos e seus associados!

O cão Rabicho seguiu ainda durante alum tempo a minha fortuna pelo Amazonas; e quando uma doença prematura me privou da sua affeição, reguei com lagrimas sinceras a sepultura que lhe abri na costa de Paricátiba, na margem direita do Amazonas, consagrando á sua memória os primeiros quatro versos que escrevi e foram gravados n’uma lápida de itaúba (Acrodiclidium Itauba).





Seria assim o grande Rabicho ?