terça-feira, 29 de junho de 2010

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CASOS  DE  POLÍCIA - 2




Nas vésperas de sair de Angola, como muitos outros, mandei dar um trato no meu carro, uma Variant, cor bege, para ver se o conseguia despachar para algum comprador. Disfarçar um ou outro ponto com ferrugem e dar um polimento. Pouco mais. O carro ficou com boa aparência.
A ilha de Luanda é uma língua de terra com uma meia dúzia de quilometros de comprimento, em frente à cidade, que dá forma à baía e abrigo a um magnifico porto. Quase sempre estreita, tem na sua parte mais larga, talvez uns duzentos metros de largura, baía-mar, uma aldeia grande de pescadores. As praias ficam tanto do lado do mar, como a seguir a essa aldeia do lado da baía, sendo estas ideais para crianças, porque aí o mar não é mais agitado do que uma piscina. Águas sempre limpissimas. Isto há muitos anos porque agora a baía está cheia de navios fundeados e...


A ponte da Ilha - quando ainda era ponte! - em 1924

A ilha, é ligada ao continente por uma ponte, aterrada, bem em frente ao morro onde está a bonita fortaleza de São Miguel. Para o lado norte fica a maior porção da ilha, com suas praias, aldeias, etc., e para sul tem só uns centos de metros de comprimento. Aqui, do lado do mar é sustentada da ondulação por paredões de pedra, que atraem muito peixe. Esta ponta sul habitada desde há muitos anos, tinha além de umas quantas casas de habitação, parte delas construídas em madeira, antigas, três boites para machos e dois restaurantes. Ali estava concentrada grande parte da noite de Luanda. Um dos restaurantes, o Mar e Sol servia mariscos estupendos e no seu cardápio constava, entre outras iguarias Omoleta e o Flá Minhão! Mas era ótimo, um primeiro andar tipo varandão, que a brisa da tarde, fresca e carregada de umidade, obrigava a descontrair o ambiente e a beber bastante cerveja!
Domingo de tarde, no regresso da praia, lá do fundo norte da ilha de Luanda, mulher e uns quantos filhos pequenos dentro da tal Variant, bem devagar para gozar os lindissimos fins de tarde daquela terra. O mar de um azul profundo, dengosamente ondulado com o vento regular que à tarde, no verão, sempre sopra no sentido da terra, todos já olhando para aquilo com ar de despedida e a certeza de em breve ter que ir embora.
Passámos a rotunda de ligação à ponte e decidimos ir até ao lado sul, sempre cheia de pescadores amadores, que nunca voltavam para casa com as mãos vazias. Era mais uma distração ver aquela gente tirando peixe do mar. 

Nos anos 60 já não era ponte

A rua naquele lugar, em frente às boites, era muito larga e consentia com facilidade o estacionamento de carros na perpendicular de ambos os passeios e ainda deixava espaço para circularem à vontade, lado a lado, mais três carros. Não sei quantos metros media, mas era muito larga. Espaço não faltava.
Em sentido contrário aproxima-se outro carro de cor escura, também devagar, vindo direto a mim, completamente fora de mão. Para o alertar toquei a buzina e guinei ostensivamente o meu carro para cima dele, o que foi o mesmo que nada. O sujeito viajava noutro planeta, porque continuou o seu percurso imperturbável. Devia estar pensando ou no futuro, incerto para todos, ou nalguma garota daqueles cabarés, sem ver que eu estava pela frente dele. Resultado, os carros passaram de raspão um no outro, fazendo um barulho medonho, mas sem mais consequências do que ficarem ambos com um risco, o meu escuro e o dele bege. Até que os riscos ficaram bonitinhos, certinhos, apesar de não fazerem parte da pintura original! Nada mais do que isto. Parámos um metro adiante cada um, o que evidencia que circulávamos bem devagar. O atingido sai do carro, analisa os estragos e parte para cima de mim a reclamar:
- Está a ver o que o senhor fez?
- Ah! O que EU que fiz?
- O senhor atirou o carro para cima do meu.
- Oiça aí, ainda não deu conta que está completamente fora de mão?
- Mas o senhor atirou o carro para cima de mim - insistia o sujeito, um tanto avermelhado com a fúria da razão que supunha lhe assistia, e era em parte meia verdade.
- Vá chamar a polícia.
- Tenha paciência, mas chamar a polícia, eu, não vou. Trabalho a semana toda fazendo o que os patrões mandam, e ao domingo só faço o que quero. Se quiser chamar a polícia, chame. Eu é que não vou. Não quero.
- O senhor não vai?
- Não.
- Então vou eu.
- Vá.
- Mas o senhor não vai embora.
- Não.

