quinta-feira, 28 de junho de 2012



Histórias da História – 3

ANGOLA

A Jinga e o Baiano

 
Em terras de Quiluanje-Ca-Caconda, Bento Banha Cardoso pediu ao capitão-mor de Cambambe que prevenisse o de Ambaca da disposição dos chefes do Musseque; em resposta ao que a autoridade próxima do Cuanza informou saber do levantamento referido, cujo cabecilha, Angola Calunga, era seguido pelo próprio Cabouco.
Entrementes, o capitão-mor recebeu emissários de D. Ana de Sousa, que lhe entregaram a seguinte carta da rainha:

«Na alma estimo o vir V. M. a essa fortaleza de Ambaca para que como a pai dar-lhe conta como mandando eu umas “peças” à feira de Bumba Aquiçanzo saiu o Aire com guerra, e me salteou umas trinta “peças”, das quais mandando eu tomar satisfação, como a meu vassalo, acertou a minha guerra encontrar com uns nove homens que estavam com o Tigre na terra; e botando estes nove a vir encontrar-se com a minha guerra fora da Pedra(1) quis Deus que dos meus fossem vencidos de onde me trouxeram seis vivos de que me penou muito que na Pedra de Aire estivessem portugueses com guerra de socorro a Aire, aos quais faço muito bom agasalho por serem vassalos de El-Rei de Espanha, a que reconheço obe¬diência como cristã que sou. Ao sábado chegou aqui um criado meu, Moembo, o qual me disse que na Ambaca estava muita guerra junta, e que esperavam por V. M. para a mover contra mim a libertar os portugueses cativos, sendo que nenhuma cousa se quer levada por força, e isso é fazer-me mal a mim, e a eles, porque isso se pode fazer tudo por bem; e se alguns senhores moradores por estarem individados metem ao senhor governador, e a V. M. em cabeça que faço guerra, para se desindividarem, podem fazê-lo, que eu não quero nenhum. Contra o capitão, não se ofereceu outro nosso senhor. Hoje, 3 de Março de 1626 anos. Mande-me V. M. uma rede, e quatro côvados de grã para um cobertor, e uma colcha de mentário, e vinho bom, e uma arroba de cera de velas, e meia dúzia de canequis, e duas, ou três toalhas de mesa de rendas, e umas gravatas roxas, e avinhadas e azuis, e um chapéu-de-sol grande, de veludo azul, ou o que V. M. traz, e quatro mãos de papel. Ana rainha de Dongo».

A esta exposição habilidosa, respondeu o capitão-mor com não menos velhacaria:

«Recebi a carta de V. S. com gosto, e vi o que nela me relata por extenso em que já estava bem porque não costumamos abalar-nos senão com grandes fundamentos, nem bastam moradores de Luanda interessados para mover ao senhor governador, nem a mim a guerras injustas, quanto mais que nem eu venho fazer guerra a V. S. mais que a servi-la e a ampará-la de seus inimigos, quando V. S. tome à primeira obrigação em que nos está guardando com pontualidade a religião cristã a que se obrigou pelo santo baptismo, e dê licença aos quimbares(2) que se venham a seus senhores, por que eu dou palavra serão deles bem recebidos. Dos portugueses não trato porque já me parece que lhes faço mal em os tirar do bom gasalhado e tratamento que V. S. lhes faz, porque eu me dou por obrigado. A pouquidade que V. S. me pede eu lha mandarei logo; mas, como estes vão e vêm pela posta, não podem levar nada, porém eu me vou chegando, e por horas posso ser com V. S. e isso e o mais que V. S. me pede a servirei com gosto. Nosso Senhor guarde a V. S. como pode. Quiluanje-Ca-Caconda» a 15 de Março de 1626. Bento Banha Cardoso».

In História de Angola – Ralph Delgado

***
 
Havia (em Luanda, cerca de 1780, no governo de José Gonçalo Camera Coutinho) hum Bahianno por antonomazia o Farofa, Chicanador em Direito, Bacharel por génio, e não de profissão: Advogado à falta de Doutores, mas suspenso por Embrulhador astucto.
Não tendo outro Officio mais análogo ao seu genio para viver, dirigio hua petição ao General, para obter Provizão que lhe permitisse advogar, relatando a mizeria em q. se achava &a. O General não despacha; mas fasendo hüa analyse do seu trato: de hua certa, e quase commua paixão viciosa, q. o dominava; com a mizeria q. alegava, projectou dar-lhe hum despacho, q. só constasse, e não se visse. Esperou para isso occazíão de avistar-se com algum membro do Conclave murmurante; e ao q. lhe apareceu expôs debaixo de aparencias benignas, Lizongeiras expressoes e injenuidade com q. falava, o requerimento do Farofa, e o despacho q. o tinha difirido: concebido pouco mais, ou menos nestes termos: “Não hé pobre quem se trata, e se sustenta a A... farofa, e não convém que hum tal Doutor advogue por evitar q. a Justissa ande de Herodes para Pilatos”.
Este despacho imaginário, adubado de sal picante, passou logo a negros caracteres, e bem depreça se transcreveo de mão em mão como extracto de hum publico original; o mesmo q. o Ouvio, e o lavrou estava persuadido de q. o Suplicante o possuía, o Ouvidor e o Juiz de Fora, dous únicos Magistrados da terra, se derão por Satirizados nestes despacho: hum de nós, dizião é o Herodes e o outro o Pilatos; e com efeito consta, q. neste dia de inimigos, q. erão, ficarão congraçados em algua amizade; a nossa offença preciza publica satisfação; e para a obter dirigirão ao General, q. os satisfez mostrando-se offendido de semelhante impostura, em q. o seu Caracter era insultado, e os Ministros descompostos. A toda a pressa mandou lavrar uma portaria dirigida ao Juiz de Fora, para devassar deste absurdo. O Juiz comessando então a trabalhar em cauza própria, fes grandes progressos, pronunciando os Actores da Sátira, q. jamais mostratrão o original das copeas q. extrairão, e sepultando na enchóvia toda a assemblea mal dizente. O Ouvidor melhor instruido do disfarce, e não tendo acção para combater o General, se contentou em anullar a devaça do Juiz; asseitou o Agravo dos culpados; condemnou o Pronunciante; e desligou os prezos do Suplicio, não tão brevemente, q. não ja-zessem muitos mezes em prizão. Camera(3) não vio o fim desta tramóia.
Nadando em num mar de disgostos, q. o Ouvidor; o seu ciúme; o próprio génio; e o descontentamento do povo lhe cauzavão, comessava a afligir-se em quanto esperava os recurços da Corte para dezafogar-se. O clima parecia haver-lhe, não só poupado a saude, mas extinguindo a antiga enfermidade da gotta, de q. não foi aftacado des q. pizou Angola: com tudo declarou-se-lhe, como sucessora desta moléstia hua sufocação, q. de tempo em tempo o acometia; athé q. na manhã de 19 de Desembro de 1782 lhe veio tão forte, q. repentinamente o arrebatou desta vida.
O Juiz de Fora, lizongeado da sua amizade, e das conferencias em q. a sua conducta era abonada foi o seu Testamenteiro, e dispôs as suas Exéquias com a descencia respectiva ao seu Caracter; dando-lhe sepultura na capella do S. S. Sacramento da Igreja Cathedral, a q. assistio o Exm°. Prelado. A Plebe, que igualmente se encanta do aparato festivo, e do funebre, com tanto q. brilhe aos seus olhos, concorreo atraz da Tropa, para ver o Espectáculo, q. sim era triste, mas não lhe foi terno. Alguns enfatuados em poder, em riqueza, e independência; mas q. verdadeiramente se poderião conceituar a escoria da mais baxa classe, cometerão a iniquidade de se banquetear à funesta sorte do seu General, saudando sua morte com abundantes Licores; taes são os excessos a que conduz a vingança.

