domingo, 27 de fevereiro de 2011


Wenceslau de Morais


Teria eu os meus dezoito ou vinte anos quando comecei a ler os livros de Wenceslau de Morais. Não sei quais e quantos li, mas a verdade é que me “apaixonei”, como ele, pelo Japão, e sonhava em como seria bom ter para mulher uma “geisha”, com toda aquela cultura de dedicação ao lar, ao marido, procurando fazê-lo, sempre, feliz!
Mas nessa altura, há já alguns anos, eu tinha a minha “futura geisha” lusitana, que não largava de jeito nenhum, e prova disso é que, fora o tempo de namoro, de casados vão quase 57 anos, e os sonhos das japonesas, sempre desfeitos ao terminar cada livro!
Mas isso não impede que continue a ter pela leitura de Wenceslau e Morais, o mesmo gosto.
Um homem que “jogou tudo para o ar” para gozar a sua independência, a sua paz, enfim, a sua vida sem interferências de chefes, burocracias, e outros males semelhantes que nos torturam e aprisionam.
O texto que segue mostra o sofrimento de um homem, que conquistou a sua liberdade, a sua paz, ao ver um semelhante, sim, semelhante, preso, a sofrer.


OS BICHOS, NOSSOS IRMÃOS

Visitei hoje, pela segunda vez, uma exposição zoológica que aqui se estabeleceu há poucos dias e vai já seguir para outra parte, colhidos alguns cobres. Entrando no recinto, relanceei apenas o belo tigre, voltei as costas ao urso branco e não fiz caso da outra bicharia; passando rapidamente entre gaiolas até ao meu destino, pois ia ali com o único propósito de dizer adeus a um amigo, o orangotango.
Lá estava ele, na sua estreitíssima prisão, entre grades, como eu o vira anteriormente e desde então lhe votei intensa simpatia.
Que olhar!... Naquele olhar, que abismo de profundíssima tristeza!... Que epopéia inteira de angústias!... Só vendo-o, só vendo-o como eu o vi, é que se pode compreender tamanha dor!...
Fazia um frio cortante, de princípio de Fevereiro. Fora, junto das grades, de uma velha lata de folha improvisara-se um braseiro, onde ardiam carvões, em atenção ao pobre bruto. É que o orangotango (a palavra é malaia e quer dizer — homem dos bosques), tirado de Bornéu, a sua ilha de clima ardente, e trazido para climas frios, morre de tísica; por certo, a boa alma que comprou, e talvez caro, o exemplar que eu tinha à vista, cuidava de retardar quanto possível, por óbvios motivos económicos, o triste desfecho inevitável.

Por cerca de meia hora, pus-me a contemplar o homem dos bosques. Tinha a aparência de um velho, ou antes de um pobre ente envelhecido de sofrer. Na face, emaciada, quase humana, traduzia-se principalmente a expressão de uma enormíssima canseira, de uma enormíssima desesperança, amenizadas por uma resignação quase cristã!... Conservava-se de ordinário deitado sobre a enxerga. Tinha entre as mãos um martelo, que o guarda, julgo, lhe lançara por dó, para com ele se entreter, como um brinquedo, nos seus constantes ócios. Maquinalmente, ora mirava a cabeça do martelo, ora mirava o cabo, abandonando-o após, enfastiado. Variando de diversão, começou a puxar da enxerga rota algumas palhas que metia entre os dentes, mordicando-as. O guarda então zangou-se, berrou, ameaçou o prisioneiro com os ferros com que ia atiçando o fogo do braseiro, o que lhe provocou um gesto e um olhar terríveis, gesto e olhar de medo, justificado sem dúvida por experiências anteriores, gesto e olhar de ódio, de impotência, de alucinação, mas que só durou um momento, voltando o homem dos bosques à sua compostura habitual, de mártir resignado. Passou a mão nervosa sobre a fronte, encostou a cabeça às grades da gaiola; parecia querer chamar o sono, mas o sono não lhe vinha...

A populaça ria.

Eu estava aterrado, pensando, pensando, nem eu sei em que pensava!...

No divagar do pensamento, julguei ter visto já e ser-me mesmo familiar a fisionomia do cativo. Ah, não havia dúvida, era ele!... Eu via-me em presença daquele tipo, já hoje legendário, do bem conhecido Zé-povinho, que Rafael Bordalo, o grande artista, tantas vezes traçara com o seu lápis, há vinte ou trinta anos, nos papéis. Tive então a ilusão nítida de contemplar naquele cárcere um mísero homem do povo, um carpinteiro português, a quem por escárnio houvessem consentido que trouxesse consigo a ferramenta do ofício; condenado, sem culpa formada, a cativeiro perpétuo, até que a tísica... o indultasse!...

