quinta-feira, 28 de setembro de 2023

 

“Habilidades” dos  Mininos Amorim

Algumas passagens da vida de todos eles, quando crianças.

Situámos as a histórias, no tempo e no lugar.

Escrito, e esquecido, em 2015, sem alterações

 

Jorge. Nasceu em 1955.

Luanda, talvez 1964. Na praia virada para a baía, na ponta da Ilha. O tio Barlomomeu Aragão tinha uma pequena lancha, sobretudo para fazer sky. O Jorge, que nunca tinha andado naqueles brinquedos estava entusiasmadissimo, e disse ao tio que queria experimentar.

- “Se o teu pai deixar...”

- “Pai, posso andar de sky?”

- “Tu sabes esquiar?”

- “Sei, sim, pai.”

- “Então podes.”

Colocou os skys, eu ajudei-ao a sair e andou às voltas na baía, como se fosse coisa que sempre tivesse feito.

- “Eu não disse que sabia?”

Sempre soube o que quis. E na frente da maioria.



Luis. Nasceu em 1957.

Aí por 1962 ou 63, um primo direito do meu Pai, Jorge Rebelo de Andrade, passou o Natal em Luanda em casa duma sobrinha, a muito querida prima, como irmã, Maria da Graça Vasconcelos, casada com o José (Azeredo e) Vasconcelos, na ocasião inspetor da Companhia Colonial de Navegação em Luanda.

Vésperas de Natal jantou em nossa casa (Rua Cabral Moncada, 120) e levou um presente para o Jorge: uma bicicleta. Como era noite não houve como alguém experimentar o dito veículo, nem na rua nem no jardim (careca, só com uma árvore, frondosa, no meio) na traseira da casa.

No dia seguinte, mal o sol nascera, estava tudo à espera que eu aparecesse para andarem, aliás o Jorge, o dono do brinquedo, andar, porque nunca tivera nenhuma nem andara de bicicleta.

Montou em cima, saiu andando e ficou circulando à volta da árvore completamente à vontade.

O Luis, ao lado, dava uns pulinhos, só dizia que também queria andar.

- “Tu sabes andar?”

- “Sei, sim, pai.”

- “Então vai andar.”

Montou na bicicleta e lá vai ele, impecável! Quando parou perguntei-lhe:

- “Onde aprendeste a andar?”

- “Esta noite. Sonhei que sabia... e sabia!”

Sonha, e acontece. Além do que acontece sem sonhar.


Chico. Nasceu em 1958

1964. Não devia ter ainda seis anos. Num dia em que a mãe teve que sair de casa na parte da tarde, levei-o comigo para a Cuca, a famosa fábrica de cervejas. Ele por lá esteve entretido a fazer desenhos, sua especialidade, e quando chegou o fim do expediente eu ainda tinha assuntos a tratar pedi ao chefe da secretaria de vendas, Magalhães Monteiro, se podia levar o meu filho até casa. Disse logo que sim, e enquanto este arrumava as suas coisas eu disse ao Chico para levar uma carta e entregasse à mãe. (As cartas naquele tempo iam todas para a Caixa Postal da Companhia, e não para os endereços das nossas casas).

Passado uns 10 minutos o Magalhães Monteiro (MM) veme dizer-m que estava pronto para sair e levar o Chico.

- “Não está aqui. Deve estar à sua espera na outra sala, ou na entrada.”

Adeus, até amanhã, etc., e mais uns quantos minutos passados volta o MM e diz que não encontra o Chico. Saimos os dois à procura dele. Nada. Perguntamos a uns quantos colegas da Companhia, ninguém o tinha vista. A Portaria era um pouco afastada da entrada do prédio comercial e o porteiro, idem, nada vira também.

Começamos todos a ficar nervosos e preocupados. Sai o MM e outro colega, que não lembro mais quem terá sido, de carro, estrada fora a ver se viam a criança.

NADA.

Telefono para casa convencido que ele teria apanhado boleia (leia-se carona no Brasil) com alguma outra pessoa, mas não tinha chegado, nem a mãe ainda tinha voltado dos seus afazeres.

Os colegas que percorreram os caminhos à procura do Chico vinham de cara abatida dizer-me que não o tinham visto em lado algum.

Eu sentado, suava de nervosismo, sem saber o que fazer, e sem querer alertar em casa que o “tinhamos perdido”, volta e meia telefonava de novo, e pedia que telefonassem assim que ele chegasse a casa.

NADA.

Passaram-se talvez uns três quartos de hora. Talvez mais. Pareceu uma eternidade.

Chegou finalmente o telefonema:

- “O Chico chegou e tem na mão uma carta para dar à mãe.”

Corri para casa. Como era possível que ninguém o tivesse visto na estrada da Cuca, no caminho que sempre faziamos de carro?