In História de Angola – Elias Alexandre da Silva Corrêa

1.- Pungo Andongo
2.- Guerreiros livres ou cativos
3.-O governador

25/06/2012

segunda-feira, 25 de junho de 2012



Milagre no Lago Paranoá


 

Para quem não sabe, o Lago Paranoá é um lago artificial em Brasília, no Distrito Federal, Brasil.

***

Há já alguns anos o homem surgia de mansinho, ninguém sabe de onde, e ia sentar-se junto ao lago. Ali ficava longe da confusão, do incessante barulho do trânsito, e a procurar ouvir cada pequenino chuá-chuá que as marolinhas daquelas águas vinham fazer junto aos seus pés.
Ainda relativamente jovem, deslocava-se com dificuldade, sempre com uma pequena vara na mão, dando a entender àqueles que o observavam com mais cuidado que devia ser cego.
Alimentava-se de algum pão, uns restos de quentinhas que algumas almas mais atentas lhe levavam, e à noite saia da borda do lago e desaparecia no tumulto. Ninguém sabia quem era, nem onde dormia, mas de dia a sua presença, sempre no mesmo lugar, era como um imóvel.
 

Um dia o Senhor olhou aquele homem, abandonado, e compadeceu-se. Demóstenes, era o seu nome, ouviu um suave chamado, e uma voz macia, perguntou-lhe como se chamava. Demóstenes Lula de Dirceu. Nome estranho diz o Senhor. Foi meu pai, que faleceu era eu ainda menino, que me deu este nome complicado. Demóstenes, porque um dia alguém lhe falou que devia por-me esse nome, de um grande orador grego, e que talvez assim eu pudesse chegar a ser deputado ou senador! Meu pai, pescador, pobre, no dia em que nasci pescou lá no sul do país uma grande lula e achou que era um bom sinal do bom Deus e decidiu que me chamaria Demóstenes Lula. Meu pai gostava muito de lulas! Escorregadias, difíceis de preparar e cozinhar, mas bem fatiadas, e fritas... E a minha mãe, que também já cá não está, sabia através de uma vizinha, senhora professora, que o mais lindo poema de amor composto no Brasil se chamava Marília de Dirceu. E acabei com o nome complicado que, quando criança, na escola e ainda os meus olhos viam, os coleguinhas me chamavam um monte de nomes para implicarem comigo.
Pouco depois do meu pai morrer comecei a ver mal, os médicos disseram que nada podia ser feito, deixei a escola e a minha mãe cuidava de mim. Mas tanto desgosto levou-a também e acabei, com pouco mais de dez anos, sózinho!
Agora estou nesta terra, todos os dias fico na borda da água que me traz algum fresco e vivo dos restos que algumas pessoas me trazem. Sobretudo crianças. Já ouvi até uma dizer aos pais que deviam levar-me lá para casa que ela cuidaria de mim. Só criança, mesmo. Lembro da resposta dos pais: está louca, minha filha! Um homem cego, imprestável, sabe-se lá se até é ladrão! Nunca mais apareceu.
Demóstenes, disse o Senhor, Eu me compadeci de ti e vou repor a tua visão. Quando daqui sair tu vais voltar a ver, bem. Como está um dia de sol terás que andar com os olhos bastante cerrados; com o pouco de dinheiro que sei que tens contigo, compra logo uns óculos escuros.
E lembra-te deste conselho: fala pouco, e dirás sempre que não viste nada, que não sabes de nada, que não conheces ninguém. Nesta terra é a melhor maneira de te dares bem.
A seguir, um silêncio profundo, Demóstenes começa por ver um clarão, muito sol, muito reflexo na água, e não sabia se havia de gritar de alegria ou de se ajoelhar agradecido. Olhou, com dificuldade ainda, à sua volta e não viu ninguém.
Olhos semi-cerrados corre à procura dum camelô que venda óculos a cinco reais, que logo encontrou.
Ainda pediu um troco aqui outro além e foi sentar-se num café – há tantos anos que ele desejava tomar um café, sentado numa mesa – e saboreou, confuso, o arôma, o gosto e sobretudo o que se estava a passar com ele.
Ouvido atento, que tantos anos foi o único sentido de orientação que possuia, além dum raro cheiro a churrasco que nunca alcançara, ouve com facilidade as conversas que se passam ao seu redor.
Curioso e cheio de vontade de começar algum trabalho que o tirasse da pobreza, pareceu-lhe entender que alguém, ali por perto, numa conversa entre dois homens, precisava duma pessoa, séria, desconhecida, humilde, que pudesse servir de “pombo correio” entre alguns importantes, e até dar seu nome para transações... escusas.
Demóstenes continua a ver ali a mão de Deus que tão logo lhe parece mostrar um caminho fácil.
Quando um deles se levantou e saíu, Demóstenes, humildemente cumprimenta o que ficou e diz-lhe que, mesmo sem ter querido, ouvira a conversa. Óculos escuros, continuando a parecer cego, atraveu-se a dizer que não tinha trabalho porque havia sofrido duma doença rara, mas que agora tinha saúde e precisava trabalhar.
- Você pode andar, a pé, distâncias maiores?
- Sim senhor, felizmente as minhas pernas sempre foram fortes.
- Apareça amanhã, pela manhã neste endereço – e deu-lhe um cartão de visita. E como é o seu nome?
- Demóstenes, meu senhor.
- Demóstenes? Que maravilha! Para o que estamos a pensar você será a pessoa ideal.
Demóstenes, logo que sózinho, levantou um pouco os óculos e leu: “Demóstenes – Senador; Senado Federal”!
Dia seguinte, bem cedo o nosso Demóstenes aguardava já à entrada do Senado. O glorioso senador chegou quase ao fim da manhã e quando o avisaram que estava ali um homem à procura dele, logo o mandou entrar.
- Oiça bem: tudo quanto eu lhe der para fazer fica só entre nós. Bico calado e boca pequena. Vou nomeá-lo para o meu gabinete, com o ordenado de quinze mil reais por mês, dos quais você, quando receber, me entrega quatorze. Quer dizer você fica com mil para si. O que acha?
Demóstenes não entendeu bem a jogada, mas os mil por mês para quem nada tinha, era já por si um milagre.
- Sim, excelência.
- Agora para começar você vai entregar este envelope, vazio, ao sr. Cachoeira. A minha secretária lhe dará o endereço. O sr. Cachoeira saberá o que fazer com o envelope. Passar bem.
- Até mais, excelência.
Demóstenes correu para o endereço indicado. Cachoeira recebeu o envelope vazio, entendeu a mensagem, recheou-o com notas de 50 e 100 reais, e disse-lhe para retornar ao senador.
Além desse tinha mais um outro envelope, também gordo, que mandou para o lulinha.
Por fim disse-lhe para voltar no dia seguinte que teria mais envelopes para distribuir.
- Mas atenção você, não ouviu nada, não sabe de nada, nunca aqui esteve, nem vê nada!
- Não senhor; aliás eu vejo muito mal!
No outro dia o envelope, mais gordo ainda foi para o dirceuzinho.
E nesta vida anda o nosso Demóstenes, ex-cego, correndo para um lado e outro, ganhando só mil por mês, parte gasto em sapatos, até que um dia, até que um dia... é preso pela Polícia Federal!!!
Ele, um homem humilde, simples, que mal ganhava para comer, e continuava a morar quase de favor num canto duma garagem, era acusado de ser sócio de grandes empresas!
- EU ????? Sócio do quê?
- Sim senhor, quer saber?
- Claro que quero saber!
- Sócio duma construtora, Delta, com ações no valor de quinhentos mil reais; e de mais sete empresas diversas que lhe somam um patrimônio de mais de quatro milhões! Onde você arranjou esse dinheiro?
- Você vai ter que se explicar em tribunal e na CPI.
Demóstenes perdeu a fala. Arrenegou o Senhor e a sua fé, o xará senador, cachoeira, lulinha e dirceuzinho.
Além da fala perdeu de novo a visão. Cairam-lhe os óculos da cara. Estava cego!
De repente caíu para o lado; morto.
Na Delegacia foi um pandemônio. Eles sabiam que Demóstenes só podia ser um pobre laranja. Asustaram-no e... perderam a melhor testemunha!
A CPI não ia mesmo dar em nada.