Ia gritar-lhe: — Ó, patrício!... — quando volvi à noção da realidade, não muito, menos cruciante, todavia. Não era o Zé-povinho que ali estava. Era um simples homem dos bosques, um macaco, arrancado de Bornéu, da sua bela selva, ensombrada e abrasadora, arrancado da sua família de macacos e vendido a um empresário japonês; já agora, condenado a correr de terra em terra — de Kobe para Tokushima, de Tokushima para Osaka, de Osaka para Kyoto — por este clima inconstante que é o clima do Japão, onde alternam verões sufocantes, dignos de Bornéu, com invernos rigorosos de neves e geadas; tendo por domicílio o cárcere, por divertimento um martelo, por carícia o contacto de dois ferros incandescentes e por esperança... a tísica!...

Quando julguei não dever mais prolongar a minha visita, aproximei-me da gaiola e murmurei ao homem dos bosques: — Adeus, meu amigo, boa viagem; e até breve, não é verdade?... — E retirei-me, sem esperar pela resposta...

(O Bon-Odori em Tokushima, 1916)

21/02/2011











quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011


Mais histórias do século...

repassado!

 

Coisas de Camilo
.
e António Arroyo



Nestas pequenas histórias, com graça, que a seguir se contam, entram algumas personagens portuguesas, do século XIX, bem conhecidas até hoje!

O cão do Camillo.

Num dos seus manuscritos, conta Francisco Gomes de Amorim:

“Camillo Castelo Branco veio a Lisboa em 1858 e trazia um enorme cão de gado que foi cobiçado por Alexandre Herculano. Camillo voltou para o Porto e ali recebeu de um certo Soromenho (creatura de H.) a insinuação para que offerecêsse o seu cão a A. H. (Alexandre Herculano) que m.to lho agradeceria. Camillo mandou logo o cão e H. em recompensa propô-lo na Academia Real de Sciências para sócio correspondente. Camillo foi proclamado por Herculano um homem dos de maior talento do paiz (e realmente o tem). Mas o mais engraçado é que Camillo teve saudades do cão, a quem devia já a honra de o ter feito academico, e voltando a Lisboa pediu-o emprestado a Herculano. E nunca mais lho mandou. Este agora prega contra elle e manda procramá-lo um grande patife!!!
  Alexandre Herculano num postal da
Union Postale Universelle (adivinha-se a sua assinatura)

*****

Excerto duma carta de Camilo Castelo Branco a seu amigo José Barbosa e Silva

“Meu caro Barbosa
A tua requisição do colete veio desatar um nó górdio, do qual, e para o qual eu tinha sido um Alexandre tão desasado quanto vais ver da exposição dum joguinho em que tu perdeste, como o boticário de Tolentino.
Foi o caso. Entre o meu fato aparecia um colete preto que revelava uma barriga como a que tenho sonhado nas minhas ambiciosas aspirações a presidente de câmara de S.Tirso onde espero comprar quatro courelas que me dêem censo e senso.
Perguntei dez vezes à D. Eufrásia e à estúpida filha que diabo de colete era aquele. Responderam-me que tal qual viera num dos meus baús de Lisboa. Teimei que não era meu, redargüiram-me que eu talvez por engano o enfaixasse com a minha roupa. O engano parecia-me parvoinho; porém, como à saída do Hotel Central o meu baú foi arranjado por uma criada, supus que algum hóspede pagou a inadvertência da criada.
Nesta conjecturas tomei posse do colete, e mandei-o enfaixar com outra roupa condenada a uma venda inglória e obscura em casa de onzeneiro adelo. Tristíssima sorte foi a do teu colete, meu caro Barbosa. Chora-o, como eu o chorei, quando o adelo me mandou há pouco dizer que um passageiro incógnito lho comprara. Sabes agora a esperança que me resta? É engordar suficientemente para servir de molde ao alfaiate, e mandar-te fazer um colete que desbanque o outro na finura do lemiste, e na recherche da abotoadura. Entretanto fulmina com toda a tua iracunda a estupidez da filha da D. Eufrásia, à qual a mãe já transmitiu quatro solenes bofetadas por causa do colete. Se me não levas a mal escreverei um necrológio ao tão ignobilmente perdido colete, depois de lhe teres fadado tão alto destino, como o de aparecer no Chiado, e roçar as colchas admascadas dalguma condessa de porcelana, ou de biscuit que é mais delicado.”

Do livro “Correspondência de Camilo Castelo Branco” – Obras de Alexandre Cabral, Vol II.

*****

Mais duas histórias contadas por António Arroyo:

“Os padres levavam por vezes muito longe a sua ignorância e inconsciência. Numa aldeola das margens do Douro, a montante de Entre-os Rios, assisti eu a um baptisado, há mais de quarent’anos. O padre, já edoso, tossia. Apesar disso, segundo o ritual, depois de ter mecanicamente lido uns latins, passava um dedo molhado na sua saliva pela boca do pequenino que, poucos dias depois, morria de coqueluche, ou coisa que o valha. Nessas terras vivia-se então na idade media. Ninguém acreditava em micróbios; ninguém os vira.