- “Pai, eu vim direto. Por dentro do musseque.”

- “!?!”

Só largou a carta quando a mãe chegou a casa e lha entregou!

Ainda hoje o Chico tem um notável senso de desorientação. Como ele fez aquilo, sózinho, minúsculo, não seguindo pelas ruas, mas cortando caminho e sem largar a carta da mão, ainda é hoje motivo de espanto e de muito rirmos.

Distância percorrida: cerca de 5 quilómetros!

É para fazer, faz-se.

 


 Helena. Nasceu em 1960.

No Colégio São José de Cluny, Luanda, de que ela tem péssimas recordações! Devia ter uns 9 ou 10 anos.

Uma das professoras, talvez uma das madres, um dia fez uma “brilhante” predileção sobre higiene, o uso da água, lavar os dentes e as mãos, estas antes, aqueles depois das refeições, a cara de manhã e antes de dormir, etc. Uma imensa apologia da água, que era muito boa para saúde, que deviam beber água filtrada, enfim um arrazoado... mais ou menos inútil.

No fim mandou que as alunas fizessem uma redação sobre o assunto.

A Helena esmerou-se. Escreveu que tinha que se lavar sempre muito bem, mãos, cara, dentes, etc., que a água era muito boa para a saúde, mas teve um remate digno de Voltaire ou Gil Vicente:

- “A água é muito boa, mas o meu pai só bebe vinho.”

Já ninguém sabe, que nota terá tido, nem qual a opinião da douta professora sobre o “alcoólico” pai daquela aluna!

E a verdade é que o pai continua a beber vinho que lhe faz muito bem à saúde.

Alegria e boa disposição. Mas que ninguém lhe ponha a mão em cima...

João. Nasceu em 1961

Duas histórias.

Luanda. Teria meia dúzia de anos, e andava numa escola do outro lado do Parque Alvalade, que ficava atrás da nossa casa da Cabral Moncada. Na ida e na volta da escola, tinham que atravessar aquela área verde, arborizada. Voltava sempre da escola com alguns dos irmãos que entravam em casa, para o almoço, sem a companhia do dito João. Esperávamos um pouco, porque ele nunca foi de corridas e... nada.

Lá ia alguém percorrer o caminho em sentido inverso e, invariavelmente, encontravam-no sentado num banco do jardim a mexer com os “Fuca-fuca”! Aqueles bichinhos, tatuzinhos de jardim, Armadillidium vulgare, que se enrolam todos quando se lhes toca.

Pois o João tocava-lhes e ficava sentado o olhar para ver quando eles se desenrolavam e iam embora. E ficava... todos os dias a mexer com os “Fuca-fuca” como eram (ainda serão?) chamados em Luanda e sempre a chegar atrasado para o almoço!

Outra: um dia os tios Melícias foram lá a casa, à tarde. O João estava estendido no chão da varanda, barriga para baixo, mãos nos queixos, tão ocupado no que estava a fazer que nem se levantou para falar aos tios.

Pergunta-lhe o tio António Nuno:

- “João, o que está a fazer aí deitado?”

- “Estou a ver uma corrida com estes dois carracóis. Ó tio, este aqui (um deles) anda com uma mecha!” (“mecha” sugnifica velocidade!)

Andava mesmo. O João estaria ali há meia hora. Um dos caracóis tinha andado uns quinze centímetros, e o “que andava na mecha”... uns vinte!

Parece que ainda hoje os caracóis na cortaram a meta!



Joana. Nasceu em 1964

Lourenço Marques (Maputo). 1973. O BCCI – Banco de Crédito Comercial e Industrial – patrocinou a construção e a venda em condições especiais de uns vinte magníficos barcos, os Optimist. Uma beleza de barquinhos para a iniciação à vela. Contratou um sujeito que era ótimo construtor de barcos de recreio e depois vendeu-os, financiados, praticamente sem juros.

Eu fui dos felizardos que conseguiu um para os filhos.

No Club Marítimo organizou-se a festa de lançamento à água dos barcos com uma “imponente regata”! Os velejadores tinham todos entre 9 e 11 anos. E lá vai a Joana, com aqueles dois rabichos no cabelo, sem a mínima noção de como governar o barco. Bem pequenina só se lhe via a cabeça a aparecer por cima da borda, mas sempre a rir. Os dignos velejadores – quase todos – cumpriram as voltas necessárias, voltaram ao club, e a Joana, lá continuava, andando de um lado para o outro, a rir e sem saber como voltar para terra. Foram lá buscá-la. Foi muito aplaudida!

Entre 15 competidores classificou-se em 14º.

Determinada. Guerreira.

Tiago. Nasceu em 1967

Lourenço Marques, 1972. O Tiago, sempre super agitado, estava com a garganta inflamada e o médico disse que era melhor operar as amígdalas. Lá fomos para uma Casa de Saúde, um quarto para o doente.