22/06/2012

quarta-feira, 20 de junho de 2012



Histórias da História - 2

Angola * A Rainha Jinga



Parece que a Rainha Jinga (ou Ginga) não carece de apresentações. Mas há alguns detalhes da sua vida que são muito interessantes de recordar.
A história desta Rainha começa com a morte do mais temido adversário dos portugeues, seu pai Ngola Kiluange. Ngola Mbandi ou Mbondi, filho de uma escrava, para se segurar no trono matou o meio irmão que seria o legítimo herdeiro e um sobrinho, filho de Jinga, o segundo na linha, e torturando e matando os que se lhe opuseram, conseguiu levar os Macotas - conselheiros - a entregarem-lhe o trono.
O reino de Ndongo vivia um momento de relativa tranquilidade, mas o novo rei logo se dispôs a mais uma vez atacar os portugueses. Preparou um imenso número de guerreiros e decidiu atacar os pequenos núcleos de comerciantes que estavam no “seu” território. Derrotado, fugiu, cada vez mais para o interior, até que novo governador chegou a Luanda, João Correia de Sousa. Este entendeu que não se devia estar em guerra com os reis Ngola, e mandou recado ao rei negro, pelo padre Dionísio Faria Barreto, “filho da terra e eclesiático categorizado”, para que com ele entrasse em relações pacíficas, sob algumas condições.
Ngola Mbandi não aceita as condições propostas e decide enviar uma delegação para negociar, em Luanda, o tratado de paz.
Daqui nasce, em 1622, a célebre embaixada presidida por Njinga Mbandi, que teve em Luanda uma recepção imponente: magistrados, altos funconários, religiosos e militares a receberam, passando entre alas de tropas que lhe abriam o caminho e a festejavam com tiros de mosquete, até à casa de Rodrigo de Araújo que lhe foi entregue para se instalar, sendo assistida pela Fazenda Real com a decência e grandeza que exigia o Caracter de sua Pessoa, e da sua comissão.
Esta maneira de receber um chefe indígena, aliás a irmã do chefe, que ela odiava por este lhe ter assassinado o filho, retrata de forma insofismável a maneira de estar dos portugueses em terras estranhas.
Não era hábito disporem-se cadeiras para receber os chefes indígenas porque estes sempre se sentavam no chão. Quando, uns dias depois o governador a recebeu em audiência no palácio, houve o cuidado de terem posto à disposição da Jinga uma bela alcatifa e duas almofadas de veludo franjadas de ouro, o que demonstrava já uma alta consideração pela visitante. Jinga altiva e orgulhosa, ciente da sua hierarquia, deu aquele espetáculo marcante quando, para não se sentar no chão, chamou uma das suas escravas e sentou-se nas suas costas, o que a todos causou profunda admiração. Mais ainda quando a ouviram falar e ver uma mulher discorrer com grande desassombro, delicadeza, polidez e galhardia! Alguns chegaram a atribuir tal eloquencia a coisa sobrenatural!
E quando o governador lhe apresenta as condições que o Ngola Mbandi devia aceitar para que as pazes fossem feitas, entre elas que ele reconhecesse a soberania portuguesa com o sinal de um tributo anual, Jinga prontamente, e com grande vivacidade, respondeu que tais condições só deveriam impor-se a quem tivesse sido conquistado, e nunca a um Princípe Soberano, que voluntáriamente buscava a amizade de outro igual.
Tão bem ela conduziu a negociação que a única condição para o estalecimento da paz foi a obrigação da entrega dos escravos aprisionados aos negociantes, e a recíproca assistência de forças e hostis preparativos contra os inimigos de uma e outra Coroa.
No final o governador acompanhou a Jinga até à porta do salão; e quando lhe “lembrou” que a escrava tinha ficado no chão, Jinga respondeu que a uma pessoa da sua qualidade não lhe era lícito tornar a usar o mesmo assento.
Estas sublimes delicadezas de juízo, de respeito e altivez lhe votaram tal estima e respeito que o governador aproveitou para lhe falar da religião Católica, e como Jinga se mostrasse interessada em saber mais sobre os mistérios da Fé, pediu que a instruissem. Nao tardou a pedir para ser batizada.
 