*****

Curioso exemplo de vergonhosa superstição em “matéria medica”, o seguinte caso que tive varias ocasiões de observar numa humilde freguesia do baixo Alentejo. Aí por 85 ou 86, adorava-se na matriz da terreola um santo, não sei já se de barro, se de madeira, “que tinha virtude contra a raiva”. Cão danado, pessoa ou animal mordido por ele, era levado ao abade, desbocado borrachão já hoje falecido, que aplicava a mais rápida cura. O santo tinha na cabeça um buraco onde ele metia um pedaço de pão que primeiro mastigava. Passado “o tempo necessário”, partia o pão em dois, dava metade a comer ao paciente e conservava a outra metade no buraco do santo até que o “vírus” perdesse a energia.
Uma ocasião disse-lhe que era triste abusar-se assim da pobre gente, explorando-lhe a credulidade.
- O snr, quer que eu morra de fome? Gritou ele; a terra não dá nada. Isto é uma miséria.
Só dava para ele se emborrachar.”

Do livro “Singularidades da Minha Terra”, 1917.

30/jan/2011















domingo, 20 de fevereiro de 2011


Duas histórias de VOLTAIRE

 

Voltaire gostava de representar as suas tragédias no seu teatro em Ferney: o seu maior prazer era de aí representar um papel; nunca algum comediante, o mais entusiasta, se tinha ocupado com tanto ardor, como ele, com o personagem lhe que cabia.
Queria que o seu traje ficasse pronto com oito dias de antecedência, e dava uma imensa canseira aos alfaiates pelas freqüentes e minuciosas alterações que lhes mandava fazer. Um dia, devia representar o papel de Cícero em Catilina, vestiu logo pela manhã a sua toga romana, e saiu para o jardim a recitar o seu papel; que interrompia para dar algumas instruções ao jardineiro.
Este espantado de ver o seu amo naquela figura não conseguiu reter uma gargalhada. Voltaire irritou-se profundamente:

- “O que você acha de estranho na minha roupa? Cícero passeava como eu no seu pomar antes de ir para o senado: eu o represento esta noite; acha que deveria usar duas toiletes?”
Voltou para dentro de casa de mau humor sem perdoar ao jardineiro de ter rido no nariz de Cícero.



 O belo palácio - Chateau - de Ferney


Voltaire gostava muito dum filhote de águia que vivia presa numa gaiola no seu palácio de Ferney. Um dia o jovem – águia – se envolveu com dois galos e foi gravemente ferido. Voltaire, desolado, mandou um “expresso” a Geneve com ordem de trazer um homem que passava por hábil “médico de animais”. Na sua impaciência não fazia outra coisa se não ir do ninho do pássaro à janela do seu quarto, donde se avistava a estrada; por fim apercebeu-se do seu mensageiro trazendo atrás o “que Esculápio tanto desejava”; deu um grito de alegria, correu para ele, recebeu-o de forma especialmente acolhedora, pediu-lhe e prometeu-lhe muito, em favor do seu doente. O aldeão muito espantado com aquela recepção a que não estava acostumado, examinava as feridas da jovem águia. Voltaire inquieto, procurava ler nos seus olhos os seus receios ou esperanças. O “doutor” declara com ar convicto que não se podia pronunciar antes do nascer do sol, e prometeu voltar no dia seguinte, depois de ter sido generosamente pago. Até ao dia seguinte Voltaire não sossegava; enfim a decisão foi que não respondia pelos dias da águia. Nova fonte de inquietudes.
A primeira pergunta que Voltaire fazia cada manhã a uma das suas criadas, chamada Madalena, encarregada de o acordar, era: “Como está a minha águia?” – “Bem docemente, meu senhor, bem docemente.” Um dia Madalena responde-lhe a rir: - “Ah! Meu senhor, a vossa aguiazinha já não está doente.” – “Ele melhorou! Que benção!” – “Ele morreu!” – “Morta a minha águia! E você me anuncia essa notícia a rir?” – “Pela minha fé, meu senhor, ele estava tão magro!” – “Como magro!” gritou Voltaire, furioso; “que bela razão! Você não tem outra coisa a fazer se não matar-me porque eu sou magro. Olha a velhaca! Rir da morte da minha pobre águia porque estava magra! Lá porque você tem o cu gordo, pensa que só a gente da sua espécie tem direito à vida? Saia, saia já daqui.”



 Voltaire... magrinho!


Madame Denis acorreu aos gritos do seu tio, e perguntou-lhe porque estava tão colérico. Voltaire contou-lhe, sempre resmungando: “Magro! Magro!... é preciso então que me matem, a mim...” E exige que Madalena seja despedida. A afeiçoada sobrinha tem que obedecer, e manda que a desgraçada se mantenha escondida no palácio. Ao fim de dois meses Voltaire perguntou por ela. “Ela esta bem infeliz, diz-lhe madame Denis; não conseguiu arranjar trabalho em Geneve desde que se soube que ela tinha sido despedida do palácio de Ferney.” – “É culpa dela. A que propósito rir da morte da minha águia só porque estava magra?... Mas também não quero que ela morra de fome; manda-a voltar; mas que nunca mais se apresente na minha frente, entendeste?” – “Oh! Meu tio, ela terá cuidado.” – “Mas que tome atenção.”
Eis que Madalena sai do seu esconderijo, mas evitando encontrar o seu amo.. No entanto um dia Voltaire ao sair da mesa, encontra-se face a face com ela; Madalena fica aflita, baixa os olhos, cora, e quer balbuciar alguma desculpa. – “Não falemos mais nisso” disse-lhe Voltaire; “mas ao menos lembra-te que não é preciso que me matem por eu ser magro!”