Nos anos 70, vendo-se bem como já não era ponte
Lá foi o homem procurar um telefone num daqueles restaurantes, gesticulando, maldizendo de certeza a minha pessoa, que ficou à espera, encostada ao carro enquanto os filhos aproveitavam para gozar um pouco a habilidade ou sorte dos pescadores.
Quinze ou trinta minutos passados regressa o homem esbaforido.
- A polícia ainda não veio?
- Não.
Nervoso, vai-se lamentando:
- E eu que tinha mandado arranjar o carro para o levar para a metrópole, e agora já tem um risco destes!
- Não precisa ficar nervoso, e o seu caso não é único, nem nenhuma desgraça. Eu também tinha mandado arranjar o meu e ficou com o mesmo risco, só que de outra cor. Qualquer deles sai com um pouco de polimento.
A polícia não chegava, e o homem, agitado, vai de novo telefonar. Nestes entrementes lá vem aparecendo um polícia de trânsito, e o nosso homem, que o vê de longe, corre para ele.
O polícia sai da moto e pergunta:
- O que houve?
- O que está vendo.
- Onde está o condutor daquele carro?
- É aquele que vem ali a correr.
Este logo que se aproxima vai direto:
- Senhor polícia, o senhor está a ver? Ele veio para cima de mim e bateu no meu carro.
O polícia vendo o disparate da situação, com dois carros quase encostados, ambos do mesmo lado da rua, logo mandou calar o reclamante.
- Mas foi ele que veio para cima de mim.
- Cale-se, por favor.
Com uma cara meio chateada, passo lento, foi à moto buscar uma fita métrica e medir a largura da rua, a distância de cada um carros aos passeios, etc. Fazer o croquis do acidente. Era evidente que ao outro não assistia a menor razão. Tudo medido, vira-se para mim e pergunta:
- O senhor quer apresentar queixa?
- Eu não. Ele é que quis chamar a polícia. Com dois minutos de massa de polir o carro fica como novo.
O atingido é que não se dava por vencido, e insistia:
- Mas foi ele, o culpado. Ele é que veio para cima de mim.
- Então vamos até à esquadra, disse o polícia.
- Vamos embora. É mais uma variante para a monotonia dos domingos.
Voltam os filhos a entrar no carro e lá nos encaminhamos todos para a esquadra, polícia na frente com a moto, os dois carros atrás. Ali chegados manda-nos aguardar e entra para falar com o chefe, a dar contas do acidente! Foi a vez do chefe interferir. Chama os dois envolvidos e repete para mim a pergunta do guarda:
- O senhor quer apresentar queixa?
- Não senhor, respondi.
- Bom, - virando-se para o outro - se o senhor quiser apresentar queixa, pode fazê-lo, claro. Não sou eu que julgo. É o juiz, no tribunal. Mas como eu ando nesta vida há mais de vinte anos até já sei o que o juiz vai decidir: circular na faixa contrária dá apreensão de carta por seis meses, multa, pagamento dos estragos de terceiros, custas do processo, etc. Se o senhor quiser...
O palerma do atingido, ainda pensava continuar a reclamar, e nem a evidencia da situação conseguia convencê-lo que estava totalmente errado. Como é de imaginar não fez qualquer queixa.
Despedimo-nos dos polícias, e à saída da esquadra o babaca ainda voltou a dizer:
- E esta, hein! O senhor é que bate no meu carro, e a culpa acaba por ser é minha!
- É. Por acaso o senhor não estava a conduzir em Londres?
- Não. Porquê?
- Deixa p’ra lá.