Aos quarenta anos de idade, em sumptuosa solenidade e concurso de toda a nobreza e povo, sendo padrinho o governador, tomou o nome de D. Ana de Sousa.
Quando entendeu voltar à Corte de seu irmão, mandou-lhe o governador magníficos e brilhantes regalos, despedindo-a com iguais cortejos, honras e obséquios com que fora recebida.
São unânimes os historiadores a classificá-la como pessoa de fulgurante mentalidade, verdadeira e genial revelação de superioridade intelectual.
Ngola Mbandi parece ter gostado muito do trtamento dispensado a sua irmã e ainda se animou com a nova religião que ela levava.
Pediu ao governador que lhe mandasse um sacerdote que o pudesse instruir. Animado por esse crescer de boas relações, o governador mandou-lhe o mesmo sacerdote, que o Ngola desprezou vociferando que o filho de uma escrava não lhe poderia administrar o batismo, nem afrontá-lo como de igual para igual e mandou que o deitassem fora dos seus Estados.
O governador decide reparar esta afronta e nova batalha se dá. Ngola Mbandi foi batido, fugiu e refugiou-se numa das ilhas do Quanza. Jinga aproveitou a oportunidade há muito aguardada e mandou que lhe dessem veneno. A partir daí Jinga assume o reino, manda buscar o filho de Mbandi, que mata também e lança o corpo ao rio Quanza onde os jacarés se alimentavam!
A rainha, para não ficar em situação de inferioridade perante os homens exige que a tratem por Rei!
Belicosa e ambiciosa, decide atacar outros sobados que estavam sob a proteção dos portugueses. Nova guerra, desta vez contra a própria Jinga que igualmente, e muito habilmente foge e se embrenha no interior.
Neste recontro são aprisionadas as suas duas irmãs, Cambe (Mocambo) e Funge (Quifunge). Conduzidas à presença do governador, agora Fernão de Sousa, este as recebe com muita estima e hospeda na mesma casa onde estivera sua irmã. Catequisadas, foram batisadas com os nomes de Bárbara e Engrácia, tendo por padrinho o governador, e depois enviadas com muitos presentes a sua irmã, a Rainha.
Em 1641 os holandeses ocupam Luanda, e havendo já tratados de paz entre Portugal e Holanda essa ocupação deveria dar-se de forma “quase amigável”!
Engano; os holandeses pretendiam correr definitivamente com os portugueses daquelas paragens, com a ganância do exclusivo do tráfego de escravos para o norte do Brasil, também por eles ocupado e para outras áreas do Caribe.
Os portugueses refugiam-se no interior. E Jinga, sempre hábil, vê nos holandeses a possibilidade de vencer os portugueses, e a eles se junta. O número de soldados holandeses é muito superior ao dos portugueses, mais bem equipados de mosquetes e munições, além dos milhares de negros que a Rainha reuniu. Mas acabam vergonhosamente derrotados, fugindo os holandeses desordenadamente pelo mato mais de uma centena de quilômetros até chegarem a Luanda.
Entre os prisioneiros volta, uma vez mais, a “Infanta D. Bárbara”.
Em 1648 Salvador Correia de Sá, chega a Luanda e expulsa os holandeses.
Poucos anos passam, e cerca de 1656, a grande Rainha Jinga D. Ana de Sousa decide reconciliar-se com a igreja, abandonando as suas crueis atrocidades cometidas com inimigos e prisioneiros. Escreve ao novo governador, Luis de Sousa Chichorro, dizendo que no tempo de outro Sousa ela se convertera à Fé de Cristo que entretanto desprezara, e em tempo de outro Sousa, se redimia com inalterável observância. Ao mesmo tempo pedia que lhe restituissem a sua irmã, D. Bárbara, há dez anos retida em Luanda.
O governador cheio de prazer lha mandou entregar, entre obsequiosos cortejos militares, e acompanhada até Matamba de alguns oficiais.
Sem mais abandonar a fé cristã, vive ainda largos anos esta mulher especial. Morre bem idosa, dizem uns que em 1663, Cavazzi escreveu que ela o quiz envenenar em Abril de 1664, e Elias Alexandre da Silva Correa indica a sua morte em 1683, na época de mais um governador também Sousa! João da Silva de Sousa. Afinal quando terá sido?
É notável, apesar de quase constantes guerras que os portugueses travavam no interior, levados a defender sobas amigos, ou a castigar outros que tendo rompido tratados de amizades assaltavam os comerciantes, o cerimonioso e obsequioso tratamento sempre dispensado a esta Rainha, o que desmente boa parte da propaganda sobre o “colonialismo” dos primeiros tempos, ou sobre os quinhentos anos de ocupação. É verdade que houve queixas, e muitas, de abusos. De uns poucos governadores que faziam guerra para se promoverem e de comerciantes que abusavam dum “poder” que não tinham.
Mas quem “ocupava” o interior eram os africanos. Os portugueses pagavam tributo para negociar com eles, e ninguém foi mais inteligente e hábil do que esta Rainha para garantir os seus direitos.


Fontes: Histórias de Angola: Elias Alexandre Silva Corrêa e Ralph Delgado.



19/06/2012



terça-feira, 12 de junho de 2012



Histórias da História

Angola



Em 1518 o rei do Ndongo, ou Ngola, enviou uma embaixada a Portugal pedindo missionários que ele sabia estavam a fazer um importante trabalho no reino do Congo. A primeira missão portuguesa chegou a Ndongo em 1520, mas disputas locais forçaram os missionários a abandonar retirando-se para o Congo.

Em 1556, Ngola Inene, com inveja das vantagens que o rei do Congo tirava com o comércio com os portugueses, e querendo livrar-se do jugo daquele, enviou outra missão a Portugal procurando ajuda militar e oferecendo-se para ser cristianizado. Era regente, em nome de D. Sebastião, nessa altura com dois anos de idade, D. Catarina e o cardeal D. Henrique, que condescendem, e encarregam Paulo Dias de Novaes dessa missão.

Sai de Lisboa em Setembro de 1559 a fraca “armada” de três caravelas, com alguma gente de terra e “fracos petrechos hostis”, para “auxilar” o rei do Ndongo ou Matamba.

Chega à foz do Quanza em Maio de 1560. Desembarca a segunda missão portuguesa, liderada por Paulo Dias de Novais, neto do famoso explorador Bartolomeu Dias, juntamente com vários padres jesuítas, incluindo o notável Francisco de Gouveia. A missão de Dias de Novais falhou igualmente. Não encontra mais o Ngola Inene que tinha morrido, e em lugar deste, um filho, Ngola Kiluange, belicoso e desconfiado, que fazendo-se amigo o mantém em cativeiro, assim como ao padre Francisco de Gouveia.
Só ao fim de quatro anos consegue Novaes libertar-se, deixando o padre jesuíta Francisco Gouveia para trás, porque o Ngola o não dispensou, e como as suas caravelas tinham ordem para esperar só um certo tempo, há muito ultrapassado, haviam regressado a Portugal.

Atravessou Paulo Dias os sertões, até chegar do Congo, donde conseguiu voltar a Portugal em 1564.