Pouco antes da operação vem uma enfermeira para lhe dar uma injeção que o fosse acalmando, porque a intervenção se faz, ou fazia, com anestesia local. E vá de tacar uma injeção no paciente.

Uns minutos depois o”anestésico” começa a fazer efeito – extamente oposto – e o Tiago sai disparado do quarto e começa a correr por toda a Casa de Saúde. Enfermeiros a correrem atrás, entrava em quartos particurares, nas alas reservadas, em tudo que era canto, mas quem o segurava? Foi uma tourada! Finalmente apanhado, levado para a a sala de operações, de lá voltou anestesiado e operado. Deitaram-no na cama e volta e meia, sempre desacordado, deitado dava saltos como se fosse chutado de baixo para cima por uma mula.

Eu tive que o agarrar com força e ficar falando baixinho no seu ouvido “que estava tudo bem, que era o pai que lhe falava”,  para o acalmar. Finalmente começou a acordar, sossegou e voltou para casa.

*

Rua Cabral Moncada. 1974. Na casa ao lado tinha estado o comando do Grupo de Voluntários, e após o 25 de Abril este Comando foi desfeito a ali instalado o Comando do FNLA!

O Tiago, comunicativo como continua a ser, estava íntimo dos soldados da guarda, quase todos do Congo, que mal falavam português. Entrava e saía à vontade daquele “quartel” e conversava com os soldados que lhe achavam graça pela desenvoltura.

No meio de uma conversa, um dos soldados, simpático, dá-lhe umas palmadinhas de simpatia na mão. Uns afagos, porque estava a gostar do papo. E logo o Tiago:

- “Preto não põe a mão no branco!”

O que foste dizer! Meu Deus. O Fenela – como chamavam aos soldados daquele grupo – ficou bravo, chamou-lhe racista e decidiu bater à porta de nossa casa, arma na mão, a pedir satisfações, chamar-nos racistas, que ensinavamos isso aos nossos filhos, enfim, quase uma declaração de guerra!

Foi um sarilho para o acalmar e lhe fazer ver que a criaça nem 7 anos ainda tinha e que se todos os dias ia lá conversar com eles era demonstração evidente de que não éramos racistas.

Ainda perguntei: “Quantos garotos brancos vão conversar com vocês?” Calaram-se.

Mas deu trabalho!

Sempre um passo no futuro, no companheirismo e alegria.


Lourenço. Nasceu em 1970.

O Lourenço leva a palma de ter sido o que andou mais cedo. Tinha cerca de 6 meses e meio e vinham os amigos dos irmãos mais velhos ver “o bebé que anda”!

São Paulo. 1983. Já não era exatamente um bebé. Feriados de Páscoa ou Carnaval, foi ficar dois dias em casa de um amigo. Aliás os filhos todos tinham ido cada um para seu lado, e só os pais ficaram em casa. O pai, no jardim lavava o carro quando sente um carro parar em frente do portão. Estranho, porque a rua estava deserta e logo parar em frente do portão?!

Abri-o e sai um rapaz de dentro dum carro a perguntar pela Dona Gabriela.

- “Quem é você? Eu sou o marido da Dona Gabriela.”

- “Bom... um filho seu... teve um acidente... está no hospital...”

Minha reação imediata:

- “Morreu?”

- “Não, senhor!!! Nada disso. Chocou com um carro e feriu-se, mas está livre de perigo, e pediram para avisar os pais porque ele terá que ficar pelo menos um a dois dias no hospital.”

Disseram onde era o hospital e lá fomos nós, coração na mão, à espera de...

Estava ainda na sala de atendimento.

Tinha ido passear de bicicleta com um amiguinho, a fazer corridas por ruas quase desertas, mas no fim de uma destas entrou na contra-mão de uma cheia de trânsito, e foi apanhado bem de frente. Entrou pelo párabrisas, o motorista ficou horrorizado, foi embora, mas logo acorreu gente. Alguém o socorreu e levou para o hospital. Estiveram várias horas e tirarem-lhe pedacinhos de vidro da cabeça, costas, braços, etc. e levou sessenta pontos por todo o corpo!

Um pouco mais tarde aparece o motorista com quem ele chocou. Ainda apavorado, tanto mais que levava no carro um filho pequeno que começou logo a gritar “o papai matou aquele menino!”

Veio desculpar-se! E de fato não teve culpa.

Durante muitos anos continuavam a sair pedacinhos de vidro de dentro da pele, e até hoje ainda lá tem alguns!

À procura de ser músico, mas...



******************

 

Ano seguinte, mais outra num dos feriados prolongados, quando da mesma forma todos tinham ido passar esses dias com amigos, e só os ditos progenitores em casa.