in "Contos Peregrinos a Preto e Branco", 1988

segunda-feira, 21 de junho de 2010

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CASOS  DE  POLÍCIA



Quem não teve na vida uma ou diversas andanças com a polícia, no seu país ou até mesmo no estrangeiro? Polícia da cidade, em Portugal simplesmente PSP, a polícia de segurança publica que no Brasil é PM, polícia militar, de trânsito em Portugal, rodoviária no Brasil, de fronteiras ou federal, lá ou aqui, tanto fazendo que o aqui seja lá como vice versa, guarda fiscal nas alfândegas, e outras tantas variantes.
Tem muita variedade, ou especialidade de polícia, como ainda a judicial ou civil, e até, mesmo disfarçada, a secreta e os bufos.
Em países de primeiro mundo a polícia há já muitos anos é composta só por elementos com educação e cultura, e salário correspondente. Polícia competente.
Noutros, o caso não é bem assim, e tempo houve, que com a graça de Deus vai pertencendo ao passado, em que em Portugal se dizia que polícia era três furos abaixo de cão! Não que exatamente o fosse, mas onde havia fumo sempre houve fogo. Também por lá se dizia que só ia para polícia quem não sabia fazer mais nada.
De uma forma um quanto genérica, em países onde a polícia não representa a verdadeira autoridade constituída, a lei do teórico direito igual para todos, sem prepotência, ela é detestada. Também é mal paga, e talvez por isso mesmo quantas vezes se arroga uma força, que a farda lhe não confere, de que assim mesmo abusa.
Sempre houve polícias magníficos, cumpridores, zelosos, conscientes, educados, pobres, mas por menor que a nódoa seja o pano não está mais limpo. E ninguém jamais soube ao certo qual o tamanho da nódoa!
No entanto há polícias que ficam na memória.


O famoso "cara d'Aço"


Há mais de meio século, em Lisboa houve um, no trânsito, sem qualquer graduação, conhecido pelo Cara d’Aço. Não sorria, nem dava colher de chá, era temido mas tempo respeitado e admirado. Correto e incorrupto.
O Cara d’Aço quando aparecia, ou o motorista tinha tudo em ordem, ou não havia presidente, ministro ou general que conseguisse escapar das suas multas. Sempre justas, e assim indiscutíveis.
Durante a guerra, lá pelos anos 1940-44, com a tremenda dificuldade de combustível generalizada, em Portugal, os carros particulares só podiam circular às quartas e sábados. E além disso ainda tinham que previamente adquirir senhas, que sem elas não se abasteciam. Era o racionamento. Limitadissima quantidade por cada carro e por mês. Nos restantes dias só taxis, carros de serviços públicos ou de alguns particulares que, com autorização especial os utilizavam em serviço do Estado.

Ilídio Azevedo era um técnico de máquinas agrícolas, funcionário do Estado, autorizado a usar o seu carro, oficialmente, em serviço. Um carrinho pequeno dos anos trinta, descapotável, daqueles que além de abrir a capota ainda deitava o pára-brisas para a frente. Uma gracinha de carro.

Descia uma das principais avenidas de Lisboa, e lá estava o Cara d’Aço imperturbável no controle do pouco trânsito da época. Manda-o parar, com educação o cumprimenta e pede-lhe os documentos.

Ilídio, ar gozador, investido da importância que o poder andar no seu carro supostamente lhe daria, foi tirando da carteira todos documentos que carregava consigo e colocando-os alinhados em cima do pára-brisas, deitado sobre o capô. Bilhete de identidade, livrete do carro, licença de caça, carteira profissional, cartão de sócio do Benfica, e de outras agremiações desportivas ou culturais, e mais uns tantos outros deixando para o fim a tal licença que lhe permitia circular todos os dias, convencido que estava a levar grande vantagem sobre o polícia. Este, continuando a observar os outros poucos carros que circulavam, aguardava imperturbável o final da gracinha do motorista.
Tudo muito bem exposto e alinhado, o Cara d’Aço, sem baixar os olhos para aquela exibição, olhando bem nos olhos do motorista, diz-lhe com ar tranquilo e seco:
- Muito obrigado. Tome atenção que a sua licença de circular vence amanhã. Boa tarde.