Em 1571 Novais obteve do rei D. Sebastião uma Carta de Doação (1571), que lhe dava o título de "Governador e Capitão-Mor, conquistador e povoador do Reyno de Sebaste na Conquista da Etiópia ou Guiné Inferior", nome pelo qual a região de Angola era então conhecida. Partiu de Lisboa em 23 de Outubro de 1574 e desembarcou na chamada Ilha das Cabras (actual Ilha de Luanda) a 11 de Fevereiro de 1575.

Ali já existiam cerca de sete povoados e Novaes encontrou sete embarcações fundeadas e cerca de quarenta portugueses estabelecidos, enriquecidos com o comércio negreiro, ali refugiados dos Jagas. Acredita-se que já estivessem ali há alguns anos, uma vez que na ilha também existia uma igreja e um padre.

Tudo isto consta de vários historiadores. Mas...

- O que faziam ali os portugueses? Dizem os historiadores que os portugueses estavam ali com autorização do rei do Congo. O contato entre portuguese e este rei tinha já cerca de cem anos! Quase um século. E estes portugueses tinham até capela e padre!
- Escravos da Ilha não havia, e se os tivessem levado – o chamado comércio negreiro – a Ilha ficaria deserta.

- Esta Ilha pouco mais tinha para comer do que peixe, e nas terras da frente, do outro lado da baía, hoje a cidade de Luanda, nem peixe, nem gente, nem nada!

- Como é sabido, a “Casa da Moeda” do rei do Congo era precisamente a Ilha de Luanda onde se encontrava o famoso zimbo que servia de moeda por todo o interior de África. E só o rei era o seu proprietário, mantendo até fiscais seus para não haver “contrabando”! (Nota... oportuna: no Brasil já se rouba dentro da Casa da Moeda!)
- Só parece sobrar uma hipótese para a estadia destes portugueses naquela – maravilhosa – ilha, onde não seriam refugiados, nem fugidos, bastando para isso lá estarem sete embarcações, que certamente não eram parte de alguma regata à vela!

- O que nos leva a concluir que os portugueses teriam autorização para explorar essa preciosidade – que só as mulheres sabiam colher no mar – para engrossar os proventos do rei e deles próprios.

- As embarcações deveriam ter levado alimentos e bens comerciáveis que os portugueses trocariam pela “moeda”. Só assim se lhes pode chamar comerciantes. Mas eram muitas embarcações: sete! O que levariam de volta? Só o zimbo. Peixe seco também? Quem sabe.
- Como nos primeiros tempos os navios portugueses não faziam comércio de escravos para o Brasil nem para qualquer outro lugar, sabe-se que, a mando do rei do Congo, compravam escravos nalguns lugares da costa ocidental e iam vendê-los a outros potentados por preços muito compensatórios. O lucro era do rei que pagava o custo do transporte, ou então dividiam os lucros.

Uma grande PPP – Parceria Publico Privada – possivelmente a primeira da história, assim como a primeira “Empresa de Transportes de Navegação”, quatrocentos ou quinhentos anos antes da Costa Cruises, da Cunard Lines e muitas outras!

É fácil certificarmo-nos do convívio dos portugueses com outros povos!

Na próxima lembraremos algo sobre a tão falada e tão famosa Rainha Ginga.
Há alguns aspetos muito curiosos nas relações dos portugueses com esta Senhora, certamente a maior figura feminina de toda a história de África, e só equiparável à sua “colega” e contemporânea Elisabeth I.
Nem Merkel, nem Cleópatra, e muito menos Dilma, ou qualquer outra, chegam à sola dos pés desta grande Mulher.

12/06/2012




Luanda - e São Tomé - em 1641




De uma gravura em madeira







sexta-feira, 8 de junho de 2012



Desde os tempos dos primeiros contatos com os povos do Congo e Angola, apesar de todas as batalhas travadas com muitas forças locais, muitas mortes de parte a parte, Portugal sempre soube reconhecer a soberania dos Sobas, inclusive prestar-lhes honras ao recebê-los na capital, São Paulo de Luanda.
Infelizmente isto acabou com a imposição pelo famigerado Tratado de Berlim de 1884, mas a humanidade dos portugueses continuou.
Houve, sim, muito português selvagem. Nenhum povo se pode gabar de não ter tido gente desta. Mas os governos que Portugal mandaram para Angola, sempre foram formados por gente da melhor elite. Cultos e educados.
No fim foram os covardes e os traidores.
 
CHISSOIA
 
(Relato verídico extraído do livro "Kinda",

de Carlos Acabado,

colecção "Fim do Império" Nº3 - Portugal)