Dez horas da manhã toca o telefone. Era o Banga, o querido sobrinho, filho da Isabel e do Zé Perestrelo, com quem o João tinha ido acampar numa praia ao sul de Santos, Mongaguá.

- “Tio! Não se assuste, mas... houve um acidente...”

Eu logo, para encurtar:

- “Quem morreu?”

- “Não, tio, não morreu ninguém. A barraca onde o João estava a dormir pegou fogo e ele queimou-se muito. Está na Santa Casa de Misericórdia de Santos. Eu estou aqui também.”

- “Vou já p’raí.”

- “Bela! O João queimou-se e está num hospital em Santos. Arranja-te depressa.”

Lá fomos, nervosos, para Santos. A tal Santa Casa nessa altura já estava quase falida de modo que numa ala inteira, numa grande enfermaria só lá estava o João. O médico disse-nos que tinha poucas queimaduras de 3º grau e que ali não tinham condições de o tratar, mas não o deixaria sair naqule dia. Que o fossemos buscar no dia seguinte, que era domingo.

Regresso a São Paulo, direto ao Hospital dos Defeitos da Face – hoje Hospital da Cruz Vermelha Brasileira – onde o Tiago tinha estado uns oito anos antes (depois conto essa!) reservar uma cama para ele.

Domingo, depois de muito bem lavada, a Kombi transformada em “ambulância” particular, tirados os bancos traseiros e com dois colchões no chão, lá fomos buscar o “churrasquinho” a Santos. Fez um ótima viagem, sempre com soro, ficou entregue ao Hospital onde passou mais uns dias.

 

Quando voltámos a casa eu fui fazendo planos: “para o ano quebro logo uma perna a um deles antes dos feriados. Assim não teremos sobressaltos.”

Não quebrei.

 Jan / 2015

 

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

 

Mais um dos primeiros textos que escrevi, em 1986, falando de África, evidente, que acabou substituído por um outro para a entrada das páginas dedicadas a caçadas, no livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”. Por isso “alguns tiros certeiros” que aqui não vão aparecer.

Este tem mais descrição do país, e por isso achei que alguns leitores iriam gostar.

Revisto de algumas gralhas e imprecisões, aqui vai ele.

ALGUNS TIROS CERTEIROS

 

Há uns tantos imprecisos anos ainda toda a África negra era um paraíso, com uma variada e exuberante fauna, desde o pequeno antílope ao elefante, carnívoros, pássaros, etc. Os maiores animais terrestres ali se encontram, como o grande elefante africano, o rinoceronte, e até nas aves nenhuma alcança o porte da avestruz,

A todos estes animais passou a designar-se genericamente por “caça”, e ainda hoje guardam esse nome os “parques de caça”, mesmo que não se possa abater animal algum.

Essa imensa e maravilhosa fauna chegou quase intacta até aos nossos dias (até meados do século XX) porque em todo o continente não havia caça predatória, as populações se mantinham em reduzido número e sempre houve com que se alimentarem.

A maioria das pastagens hoje utilizadas em todo o mundo para criação de gado tem as suas origens nos “capins” nativos africanos.

É imensa a variedade de antílopes e de predadores carnívoros. A natureza é de uma prodigalidade que encanta. Extensões imensas com manadas de animais que por vezes atingem largos milhares.

Quem alguma vez esteve em África jamais pode esquecer o que viu. E quem não viu não consegue imaginar.

Há por todo esse mundo lugares lindíssimos como o Rio de Janeiro, Acapulco, os Alpes, Havaí, as ilhas do Caribe e do Pacífico, a inigualável Amazónia, etc. Obras feitas pelos homens nos deixam igualmente extasiados, como as Pirâmides do Egito, as ruinas astecas, Machu Pichu, monumentos na Grécia na Itália e na China, mas não creio que nada tenha a beleza e a grandiosidade de uma manada de cinco ou seis mil búfalos em plena liberdade, ou uma centena de elefantes com os seus enormes chefes e pequenas crias, tomando banho num rio ou num charco, ou assistir a uma caçada feita por uma família de leões!

Ainda hoje há possibilidade de ver algo, se não desta grandeza, pelo menos com beleza semelhante, porque felizmente diversos países mantém um razoável número de “parques de caça” onde o visitante somente pode caçar com a sua máquina fotográfica ou de filmar.

As boas e precisas armas de caça só há poucos anos (talvez uns oitenta!) invadiram aquele continente.

No século passado (XIX) e nos primeiro deste a caça que o homem branco ali fazia era desportiva e para fins alimentares e não predatória.

Procurava o melhor e maior troféu o que pressupunha caçar o velho macho solitário, já isolado pela sua manada que, sem mais servir como reprodutor, aguarda a morte natural, quase sempre violenta, por predadores mais fortes. Por isto todo o solitário é um animal desconfiado, e como todo o solitário, mal disposto, pronto a defender aquele resto de vida.