“Avant-Propos” in “Pensées, ... de Voltaire” – Imprimerie de A. Égron. An X. 1802. Ouvrage posthume.

Rio, 19/02/2011

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011



REVOLUÇÕES
E
PARTIDOCRACIA


“Ter coragem física não é muito difícil;
o que é difícil e valioso é ter atitudes racionais
e coragem moral.”
(Armando M. Janeira in Introdução a “Antologia” de Wenceslau de Morais)

”Este mundo não é um mundo de anjos;
quem o julgar assim e for desiludido,
só tem que culpar a própria ingenuidade.”
Wenceslau de Morais
.
Parece, só parece, que a democracia, será a menos pior forma de governo. Mas essa “coisa” de democracia há muito que sumiu da maioria dos governos do mundo. Sobram só uns tantinhos, que insistem, insistem, bradam, bradam, mas o seu exemplo não é seguido. Basta ver, por exemplo, a velha República DEMOCRÁTICA da Alemanha, a democracia em Angola, Congo, etc.!
A tal democracia representativa (algumas vezes chamada "democracia indireta"), onde o povo expressa sua vontade (ou ignorância?) através da eleição de representantes que tomam decisões em nome daqueles que os elegeram, só funciona onde o nível cultural dos eleitores for MUITO alto.
Ao que normalmente se assiste é a um partido, por qualquer razão majoritário, alcançar o poder, e depois governar-se; a si e sua camarilha. Quando forma coligações, o escândalo aumenta, pela constante compra de votos, ficando a esperança, ao povo, o tal eleitor, que eles um dia se entendam. Porque governar para o bem de todos, do país como um todo, sem previlegiar os compadrios, ou compartidários, isso é coisa rara. Deve ser até uma espécie louca.

Mas é nessa espécie que os olhos do mundo se põem, à espera do milagre acontecer em todo o lugar, ou aguardando séculos de instrução e cultura, ou através de revoluções.

Lembram da Revolução Francesa e os anos, largos anos, de terror e total anarquia, antes da chegada de Napoleão?
E a bolchevique, seguida de setenta anos de profundo desprezo pelo povo, em todas as repúblicas democráticas sovieticas!
A famosa revolução no Irã contra o babaca do Xá, transformou uma monarquia no pior governo deste planeta: a teocracia.
Outra revolução “popular” foi em Cuba. Deu na democracia fidelista. Há cincoenta anos!

A chamada Revolução dos Cravos em Portugal, teve passagens curiosas e dolorosas. Em primeiro lugar não foi uma revolução popular, como a que assistimos, torcendo para que vencessem... na Tunisia e Egito. Os cravos que quase não existiam em Portugal chegaram na manhã da “revolução”, de Paris, aos milhares e milhares, ecomendados com a devida antecedência pelo unico partido organizado, clandestino, o comunista! Uma “revolução” de capitães que não queriam a concorrência de milicianos e estavam cansados da infindável “guerra colonial”; num instante foram dominados pelos comunistas que mandaram e desmandaram, enquanto, pela violência, o que lhes era ingénito, aproveitaram para saquear o país e destruir a sua economia. Quando ao fim de alguns anos se conseguiram fazer eleições, os comunistas que dominavam tudo, ou quase, receberam 10 ou 12% dos votos, grande parte deles oriundos dos que se tinham apropriado de explorações agrícolas, indústrias, bancos, etc. Que deixaram destroçados.

Na Polónia, no fim da II Guerra, com o exército soviético a ocupar o país, fizeram-se eleições. Os comunistas tiveram 9% dos votos e... com os outros 91% dos canhões, ali ficaram e desmandaram até ao, esse sim famoso, movimento do Solidarinosk, que culminou com eleições livres em 1989.

Estava aceso o rastilho que derrubaria o Muro de Berlim e logo a seguir o regime soviético.
Foi uma época vivida com imensa intensidade e entusiasmo por quem queria liberdade, e por aqueles que já se sentiam livres.

Hoje estamos numa conjuntura semelhante. A Tunísia deu o “grito” e as monarquias/ditaduras/sultanatos e sheikatos árabes começaram a cair, mas...

Ninguém ainda pode prever o que se vai passar no mundo árabe. Mas sabe-se que tanto na Tunísia, como no Egito, e ainda na Argélia, Iemen, etc., “Los Hermanos Musulmanes” são a única força organizada! Podem não ser maioria, mas...