Quando a luz difusa que anuncia o amanhecer tropical começou a dar cor ao casario da cidade, havia já na marginal um movimento desusado. Ao fundo da avenida, frente ao porto, a praça fora engalanada com bandeiras e a tribuna erguida na véspera, recheada de cadeirões forrados a veludo vermelho, aguardava, imponente, a chegada das individualidades. Comemorava-se o dez de Junho e Portugal, de Camões e da raça, e os heróis iam ser solenemente exaltados.
Do alto do pedestal a estátua do navegador, erguida no centro do largo, olhava a baía a que os raios do sol nascente douravam já as águas tranquilas, como se aguardasse ainda a chegada das naus, deslizando suaves e silenciosas, como cisnes negros de asas brancas.
Nesse tempo, a população descia dos morros e barrocas sobranceiras á zona ribeirinha, esperando que os nautas varassem os botes na praia para o encontro dos mundos que "o mar já unia". Agora, a baía, que se recorta como um sensual dorso de mulher, foi pudicamente coberta com o manto verde das palmeiras da marginal, e na comunhão dos mundos só as naus estão ausentes. Portugal e o mar ali estavam , marcando presença perante uma população que, a pouco e pouco, tomou a cor da mestiçagem de sangue e vivência, deixando perplexo, quem se interrogasse, de que raça se iriam enaltecer as virtudes naquele dia!
A praça fora enchendo. As cadeiras da tribuna tinham sido ocupadas e um general, em voz monocórdica e enrouquecida, lia o discurso onde salientava que quinhentos anos de esforço, e querer, uniam o herói que, ali imortalizado em pedra, olhava absorto o oceano sem fim, aos heróis de hoje que, frente á tribuna, aguardavam o agradecimento da Pátria reconhecida.
Perfilado, com a dignidade de um bem-nascido, altivo no camuflado verde, o Chissoia aguardou o chamamento e a leitura do louvor em que era descrito o seu acto de bravura. Subiu os degraus da tribuna e, como se fosse talhado em ébano, sem mover um músculo, abriu o peito largo onde o general, quase em bicos dos pés, lhe colocou uma cruz de guerra, dizendo-lhe em voz baixa que Portugal sentia orgulho por ter filhos como ele. Regressou ao lugar na fila dos heróis e, erecto, assistiu ao desfile de estandartes dos batalhões espalhados pelos confins do território, à passagem do corpo de fuzileiros, do regimento de comandos, dos flechas e dos leões de Cabinda, que em marcha acelerada entoavam canções guerreiras. A cavalaria fechou o desfile a galope curto, com garbo e tradição.
Era impressionante a portugalidade que se respirava e as gentes, de todas as cores, que tinham emoldurado a praça, ao dispersarem derramavam na cidade a confiança inabalável no Portugal granítico e multirracial que, naquela manhã, tinha estado presente naquele largo, frente ao porto.
Quando conheci o Chissoio era ele já um veterano de guerra, não que fosse velho, pelo contrário, apenas começara cedo e aprendera depressa. Parece que desde pequeno acompanhava o pai como pisteiro de elefantes. O Lucusse, onde nascera, era uma zona de passagem dos paquidermes que, nos seus itinerários até ao rio Lungué-bungo, muitas vezes destruíam o trabalho de meses no arranjo das lavras. Entre os animais e os aldeões travava-se uma luta pela sobrevivência, em que nem sempre eram os humanos os vencedores. Era assim natural que os caçadores , convidados pelo governador do distrito ou pelos homens importantes da província, fossem vistos com agrado pelas populações, pois além de abaterem alguns animais, afugentando por algum tempo as manadas, deixavam toneladas de carne que, mesmo dura e fibrosa, o soba e o velho Chissoia ficavam encarregados de distribuir. Aos brancos só os dentes interessavam, e o velho pisteiro aguardava que os crânios enterrados apodrecessem para lhes retirar as presas que, numa próxima visita, entregava já limpas de medula.
Foi nessa época que os Chissoias, pai e filho, se tornaram amigos de gente importante. O profundo conhecimento das matas e a perícia em seguir e interpretar trilhos como quem lê um livro, aliados à camaradagem que a aventura comum proporciona, permitiu-lhes sentarem-se, conversar e comer lado a lado com os grandes da terra que, amiúde, os presenteavam como prova de reconhecimento. O prestígio do velho Chissoia era grande perante as populações, não só dos povoados próximos, como de toda a região.
Corriam tranquílos os primeiros anos da década de sessenta. A luta que se ateara no norte do território não tinha chegado ainda às planícies sem fim do leste. As matas eram seguras e, logo pela manhã, as mulheres seguiam em fila e sem receios, para as lavras onde recolhiam lenha e mandioca para o sustento da prole.
Uma madrugada apareceu no Lucusse um grupo de gente estranha à região. Vinha armada e queria falar com o soba. Depois de uma longa conversa, e perante a atitude de incompreensão e até de alguma hostilidade, o chefe do grupo resolveu utilizar um meio de persuasão mais eficaz e, perante a população aterrorizada, fuzilou o soba por ser um chefe corrupto e o velho Chissoia por ser lacaio dos colonialistas. O filho fugiu para a mata e, passados dias, chegou à capital do distrito, onde contou o sucedido. Acompanhou depois a força militar que foi enviada para a zona e seguiu, até ao fim, a pista de rastos humanos como o pai lhe ensinara a seguir a dos elefentes.
A partir dessa época ficou ligado ao destacamento militar que foi aquartelado na povoação. O seu conselho e actuação foram sendo cada vez mais imprescindíveis, acabando por ser integrado nas forças irregulares, chefiando um grupo de homens escolhidos por si e com relativa autonomia.
Quando a luta de defesa do território foi alargada ao leste para suster a tentativa do inimigo de alcançar o planalto central por essa via, a táctica das nossas forças teve que se adaptar ao terreno plano e com grandes extensões pouco povoadas. A Força Aérea iniciou então uma colaboração íntima nas operações terrestres, proporcionando uma maior mobilidade através de helicópteros e aviões ligeiros. Foi nessa época que conheci o Chissoia, e muitas horas passadas em amena conversa, junto das fogueiras que aqueciam as noites frias das savanas de leste, caldearam a amizade e a admiração que desde então sentia por ele.
Uma tarde, quando o crepúsculo já anunciava a noite que cairia breve, perto do lago Dilolo, quando o seu grupo dava protecção a um movimento das nossas tropas, houve uma emboscada e dois soldados feridos jaziam no chão dentro do campo de tiro do inimigo, que continuava a alvejá-los. Passado o primeiro momento de surpresa, o Chissoia levantou-se e, a descoberto, com a arma ao quadril, fazendo fogo para se proteger, foi buscar um e, depois, o outro, arrastando-os para lugar mais seguro.
Foi por esse acto de bravura que o Chissoia esteve presente naquele dez de Junho, em que o general se esticou para lhe pendurar a condecoração na farda honrada e que, passados tantos anos, algures num recanto de Portugal, dois homens de meia idade podem recordar, em reuniões de família, como uma vez, quando estavam no Ultramar, um preto lhes salvou a vida.
O ano de setenta e quatro decorreu convulso! A esperança inicial, transmitida pelos novos políticos no poder, em vez de tranquilizadora e bem colocada, parecendo ter a percepção da complexidade dos problemas a enfentar, fora substituída por dúvidas cada vez mais angustiantes. As cidades tinham acolhido com palmas os guerrilheiros vindos das matas, aplaudindo-os como actores inesperados, num final de acto antecipado e improvisado, mas antes do fim do ano muitas das mais importantes povoações eram já palco de lutas entre os diversos movimentos , com recurso a armas pesadas, que destruiam tudo o que fora construído com sacrifício e amor.