Os nativos, que não faziam caça desportiva, matar por matar, nem possuíam as inconvenientes armas de fogo, mantiveram todo um equilíbrio natural até à entrado do século XX. Talvez até mês a meados deste século. Caçavam o suficiente para se alimentarem. Só os elefantes é que sempre sofrerão perseguição porque o marfim era, e ainda é, considerado moeda valiosa, muito procurado desde a antiguidade. Mas a precariedade das suas armas, lanças e setas, manteve o abate destes animais em número reduzido.

Mais tarde, a expansão do homem em geral, ocupando cada vez mais território com seu gado e agricultura, necessitando por isso das pastagens que até há pouco eram privativas dos animais selvagens, e a desenfreada caça com armas até automáticas, puseram em eminente perigo a extinção desta vida selvagem.

Hoje, mais ainda com a independência dos territórios africanos e sua necessidade de desenvolvimento agrícola para alimentaras populações com índices de crescimento elevados, a divulgação das armas de fogo e e o descontrole que reina em alguns desses países, com guerrilhas permanentes, esse paraíso natural está ameaçado de desaparecer rapidamente, e dentre em breve podem sobrar somente uns escassos parques de caça, e os zoológicos, onde os nossos filhos e mais descendentes mal conseguirão apreciar os animais.

Faltar-lhes-á o seu habitat natural, a sua vida em total liberdade, a maravilha do equilíbrio da natureza que o homem tanto se esforça por exterminar.

Não há muitos anos, ainda perto das povoações e bem perto significa alguns centos de metros, se podiam encontrar diversas espécies de antílopes pastando, por vezes descaradamente a comer dentro das hortas que os agricultores faziam à volta das suas casas, ou mesmo dentro de quintais. Até os leões entravam nos curraispara pegar um ou mais bois, geralmente os mais frágeis ou os mais gordos, para suas festanças. Depois de os matarem saltavam muros com mais de 2 metros de altura carregando nas costas o “petisco” que podia pesar duas ou três vezes mais do que eles.

Os antílopes pastavam, os carnívoros os pegavam e assim se mantinha todo um equilíbrio que era um espetáculo belo e gratuito.

Poucas as armas de fogo, os nativos caçavam só para se alimentarem, quase sempre com as habituais lanças, flechas e armadilhas.

 

Cruzar Angola pelo Caminho de Ferro de Benguela, que saía do Lobito, um porto de marno Atlântico, para o Katanga (hoje parte da República “Democrática” do Congo), no centro de África, era um permanente espetáculo inesquecível. Começava por atravessar uma pequena área de areia ou mata rala, com uma altitude de 50 a 100 metros acima a do nível do mar, para logo em seguida subir para o planalto interior com uma altitude média de 1.300 a 1.700 metros. Aqui as savanas se sucediam, imensas, a perder de vista, com os seus capins verdes ou amarelos conforme a estação do ano. Quantas vezes o trem era obrigado a parar porque uma manada de zebras, ou gungas (elandes), ou búfalos e até elefantes estava atravessando a linha ou pastando ao seu lado. Por vezes não conseguindo parar ou abrandar, atropelava um ou outro animal que era colhido de surpresa à saída de uma curva. Se fosse um animal grande o trem para se vistoriar se a locomotiva havia sofrido algum estrago (?), os passageiros todos também saiam para ver o que tinha acontecido e aproveitava-se a oportunidade para esfolar o bicho, e levarem para casa uma saborosíssima carne fresca!

Aquelas planícies sem fim cheias de animais de tantas espécies, mesmo que se vivam cem anos não se podem esquecer. Era obrigatório, mesmo para ateus, louvar a Deus, pela beleza e grandiosidade que nos encantava.

Pelos anos 40 os transportes rareavam, não só porque o seu desenvolvimento ainda era pode dizer-se precário, como o mundo inteiro estava a sofrer com toda a perturbação da II Guerra Mundial. O acesso ao interior de Angola, exceto no trem, era feito Deus sabe com que dificuldades e canseiras. Estradas pavimentadas não havia mais do que umas escassas dezenas de quilômetros (parte no Norte e parte no Sul). Tudo o resto eram caminhos cujo estado em que se encontravam era designado só por duas referências: “passa” ou “não passa”! Na época das chuvas, sobretudo no Norte, o estado das estradas-caminhos, de terra,  era o segundo: “Não passa”! E os carros, caminhões, ficavam aguardando, muitas vezes enterrados na lama, que um ou dois dias de sol, ou a ajuda de terceiros fossem tirá-los ali.

Entretanto mosquitos e mais toda a sorte de outros de outros miseráveis insetos, à mistura com um calor imenso e abafado, eram a única ocupação dos camionistas ou viajantes naquelas terras.