Apesar de terem sido dois movimentos populares maravilhosos, os olhos do mundo estão voltados para o desenrolar dos acontecimentos, e para a esperança de autêntica, ou quase, democracia, que todos almejam e merecem, e que seria um profundo golpe nos fundamentalistas, a Al Qaeda.

Em Portugal havia uma sólida estrutura administrativa que nada tinha a ver com política, nem partidos (aliás só havia um, a União Nacional) e todos os serviços funciovam normalmente. Até isso os vermelhos conseguiram desestabilizar.

E nestes países árabes, será que as estruturas administrativas, que estavam fortemente manietadas, vão conseguir organizar-se e funcionar, independente de quem ficar com o poder?

O problema se repitará: se um partido só ganhar a maioria, pode dar mau ou péssimo resultado. Se houver que fazer coligações e os decendentes de milhares de anos de história quiserem, MESMO, um país democrático, vão ter que continuar a sair às ruas para imporem o bem geral

Que Deus, Allah, Jeová, Nzimbo ou que tenha qualquer outro nome, os ajude e proteja.
Vamos cantar com Verdi “Gloria all' Egitto”


Rio 13/02/2010



sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O bom governo


JOÃO LUIZ MAUAD


Sempre gostei de aforismos. Encanta-me a capacidade de certas pes¬soas para, em poucas palavras, transmitir mensagens para as quais eu precisaria de algumas laudas. Nietzsche disse certa vez: "Minha ambição é dizer em dez frases o que outro qualquer diz num livro, o que outro qualquer não diz nem num livro inteiro." A coletânea de citações abaixo é dedicada aos novos governantes do país, na esperança de que este pequeno re¬sumo do pensamento liberal possa, se não lhes servir de guia, ao menos fazê-los refletir sobre o real significado de governar.

"Os governos existem para proteger os legítimos direitos à vida, à liberdade e propriedade" (John Locke). (Conhecem o MST e a banditagem das droga e polícia corrupta?),

"Devemos dizer ao povo o que ele precisa saber e não o que ele gostaria de ouvir" (J. F. Kennedy). (Lembram-se dos discursos do “palhaço?)

"O maior cuidado de um governo deveria ser o de habituar, pouco a pouco, os povos a dele não precisar" (Alexis de Tocqueville). (Seá por isso que a máquina “governamental” cresce cada vez mais?)

"As leis abundam em Estados corruptos" (Tácito). (Tal qual no Brasil)

"Não se deve confundir Estado forte com Estado grande" (Roberto Campos). (O lula dizia que no Brasil tinha que haver pesada carga de impostos, porque somos um país rico!)

"Quando os cidadãos temem o governo, temos uma ditadura; quando o governo teme os cidadãos, temos liberdade" (Thomas Jefferson). (E quando despreza?)

"Se pudermos evitar que o governo desperdice o trabalho das pessoas sob a pretensão de ajudá-las, o povo será feliz" (Thomas Jefferson).

"Se tivesse que decidir se devemos ter governo sem imprensa ou imprensa sem governo, eu não vacilaria um instante em preferir o último" (Thomas Jefferson). (Eles bem queriam por uma rolha na imprensa!)

"Mesmo o melhor dos governos não é mais que um mal necessário" (Thomas Paine). (mal ou desgraça?)

"Não há nada mais inútil do que fazer eficientemente aquilo que não se deveria fazer" (Peter Drucker). (Tal como PAC que depois de mil promessas não alcançou 25% do prometido! E 4,8% no Rio)

"O governo é um mau gerente" (Peter Drucker).

"O menos ruim dos governos é aquele que se mostra menos, que se sente me¬nos e a quem se paga menos caro" (Alfred de Vigny). (O palhaço andou a pavonear-se pelo mundo beijando Ahmanidejad e outros cretinos, e tudo isso custou uma fábula. Por fim foram necessários onze caminhões para retirar da residência de Brasília os presentes que recebeu e aquilo que roubou, como um caminhão de vinho! E não era do barato, nem nacional.)

"Dinheiro público é como água benta: todos querem colocar a mão" (Provérbio italiano). (Infelizmente, por aqui, ainda muita água benta e milhares deles sequiosos)

"A inflação é um imposto que se apli¬ca sem que tenha sido legislado" (Milton Friedman).

"Um governo é bom ou mau não só pelo que faz ou deixa de fazer, mas pelo que permite ou impede que se faça". (Jerry Brown). (No governo do PT... o que se fez?)

“Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário" (James Madison).

"Pouco mais é necessário para elevar um Estado do mais baixo nível de barbarismo ao mais elevado grau de opulência do que paz, impostos leves e uma razoável administração da justiça" (Adam Smith). (Boa piada!)

"Todo poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente" (Lord Acton). (E, olha como corrompe!)