As Forças Armadas portuguesas, desviadas dos seus objectivos e da sua missão, assistiam a tudo como espectadoras, ocupando, salvo raras excepções, um lugar pouco digno.
A partir do meio do ano setenta e quatro, começaram a chegar a Lisboa os soldados do fim da era imperial. Traziam estampada no rosto, na farda e na mente, a parte negativa da revolução.
A população civil começara há muito a sair face à insegurança em que se passou a viver , e muitos de nós, militares, habitávamos as casas vazias onde tínhamos vivido com as famílias, aguardando o fim da missão.
Uma noite ouvi um bater tímido de palmas no quintal da casa que ainda ocupava. Quando abri a porta, o Chissoia e a família estavam à minha frente.
"Preciso de ajuda!" atirou, quase envergonhado.
"Entrem e sentem-se por aí", disse, apontando os caixotes onde embalava o que queria levar de regresso a Lisboa. "Cadeiras já não há!", conclui.
A mulher e os filhos acocoraram-se, silenciosos, junto à parede da sala. Eu e ele sentámo-nos frente as frente, como sempre tínhamos feito, cada um em seu caixote.
"Estamos abandonados!", começou "Três dos meus homens foram detidos por um dos movimentos de libertação, e foram mortos..."
"Não pode ser", interrompi "Vocês terão que ser protegidos nos acordos que se fizeram" afirmei, procurando eu próprio dar convicção ao que dizia.
"As patrulhas deles procuram-nos sem que alguém nos dê protecção!..."
"Isso não faz sentido! A responsabilidade aqui ainda é nossa... o comandante do batalhão é a autoridade!", exclamei indignado.
"Fui ao comando militar hoje à tarde. Um tenente de barbas, que parece ter chegado há pouco tempo, disse-me uma coisa que me deixou sem dúvidas..."
"O que foi?", perguntei.
"Quando soube o meu nome, perguntou o que é que eu esperava que acontecesse aos lacaios e traidores do povo...". As lágrimas dançavam-lhe nos olhos sem cair, como se a raiva e o orgulho as segurassem. "Isso foi o que disseram ao meu pai em Lucusse antes de o fuzilarem...", e num desabafo murmurou "Só que esses eram negros... um tenente branco não me pode dizer isso... porque aqui o traidor é ele... eu fui condecorado, o general disse-me que tinha orgulho de mim, de um português como eu... quando esse homem souber o que me disseram..."
Olhei-o cheio de amargura, sem ter a coragem de lhe dizer que esse general assumira agora outras funções e que ele, Chissoia, era uma ligeira sombra na sua memória, nas suas preocupações... talvez na sua consciência.
Desceu sobre nós um silêncio pesado e trágico. Olhávamo-nos mudos. Os caixotes em que nos sentávamos e a casa vazia que nos albergava pareciam ser tudo o que restava do mundo em que até aí tinhamos vivido.
Subitamente, a filha mais nova, com os cinco anos a reluzirem-lhe na face risonha, levantou-se e, sem quebrar o silêncio, foi apanhar do chão uma boneca de cabelos loiros que uma das minhas filhas tinha deixado para ser enviada nos caixotes. Voltou a acocorar-se junto à mãe com a boneca nos braços, cantando-lhe baixinho uma canção de embalar, que certamente aprendera com as mães negras do bairro onde vivia.
A pouco e pouco a força telúrica da melodia, quase murmurada, foi aquecendo o silêncio, enchendo-o da energia profunda da África eterna, renascida das cinzas, verdejante depois das queimadas. A alma foi-se-nos erguendo como se a canção fosse um hino que nos devolvia o ânimo e, em silêncio, ambos procurávamos já a solução que todos os problemas têm.
"Eu posso arranjar passagens para Luanda no avião de amanhã" alvitrei, buscando saída.
"Luanda não é o meu povo. Só lá fui uma vez..." referia-se à data da condecoração "Lá ficamos ainda mais desprotegidos".
"Posso tentar que vão para Portugal, mas, pelo que sei, não vai ser fácil nem rápido", disse, recordando as notícias que nos chegavam pelas tripulações.
“O mais dificil é sair daqui com a família. Com eles não consigo passar sem ser visto".
"Mas sair para onde?", perguntei, sem vislumbrar a solução.
"Tenho gente na mata, que me mandou recado. Há movimentos que não se importam de nos aceitar. Precisam de homens com experiência para as guerras que vão chegar."
"Que posso fazer?", interroguei com desalento, pensando no papel que teríamos ainda que representar na tragédia que se vislumbrava já no horizonte.
"Aquela pista que uma vez abrimos para utilizar só em operações especiais, continua boa e abandonada...", sugeriu a medo, consciente do que pedia "Podemos ser postos lá?..."
Eu tinha presente a localização da pista. Fora aberta na orla de uma mata, longe de povoações, apenas para ser utilizada em operações que se desenrolassem perto da fronteira.
“Já mandei os meus homens sair da cidade, só ficaram duas mulheres, eu e a minha família; se nos puder ajudar..."
Sabia o risco que corria ao dizer-lhe que sim. A zona já fora evacuada pela nossa tropa e, ainda que isolada, poderia andar perto algum grupo que não hesitaria em abrir fogo se nos visse aterrar.
Pela minha memória passou aquela madrugada em que tinham chegado ao acampamento os dois soldados feridos, mas salvos pelo Chissoia.
O Portugal que eu era devia um sacrifício, um acto de gratidão, ao Portugal que ele, Chissoia, deixara já de ser.
Dormiram essa noite na minha casa depois de ter ido buscar, furtivamente, as duas mulheres e mais duas crianças, evitando as patrulhas que circulavam pelas ruas desertas da cidade. De manhã, muito cedo, meti-os no jeep que ainda me estava distribuído, e dirigi-me à base onde tinha o avião para regressar a Luanda logo que a minha missão ali estivesse cumprida.
Desloquei e tomei o rumo da pista que nos aguardava na mata. Daí ao Lucusse seriam uns dias de caminho árduo, mas era preferível percorrê-lo a serem abatidos como traidores.
A faixa deserta estava mergulhada no silêncio hostil das coisas abandonadas. Tudo estava agora vazio, dominado pela mata que parecia querer recuperar para si a pista, como cicatrizando uma ferida aberta. Aterrei e, para não parar o motor, mantinha-o a baixas rotações. O hélice provocava um som triste de chicotadas que, repercutindo-se de árvora em árvore, ia morrer nos confins da floresta.
O Chissoia ajudou a família a descer rapidamente do avião, conhecendo perfeitamente o perigo que todos corríamos se, por acaso, um grupo dos novos senhores da guerra nos surpreendesse. Ao sair colocou-me, num gesto mudo, a mão sobre o ombro, dizendo assim tudo o que nem eu nem ele tínhamos coragem para dizer. Depois, caminhou apressado à frente do seu pessoal em direcção à mata. As mulheres e os filhos seguiam-no em fila indiana. Não teve mais um olhar, mantinha o porte altivo e digno que sempre lhe conheci. Um a um, vi-os desaparecer entre as árvores, como se a floresta os engulisse. Só a mais pequena, a última da fila, se deteve um instante e, voltando-se, com a boneca de cabelos loiros na mão, fez-me adeus e sorriu, num gesto puro de quem não sabe que se despede para sempre.
Fiquei a olhar o sítio onde desapareceram, aguentando a solidão imensa que me gelava a alma. Quantas traições, quantos abandonos e deslealdades serão necessários para erguer e desfazer um Império? Em quantas praias desertas teremos deixado companheiros? Em quantas matas teremos abandonado gente que em nós confiou? Quantas vezes desertámos das responsabilidades que assumimos? Quantas vezes traímos?
Desloquei e, já no ar, dei por mim a pedir a Deus protecção para o camarada perdido.
No dia seguinte, o mecânico que passou inspecção ao avião, entregou-me uma medalha de Cruz de Guerra que encontrou caída no chão, junto ao banco em que o Chissoia se sentara.