Os caminhões por falta de combustível (escasso por causa da guerra), nesse tempo quase exclusivamente gasolina, usavam tudo que pudesse queimar para não ficarem sem trabalho, e cada um inventava a mistura que parecia dar melhor resultado, e procurava óleo de dendem, azeite, resquícios de gasolina, etc., e lá seguiam sertão adentro, levar e trazer mercadorias. Não era milagre, era a força interior e o desejo de vencer, de dominar o meio e os elementos numa terra bravia, inexplorada, que cada uma queria considerar como sua, também.

Angola ficou a dever uma dos maiores quinhões da sua ocupação e desenvolvimento do interior ao esforço e coragem desses homens que tudo faziam para não pararem, para quem parecia que não havia obstáculos que não fossem transponíveis. Brancos, negros e mulatos, empenhados na mesma luta e objetivos, lado a lado, criaram uma infraestrutura de capital importância para o progresso e desenvolvimento do país.

Quando lá no interior (a que se chamava genericamente “mato! Saía-se da cidade e ia-se ao mato, a dez ou quinhentos quilómetros de distância! ) o governo abria alguma estrada nova ou procurava conservar as existentes, ou fazia qualquer outra obra longe de centros de abastecimento, contratava os nativos locais o que lhes proporcionava um pouco de dinheiro extra (pouquíssimo, vergonhosamente pouco!) mas tinha que os alimentar, sobretudo quando eram obras grandes ou demoradas e ocupavam muita gente.

Como não havia carne de gado, a solução era contratar um “caçador profissional” que se comprometia a levar com regularidade carne suficiente para dar de comer a toda a gente. Possuidor de uma licença de caça especial, experiente caçador, hábil e consciente, a sua vida era o permanente contato com o mato, a espera, a caça, o transporte dos animais abatidos até aos locais de consumo. E levava antílopes, búfalos e outros conforme a área em que se encontrava.

Naquele tempo muita gente caçava (eu também!) e, se não todos, a maioria tinha uma profunda consciência do que fazia.

Primeiro era obrigatório ter licença de caça passada pelos Serviços de Veterinária, que podia ser anual para animais pequenos, ou especial para os grandes e limitada normalmente a um exemplar, e a uma área especificada, tudo obedecendo às épocas definidas para as diferentes espécies, e rigorosamente proibida no defeso.

 

PS.- Até eu que cacei por todo o lado, um dia decidi que não queria mais matar animais, depois que um amigo e parceiro de caça foi morto num acidente com elefantes.

Nunca mais dei um tiro!

 

Escrito em 1986 e revisto em 09/09/23

 

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

 

INTROITO... não introduzido

 Há já algum tempo - em 1989, de que são passados 34 anos - comecei a escrever umas “coisas” que acabaram formando o livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”, e este gerou uma boa quantidade de agradáveis comentários, muitos deles guardados até hoje.

Essas “coisas” começaram por cenas de caça vividas em Angola, que mandei ao meu GRANDE amigo João Salgado, amigo de infância e parceiro de algumas caçadas, para que me desse a sua opinião sobre os escritos.

Respondeu-me logo. Tinha gostado imenso, fez alguns comentários e relembrou várias outras cenas. Enfim incitou-me a que continuasse a escrever.

Continuei.

Para isso, na altura lembrei-me de escrever um Introito, que pareceu fundamental para iniciar um possível livro, introdução essa acabou não sendo usada, e agora descoberta um papel amarelado e fragilizado pela idade, no meio de uma infinidade de outros papeis a que estou a ver se sou capaz de ordenar.

Achei o Introito “abortado” na ocasião, pois não o encontro em nenhum dos livros que escrevi.

Achei interessante (não me estou a gabar) e decidi que o daria a conhecer aos que leram o livro e aos que não leram!

Podem comentar à vontade, dizer bem ou mal, o que desde já agradeço!

N.- O que vai entre parêntesis e em itálico não é do original.

 

INTROITO

Todos os, como eu, cresceram e foram educados no tempo do Estado Novo (em Portugal), talvez também uns quantos mais antigos e, quem sabe?, se igualmente muitos das gerações mais novas, ficámos imbuídos de um complexo histórico que nos marcou estranhamente, com uma espécie de aversão aos espanhóis que sempre procuraram dominar toda a península, mas a quem os nossos ancestres tão bem enxotaram do terreno luso.

Haja em vista a Batalha de Aljubarrota, o movimento para a Independência em 1640, sem falar no nosso rei Afonso IV que, não fosse ele, ainda hoje Granada ...

Depois a nossa ajuda durante a triste guerra civil (quando os comunistas que se preparavam para ganhar a guerra afirmavam que a seguir iriam sovietizar Portugal!). E até há poucos anos quando o escudo valia duas e meia pesetas, o que nos dava uma sensação de superioridade que confirmava a psicose recebida na escola.