"Quanto mais proibições impuserem, menos virtuosas serão as pessoas" (Lao-Tsé). (Por isso as coisas são de tal forma complicadas que duram eternidades para... às vezes não se resolverem)

"É estúpido deixar as decisões so¬bre economia àqueles que não paga¬rão preço algum por equivocar-se" (Thomas Sowell).

"O mercado não é uma invenção do capitalismo... É uma invenção da civiização" (Mikhail Gorbachev).

"Todo governo que ousa fazer tudo, acaba fazendo nada" (Winston Churchill). (Está à vista!)

"O vício inerente ao capitalismo é a divisão desigual das riquezas. A virtude inerente ao socialismo é a repartição igualitária da miséria" (Winston Churchill).

"A diferença entre um estadista e um demagogo é que este decide pen¬sando nas próximas eleições, enquanto aquele decide pensando nas próxi¬mas gerações" (Winston Churchill). (Aqui ninguém pensa nisso !!!!!!!!!!!!!!!!! Aliás, SÓ pensa!)

"Não onere os negócios com custo alto ou com muitas regulamentações. O resultado será o desemprego" (Margaret Thatcher).

"O governo não pode dar nada ao povo que primeiro dele não tenha tirado" (Richard Nixon). (E como tiram! Os medicamentos custam três e quatro mais vezes do que na Europa, os carros produzidos no Brasil custam nos países que os importam 25 a 30% menos, e etc.)

"As leis inúteis debilitam as necesárias" (Montesquieu). (Podes crer! E a imunidade dos parlamentares que deviam estar na cadeia e conseguiram adiar os processos?)

"O governo não pode fazer os homens ricos, mas pode empobrecê-los" (Ludwig von Mises).

"A lei não é o refúgio do oprimido, mas a arma do opressor" (Frederic Bastiat).

"O governo e os negócios devem manter-se independentes e separados" (Calvin Coolidge). (Difícil! Olhem como o lulinha que era um miserável está milionário. Talvez biliardário. Eles os irmãosinhos!)

"Onde há muitas leis específicas é sinal de que o Estado está mal governado" (Isócrates). (óbvio)

"A diferença entre um Estado benfeitor e um Estado totalitário é questão de tempo" (Ayn Rand).

"O melhor governo é aquele em que há o menor número de homens inúteis" (Voltaire). (Com esta estamos numa tremenda enrascada)



JOÃO LUIZ MAUAD é administrador de empresas.

(Do jornal “O Globo” 06/02/2011)



N.- Os comentários aos pensamentos são de minha autoria.

E mais alguns para a coleção do Sr. Mauad:



“As maiorias nunca têm razão” (Ibsen)

“O governo não é estabelecido para vantagens dos governantes, mas dos governados.” (Sidney Smith) Vai contar esta em Brasília, ou em qualquer estado ou município do país!!!!

“Aos governos, como aos homens, chega tarde o uso da razão”. (Voltaire)

“Nenhum governo é mais detestável como aquele que mais convém ao povo”. (Plínio)

“A verdadeira república não está na forma de governo, mas no respeito dos direitos nacionais e particulares.” (De Lartigue)

“Da corrupção do ótimo, gera-se o péssimo.” (Seneri)

“Se há alguém a quem a vaidade faça feliz, com certeza esse homem é um tolo.” (Rousseau) Estão a pensar em quem?

“O idiotismo e a vaidade são dois irmãos que sempre andam juntos.” (Guijardo) Faz-me lembrar de alguém...

“A estupidez humana é a única que nos pode dar a noção de infinito.” (Renan)

“Antes emagrecer na honra que engordar na infâmia.” (Arnault) Já viram as barrigas do Sarney e quejandos?

“São os humildes como a água encanada, que quanto mais desce, mais alto pode subir.” (Cervantes).

Vai longa a lista! Por hoje chega.
 
Francisco G. de Amorim
 
09.02.2011

domingo, 6 de fevereiro de 2011



SÉCULO XXI



Todo aquele que tenha um espírito que
verdadeiramente pense e sinta,
não pode deixar de ter sobre si,
num peso contínuo, todas as dores da vida.
Miguel Ângelo