08/06/2012



segunda-feira, 4 de junho de 2012





Ainda o vintecincobarraquatro


Ao longo de mais de dez anos a escrever para jornais, blogs e até, imaginem, livros, julgo ter sido coerente com a minha linha de pensamento, no que respeita a liberdade, governos, democracias, ditaduras, etc.
Sempre fui um crítico do pós “vintecincobarraquatro” pelos crimes que todos vimos cometerem-se em nome da liberdade alcançada. Da desmoralização dos valores nacionais, do desbarato da economia, da luta fratricida que alguns arvorados em generais quiseram promover, e da tristeza de ver um país levado à indiferença, como que num autismo coletivo.
E pela vergonha que foi a “descolonização exemplar” que abandonou povos com quem tínhamos ligações antigas, e onde tantos confiaram em nós.
E pelas risadas que deram nas nossas caras, aos que por lá vivemos, que tudo abandonámos e a quem foram negados dezenas de anos de trabalho para chegar à velhice com pensão de esmoler.
É triste olhar para trás e ver o quanto de humanidade se jogou no lixo! Ainda hoje nas ex-colônias são os portugueses que os africanos mais apreciam. Mesmo depois duma feroz e idota guerra colonial, talvez fossemos o unico povo no mundo a abraçar um ex combatente inimigo, assim que as hostilidades foram terminadas.
Há muito livro escrito sobre esse período, mas é dificil encontrar um só que seja, cujo autor não tenha deixado um parte grande do seu coração junto daqueles povos.
Não foram os “pôr do sol” no Mussulo ou na Inhaca, nem as caçadas às pacaças ou aos leões, nem as belezas da Tundavala, da Ilha de Moçambique ou do deserto do Namibe, mas sim as gentes que nos acompanharam, que partilharam conosco os momentos de alegria e preocupação, que tantas vezes nos ofereciam o teto das suas humildes palhotas para que não passássemos a noite ao relento.
Foram as conversas naqueles humilissimos bares, tanto na cidade como no interior, bebendo umas Cucas, e partilhando histórias de carros atascados na lama, salvos pela população local, de caçadas para chorar a rir – Haca, patrão, falhaste mesmo essa perdiz! – de valentes soldados que se viram no meio de “fogos amigos” e recorreram ao exército português, e mais uma infinidade de contos que a memória teima em conservar como um bem de valor inestimável.
E agora volto a depoimentos de militares dos “Comandos”, a tropa de elite criada em Angola, que os “gloriosos vendilhões da pátria”, pós 25/04 quiseram desfazer e calar, com algumas passagens que ilustram esse sentimento do dever cumprido entre inimigos e as populações.
Da revista da Associação dos Comandos, MAMA SUME – um grito de guerra de uma etnia africana do sul de Angola, e que traduz "AQUI ESTAMOS" ! – com a devida vénia reproduzo um pouco da memória dum combatente, José Zeferino Pina Navarro ao tempo Alferes dos Comandos:


RETALHOS MEUS

Numa operação que fizemos ao rico Vale do Loge, não muito longe já da sua confluência com o grande Dange, onde, após o assalto a uma sanzala terrorista, sem saber de onde havia surgido, acabei por ter agarrado às pernas o Joãozinho, um pequenito aí de uns 4 aninhos, que depois peguei ao colo como a coisa mais preciosa do mundo no meio de toda aquela infernal confusão e alarido, e de como foi ele que me comunicou a ternura de sentir amor numa refrega, assunto maluco de adulto, cujo único sentido é sempre a vá cobiça de todas as partes em jogo?
No caminho de regresso, quilómetros e quilómetros a fio, primeiro, ao longo do rio, e depois, mata adentro, a corta mato, para fugirmos às emboscadas, cada vez mais violentas, que incolumemente nos montavam a partir da outra margem, nunca deixei de estreitar o menino ao colo que, no meio daquele alarido todo, se agarrava a mim como uma lapinha se segura à rocha...
E quando, algumas horas depois, vales e florestas, já completamente exausto, tinha que ser ajudado pelos nossos queridos camaradas, pois estava permanentemente a cair e já não era capaz de me ter nas pernas, e isto porque não podia deixar o João, pois que mo queriam tirar para me aliviarem, ele, em plena floresta, no meio da noite, desatava num berreiro que ecoava por quilómetros sem fim, como uma trombeta apocalíptica? Recordo do inusitado da situação e do perigo extremo que isso representava para todos nós, completamente desconhecedores do terreno e da região, sujeitos a virmos a ser cercados, e de como, mesmo assim, todos nós acalentávamos o miúdo sem nos passar, jamais, pela cabeça, deixá-lo ali, e de como eu o carregava como um talismã de amor a dar-me força ao espírito enquanto o corpo se exauria até ao esgotamento?
Ainda me lembro também dos nossos queridos companheiros, enquanto me soerguiam pelos braços, da solicitude e carinho com que o faziam e das palavras de ânimo que me diziam, como se fosse uma criança, para me animar "Meu alferes, é já ali... já falta pouco... vamos, mais um bocadinho... só mais um bocadinho...", bocadinho que, afinal, nunca mais chegava... e era continuar, continuar, pois que sabiam lá eles onde é que nós nos encontrávamos... onde?
E assim continuámos, não sei por quanto tempo, quantos quilómetros, sempre com o pequenito fardo, até que, por fim, lá se nos deparou a picada onde supúnhamos estarem à nossa espera para nos recolherem.
Que, aliás, nem estava lá ninguém, pois, em boa verdade, quem poderia saber o local e hora a que haveríamos de chegar, para lá estarem à nossa espera?... Assim, se a desilusão foi alguma, também não perdemos muito tempo a perdê-la, e logo tratámos de achar local onde pudéssemos pernoitar, o que se nos apresentou na clareira de um palmar de uma antiga fazenda, então abandonada, após os seus donos, e trabalhadores, haverem sido trucidados à catanada, como aconteceu em muitas outras dezenas de fazendas que então havia na região.
Após termos montado a guarda, a última coisa de que eu me lembro foi o de abrir o camuflado, deitar o Joãozinho sobre o meu peito, correr o fecho, e apagar-me completamente até à manhã do dia seguinte.
Nesse resto de horas que a noite me concedeu, o que de facto eu esqueci foi a guerra, o mundo, o cansaço, e todas as más recordações do dia e da vida.
Quantas qualidades de paciência e de valor humano não tiveram que evidenciar todos estes nossos camaradas, que também são homens, e numa situação de tão extrema exigência táctica é crucialidade de sobrevivência, sem que nunca tenham perdido tanto da noção da sua responsabilidade militar, como a devida a sua conduta humana. Realmente não há dúvida que sempre que, em todos os tempos, raças, e lugares, o amor permanece acima e além de toda a confusão, não há dúvida que é aí que se encontra o Homem na sua maior, e real dimensão, de criatura que é de Deus.
Claro que desse momento pessoal não tenho a fotografia, como é óbvio... e, ainda que houvesse máquina, que não havia, quem se atreveria a disparar um flash no meio das trevas de uma mata cerrada, ocupada pelos inimigos?... Mas ele era muito engraçado e sempre que lhe perguntávamos "Olha lá, tu és turra?" Ele respondia "Eu turra? Nunca mais eras!...". Este creio que veio para Portugal, cá estudou, e fez a sua vida.

Faria isto um americano, um inglês, chinês, muçulmano, judeu, sérvio? Jamais. Muito menos um rosa coutinho ou um otelo que nem os companheiros de armas respeitaram!

04/06/2012