Com o correr dos anos fui aprendendo que, em cada vinte jogos de futebol Portugal-Espanha nós conseguíamos a tremendo custo ganhar um, empatar outro e perder os outros dezoito! Isto, segundo se badalava, jogando melhor que os adversários, como é de imaginar. Mas sempre havia azar, árbitros do contra, etc..

A seguir assistimos a um estupendo surto de desenvolvimento harmónico dos nossos vizinhos, a um inteligente jogo político entre os diversos partidos, e... a uma constante desvalorização do nosso dinheiro que hoje vale dois terço de uma peseta!

Felizmente que já há muito tinha conseguido constatar que aquela noção de comparação Portugal-Espanha estava totalmente errada. Graças a Deus, quando não o choque teria sido muito grande.

Com respeito aos mouros, uma vez que haviam sido escorraçados do nosso território há muitos séculos, ficou-nos o tal complexo por termos sido “colonizados” durante quinhentos a seiscentos anos por “gente de condição tão inferior” à nossa. Como tal havia sido possível? Só por questão de números: nós éramos poucos e os “infiéis” aos milhões! Só assim.

Na escola creio que se esqueceram de nos ensinar algumas coisas que me parecem de importância relevante na nossa vida quotidiana, mesmo hoje, final do século XX,

Por exemplo só o facto de nos terem deixado o “almoço”! Imaginem se tivéssemos ficado sem ele. E o fado? Sim, o fado? Já pensaram o que seria dos portugueses, sobretudo lisboetas e estudantes de Coimbra, sem o fado? E não me venham dizer que isso não é herança dos árabes. E os alcatruzes das noras? E as moiras encantadas, de olhos azuis, que davam toda a beleza aos contos com que adormeciam os nossos avós? Que mais nos deixaram? Tantos e tantos ensinamentos de ciências matemáticas, médicas, agrícolas, etc. Talvez a maior herança desse povo tenha sido ainda a nossa capacidade de miscigenação, que criou os novos mundos onde não se chocam nem raças nem credos.

Deixou-nos também um provérbio, cuja origem se perde no tempo, de uma saberia imensa: “Um homem só se realiza neste mundo se tiver um filho, plantado uma árvore e escrito um livro.”

Parece um ditado machista, mas tanto pensei nele, por achá-lo curioso, que não foi difícil encontrar-lhe o profundo significado: em primeiro lugar, se o homem não fizer filhos a humanidade acaba por se extinguir.

Crescei e multiplicai-vos. Há que perpetuar a espécie. Mais do que evidente.

Depois tem que plantar uma árvore para deixar aos vindouros a natureza equilibrada, tal ou melhor de como a recebeu. Usou madeira, lenha, e sabe que se não replantar, um dia os seus descendentes não vão ter mais florestas, perigando a sua sobrevivência. E hoje em dia que tanto se fala em equilíbrio ecológico, há quantos anos os árabes nos deixaram essa mensagem?

Finalmente escrever um livro. Para quê? Para que possamos passar aos filhos os ensinamentos que conseguimos ir colhendo ao longo dos anos.

Provérbio sensacional. Foi ele que me inspirou a escrever.

Filhos tive número suficiente para me terem mantido ocupado e preocupado durante muitos anos, e ainda hoje. Netos já começaram também a chegar (em 2023 estamos nos bisnetos) que continuam a povoar este mundo.

Árvores plantei muitas, de muitas espécies e em muitos lugares. Talvez milhares. E continuo plantando, não só por considerar isso importante para o equilíbrio da natureza, mas por puro egoísmo também: as árvores são seres lindos, e dá um enorme prazer vê-las crescer. Eu sei que algumas levam dezenas e dezenas de anos a se tornarem “adultas”, e a grande maioria eu já não vou ter possibilidade de apreciar. Mas o mundo não acaba quando eu fechar os olhos.

O livro. Não que eu tenha pretensões em deixar aos vindouros algum ensinamento especial. A minha ignorância não o permitiria. Mas todos nós temos passagens nas nossas vidas que pensamos merecem ser contadas.

Tudo aquilo que escrevi não é ficção. Foram episódios da minha vida ou da vida de alguns amigos que compartilhei. Podem não estar cronologicamente corretas, mas isso não impede que se tenham passado como os conto. Infelizmente do mesmo modo não soube contá-los com a graça e a vida que alguns tiveram, nem descrever a cor local.

São um apontamento e assim devem ser lidos

 

São Paulo, Abril de 1989

 

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

 

O Mistério da Tinta Azul

 

Lá pelas bandas onde fui nascido, os indígenas daquela terra usam umas frases que, sendo clássicas, usadas desde tempos imemoriais, que hoje nos fazem rir, e gramaticalmente, soltas, não fazem qualquer sentido, como por exemplo o “ele há coisas...!”