Para quem nasceu quase no tempo em que um só pelo da barba seria garantia suficiente para o compromisso de qualquer negócio... e assiste hoje a um capitalismo, aliás não é já capitalismo mas financismo desenfreado, louco, absurdo, ignóbil, doentio e violento, pára para pensar qual o destino da humanidade!
Não estaremos no fim do mundo, se bem que o pareça, mas no início, no caos. E isto é o único consolo que se pode encontrar, para as gerações vindouras. As atuais vão sofrer muito.
Saiu há dias, em Portugal, uma nova “Revista de Cultura – Finis Mundis”, com uma série de textos interessantes, mas um deles chama especialmente a atenção, “O Financismo, Estágio Intermédio do Capitalismo”, escrito por um professor russo, Aleksandr Dugin. Mas, ao ler o texto com atenção, encontram-se afirmações, que nem suposições são, que nos levam a pensar sobre o que se passa neste mundo.
“O pensamento marxista padece de uma incapacidade para escapar aos limites do paradigma industrial, e o drama do derrube do sistema soviético materializa na história esta falha conceptual de contornos inequívocos.” (até aqui...) Continua:
"O sistema liberal soube:
- Dissolver o proletariado;
- Prevenir a sua consolidação num partido revolucionário à escala mundial.”
Com o contínuo esmagamento, que o atual financismo desenfreado impõe à classe trabalhadora, ou proletária, que o dito professor diz que acabou, à escala mundial, com um contínuo, e aparentemente interminável crescimento do desemprego nos países do ocidente, não parece ser difícil de antever que não faltará muito para estourar uma revolução, se não socialista, em termos marxistas, mas social. Na Europa e Estados Unidos o desemprego aumenta, apesar de todas as manobras dos governos para financiar o crédito a oligopólios a custo zero, e a particulares que pagam a diferença, e a indústria automóvel que só leva a gastos e poluições, em África a fome continua, na Europa e Estados Unidos para lá caminham, o fato é que cada vez mais o tal proletário vai ter que enfrentar um tremenda luta. Nos países árabes, onde as revoluções estão acontecendo, ainda não se percebe se é o avanço do fundamentalismo, se um grito da democracia, ou do tal proletariado com fome.
Por ora as opiniões divergem, mas se os fundamentalistas querem, à força, dominar todo o mundo árabe, há muitos outros, mesmo sendo muçulmanos, que já não aceitam a lei do Corão, a xaria, etc. A luta que ainda agora começa e já fez muito rei, sheik, ditador, e até os aiatolás, pôrem as barbas de molho, parece antever uma tremenda guerra entre eles. E todos nós vamos pagar por isso.
O petróleo irá atingir preços astronômicos, as comodities, se já estão em preço absurdo vão aumentar ainda mais, com a escassez e o custo dos transportes, e, esses tais financistas, que ganham, ou perdem fortunas, com um simples toque de tecla na Internet, e estão a promover, com desculpas climatéricas, o brutal aumento dos produtos alimentares básicos, vão aproveitar ainda mais o momento da desgraça.
O trigo, pelos fogos na Rússia, disparou; mas, e a soja, o café, o milho, e outros? Houve secas e inundações, mas aumentar alguns dos produtos básicos da alimentação, em até cinqüenta por cento, só pode dar revolta. Em todo o mundo.
Voltemos ao prof. Dugin:
“O financismo é um módulo de estádio do desenvolvimento do paradigma capitalista.”
“O financismo coroa a lógica do capitalismo e representa em si o último “supremo” estádio da alienação.”
“O financismo representa em si o cume do desenvolvimento da economia moderna.”
“O financismo não é um problema mecânico, um desvio do paradigma (o tradutor gosta de paradigmas!) econômico do capitalismo, mas sim uma etapa normal do seu desenvolvimento, a etapa do triunfo mundial.”
E, só mais este brilhante “paradigma”:
“Lamentarmo-nos pelo fato dos volumes de especulação das bolsas mundiais superarem em muito os balanços dos países desenvolvidos, ou porque as transferências fictícias de capitais impedem o desenvolvimento dos setores produtivos, desviando os investidores para as esferas da economia ilusória, é estúpido ou irresponsável.”
Após outros considerandos, o professor termina:
“É impensável conceber uma Alternativa a partir das esferas simplesmente econômicas. A Alternativa deverá ser transcendente no que diga respeito a todos os discursos modernos. O anti-financismo deve ser o nível superficial de uma mais profunda e radical luta contra o capitalismo e o liberalismo, luta que tem como condição prévia a exigência de não derivar de interesses pragmáticos, mas sim da dignidade da espécie humana, espécie que tem vindo a clamar demasiado no abismo do mundo desencantado e da morte de Deus, espécie que não nasceu para perpetuar o niilismo, mas sim para reconhecer-se numa elevada ontologia, na sacralidade, justiça, fraternidade, liberdade e igualdade.”
Por fim, o que pensar de tudo isto, quando sabemos já que comunismo só é praticável na teoria e no verdadeiro amor a Deus e ao próximo, o que praticamente não existe nos primatas, as democracias e as liberdades que têm levado os homens ao ponto que parece não ter retorno – a destruição das famílias, o sexo desenfreado e demasiado explícito em todos os horários da TV, a violência, crimes de toda a ordem, cadeias cheias, o uso de drogas e o consequente e brutal narcotráfico imparável, etc. – ou as monarquias como um símbolo, rico e inoperante, quando para símbolo basta uma palavra?
Estamos a viver uma época extremamente perturbada, difícil, sobretudo para os jovens, e por muito que se pense não se consegue, nem antever, quanto mais propor, a tal Alternativa.
A bomba atômica não vai resolver. Mas... com o caminho que tudo está tomando, não será para admirar que algum louco se atreva a lançar a primeira, para em seguida surgirem pelos ares mais umas dúzias.
Talvez o caos em que estamos, acalme. Nessa altura os engenheiros, os professores e os mestres, que sobreviverem, serão os primeiros a morrer de fome. Poucos já sabem plantar uma batata ou um pé de milho.
Voltará a humanidade umas dezenas de milhares de anos para trás, para recomeçar a evoluir e chegar ao mesmo patamar de podridão em que hoje se encontra!
E repetirá; mais uma vez, e outra, e outra, e assim por essa eternidade.


Rio, 5 de fevereiro de 2011

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011



Penamacôr

12 de Março de 1748



Cópia de uma carta que mandou o Dr. Manoel Soares Corrêa, juiz de fora, que foi de Penamacôr, ao seu amigo Francisco Alves, pintor da vila da Covilhã, pedindo-lhe que pinte num quadro o recebimento e baptisado de sua filha, e a morte de sua mulher a Illma. D. Brites:

“A pena com que pego na pena é tão grande e tão publica, que escuso de lha contar, pois vocemecê saberá que quis Deus levar a D. Brites onde ela só sabe; mas é certo que foi para o céu, que é a morada dos anjos, que ela foi neste mundo; e como a tenho em presença de minha memoria, quero também retratá-la em casa; e assim remetto a vocemecê um pano de estopa para que n’ella pinte com as tintas mais finas que tiver, três representações em um só quadro, que se ha de pôr na sala para memória deste infausto caso, com as figuras seguintes:

Recebimento

Vocemecê bem viu D. Brites de marca ordinária; grossinha de corpo; o rosto não era muito comprido nem largo; entre clara e morena; os olhos entre azuis e pretos, com a côr de chumbo desmaiado; o nariz à flor do rosto; cova na barba; dentes brancos, beiços grossos e alguns sinais de bexigas; o cabelo entre louro e castanho, toucada como na corte, vestida de côr de goivo (veja que há de ser de seda e não de lã).
Ao pé d’ella ponha vocemecê duas moças vestidas de criadas; a mais velha escada acima, e a outra escada abaixo e a mim me há de pintar tal qual eu sou, com as feições que tenho, e vocemecê sabe; porem vestido honestamente, pela razão do meu cargo, com o meu vestido encarnado, véstia* bordada, e calções com liga de prata; não se esqueça de pôr pluma no chapéu.
O acompanhamento é escusado dizer-lhe; vocemecê o sabe porque o viu. Ponha vocemecê uma igreja de pedra, que é a da freguesia, com três clérigos, um deles vestido ex sacramentis para nos receber; e veja que o dito padre não era alto mas sim clérigo de marca. Deixe vocemecê um campo em branco na pintura para se lhe pôr um dístico em verso, que ainda não passei.
 
Baptismo da minha filha

Pinte vocemecê D. Brites, doente em um pavilhão pardo, e ao pé d’ella uma mulher velha, vestida de moça; e a Oliveira, criada antiga da casa, e vestida de forma que vocemcê já tem visto por aqui; e mais algumas pessoas que assistiram ao parto, com os olhos chorosos e caras tristes por causa do aperto em que D. Brites se viu; o mais fica à sua disposição.
Segue-se logo a um canto a parteira de manto com minha filha D. Maria Soares Corrêa recém nascida, involvida n’um corte de primavera tostada, e por diante guarnecida de prata. O acompanhamento que vocemecê viu seja o mais o luzido que puder debuxar; lembre-se também de pôr todos ao redor da parteira, e os dois padrinhos juntos d’ella, vestidos de encarnado um d’elles com uma vela na mão junto à pia que há de ser de pedra dentro da igreja; o que vocemecê pintará da mesma sorte que fez no recebimento. Aqui deixará também um logar em branco para se lhe pôr uma legenda que há de ser feita por mim.
 
Falecimento de minha mulher
Pintará vocemecê D. Brites deitada na mesma cama; o cirurgião sangrando-a assistindo-lhe as mesmas criadas, ponha uma d’ellas mudada de cara com faltas de somno, de sorte que perceba que é por não dormir quase uma semana; pinte uma a pegar na bacia, e outra a deitar água nas mãos; junto a Oliveira, com uma almotolia na mão d’azeite virada com a boca para baixo, dando a entender que vae buscar mais à despensa; pinte D. Brites com a cara macilenta, enchada, e com aos olhos papudos, com um circulo negro por cima, e outro por baixo; enfim cor de defuncta doente já morta, e as mesmas mulheres compondo-a com o habito de freira vestida em um caixão rico, a cera acesa, quatro cavalheiros de preto para pegarem no caixão, e clérigos em quantidade.
Peço a vocemecê isto como obra sua, e sobre tudo a brevidade para que este coração sinta algum descanso em magua tão grande, de que vocemecê me há de aliviar como amigo. Não se esquecendo de pintar na freguesia uma torre com sinos a dobrarem, só dois dias e meio de manhã à noite.

Penamacôr, 12 de Março de 1748

O dr. Manuel Soares Corrêa

* espécie de jaqueta.



Rio, 02/fev/2011