Mas a verdade é que quando menos se espera nos deparamos com situações de tal forma insólitas que, regredindo ao berço natalício sou obrigado a exclamar, repetidas vezes até, o tal ele há coisas...

E há mesmo. Vou contar-vos o Mistério da Tinta Azul, a que se levantou já um pouco do véu que encobria a razão da sua existência, sem porém, todavia, contudo ter deixado revelar a origem de tal caso.

Começando pelo começo ou pelo princípio, há uns dias começaram a aparecer na roupa que vestia umas pequenas manchas de tinta azul, sem que eu tivesse mexido em tintas, nem andasse na fase das pinturas e/ou retratos, até porque estava sobretudo na fase de uma fraqueza que mal me podia aguentar em pé mesmo sem pinceis nem mesmo só com as ideias pictóricas. (Felizmente essa fase passou, e já fiz alguns riscos... pouca coisa).

O problema era descobrir de onde vinham essas manchas.

A minha mulher, com aquele instinto feminino que aos homens parece estar vedado, foi dizendo que eram de tinta de caneta.

Para quem usa, nos dias de hoje só esferográficas – o tempo das canetas tinteiro já passou, e que ainda me lembro que as que nos eram dadas para ir para escola eram baratas – nada de Mont Blanc, Parker ou similar -  às vezes eu chegava a casa com a camisa... azul! O depósito da tinta tinha estourado.

Discutindo o assunto em concílio familiar, conclui-se que necessitávamos de ajuda de especialistas para investigarem e, se, descobrirem o insólito.

E assim se fez.

Deixei-me de cerimónias e escrevi, não na Internet mas no Etéreo...net, primeiro, a Conan Doyle, Sir, pedindo-lhe que explicasse o assunto ao grande Sherlock Holmes, que ele certamente encontraria uma explicação.

Não tardou a que recebesse uma mensagem do famoso detetive dizendo que após discutir o assunto com o seu colaborador Dr. Watson, possivelmente encontraria qualquer resposta em alguma flor, dada a exuberância dos trópicos, mas para confirmação eu deveria enviar-lhe uma série de flores, que ele descreveu, para análise.

Sugeriu que eu verificasse se não seriam resíduos, pingos, de sorvete de açaí ou da tinta de alguns calamares.

Não sr. Sherclok Holms, há anos que não como “chocos em su tinta”, mas fico-lhe agradecido porque gosto muito do açaí gelado, que fazia dias que não comia, e o açaí é cor quase preta. E tudo isto bem antes das manchas de tinta terem começado a aparecer.

De qualquer modo fiquei lisonjeado pela rapidez com que os senhores Conan Doyle, sir, e Sherlock Holmes saíram do seu eterno sossego, para colaboram com um mísero e já gasto terráqueo, pelo que logo lhes enviei os meus profundos agradecimentos.

Face a este insucesso restou a grande Agatha Christie, a maior vendedora de livros deste planeta, que do mesmo modo, sem querer ficar atrás do seu admirado percursor, já Sir, Conan Doyle, no meio dos seus imensos trabalhos – os seus livros, já venderam mais de 4 bilhões de exemplares! – mandou dizer-me que tinha entregue o assunto a Hercule Poirot, que pediu mais detalhes do Mistério, quando ainda chegou a dizer que iria convocar a Miss Jane Marple para o ajudar, porque o assunto parecia circunscrever-se a um ambiente familiar.

Miss Marple fez uma rápida análise sobre os habitantes desta casa e não demorou a suspeitar de uma bolsa que costumo usar pendurada no pescoço onde guardo óculos e uma caneta, que ela, com sua perspicácia descobriu numa aquarela minha feita há mais de 20 anos!

Feita uma inspeção à dita bolsa constatou-se que estava cheia de tinta... azul.

Oh! Mistério! Quem pôs ali a tinta? A caneta, esferográfica estava seca, não suja e a escrever, os óculos não usam tinta e estavam limpos e secos, mas quando decidi lavar a bolsa, de lá saiu uma quase infindável quantidade de tinta misturada na água da lavagem.

Mas, Miss Marple, como foi a tinta ali parar?

Aí Miss Marple engasgou e, claramente disse que já não era assunto que pudesse analisar e não fazia a menor ideia.

O mesmo aqui em casa. Muitas opiniões ouvidas, todas inconsistentes não levaram a qualquer solução.

Que a tinta estava na bolsa, estava, mas como foi lá parar nem os grandes detetives da história foram capazes de saber.

Lavou-se, muito bem, a bolsa, ficou um dia pendurada ao sol, voltou a estar em uso, pendurada no meu pescoço, mas ficou o segredo ou a incógnita, do modo como a tinta tinha entrado na bolsa.

Realmenteele há coisas”!

31/08/23