Virou costas e deixou o engraçadinho ali especado, ao lado do carro, cara de bobo. Ele que esperava gozar com o polícia acabou ficando enxovalhado, catando de volta à carteira toda a papelada. O mais curioso é que ele nem fazia idéia que a licença ia caducar! Se fosse apanhado dois dias mais tarde teria o carro apreendido e pagava multa, que era pesada!

Naquele tempo, e naquelas circunstâncias da guerra os carros eram poucos, e a sensação geral era que o Cara d’Aço conhecia todos os carros e todos os motoristas. Ele só mandava parar alguém quando sabia - ou pressentia? - que alguma coisa não estava em perfeita ordem. Era um sujeito incrível, e impecável.
A uma senhora, metida a fina, a chic, que circulava em Lisboa, já depois da guerra, num vistoso carro americano conversível, com matrícula estrangeira, que depois de entrar em Portugal só podia circular no país durante três ou seis meses, o Cara d’Aço um dia pediu-lhe os documentos, que estavam em ordem. Mas fez um aviso:
- A senhora tome atenção porque o prazo para circular em Portugal termina em dez dias.
A dona chic entrou no carro, ar arrogante, e seguiu. O marido seria gente importante e nisso ela confiava. Se ele nela, que se andava a pavonear pela cidade... isso é outro papo que não vem agora para o caso. Nas vésperas de caducar o prazo que a lei concedia, o Cara d’Aço manda de novo pará-la e sempre com a mesma cara, e a mesma postura, educado:

- Não esqueça que só pode circular em Portugal mais dois dias. Bom dia.

Três dias depois, vem a senhora, o carro aberto, ar de grande madame, descendo a avenida. Ali estava também o nosso Cara d’Aço!

Manda parar o carro, pede os documentos, o prazo tinha expirado!
- Minha senhora: este carro está apreendido!
A senhora corou, berrou, blasfemou, mas o carro ficou ali mesmo e ela teve que seguir a pé! Apesar do marido importante ninguém a livrou da lei.



O Osório



Em Luanda, na fábrica de cervejas da Cuca trabalhou em tempos um pedreiro, rapaz novo, português, que mal sabia assinar o seu nome. Nem como pedreiro bom era, e como pessoa podia até ser ótimo, mas burro que nem um tijolo. Um belo dia despediu-se da empresa e não apareceu mais. Também não fez falta. Passaram-se meses e um dia tive que ir ao aeroporto, nem sei já o que fazer, mas qualquer coisa muito rápida. Parei o carro em frente à entrada, onde não era permitido estacionar. O estacionamento era ali mesmo ao lado, só contornar o passeio, mais umas dezenas de metros, mas como não havia movimento de aviões, o que supõe o aeroporto vazio de gente e carros, pareceu-me que não faria grande mal parar ali mesmo por uns momentos. Um polícia aproximou-se, tentou aprumar-se e disse:
- V.Exa. não pode estacionar aí.
- Eu não vou estacionar. Não demoro nada. Vou só ali dentro perguntar a que horas chega o vôo X.
- Mas não pode. Aqui não pode parar.
Como não valia a pena insistir com o polícia, fui para o estacionamento. Quando saí do carro e olhei melhor para o dito representante da autoridade, vejo-o sorrindo para mim e reconheci aquela cara, mas não sabia de onde.
- Eu conheço você, não conheço?
- Trabalhei na Cuca como pedreiro. Sou o Osório.
É verdade. Só podia ser ele mesmo! Aí a exclamação de espanto foi mais forte do que a musculatura que devia manter a minha boca fechada e acabou saindo o que não queria:
- Realmente, Osório, você só mesmo na polícia!
Penso que ele recebeu isto como um cumprimento, porque ficou com um sorriso idiota estampado na cara!
Era muito assim na polícia, e por esse mundo afora ainda tem alguns osórios, uns bem piores do que este que ainda mostrou os dentes com um sorriso. Idiota, mas sorriso. Felizmente é uma espécie, em muitos lugares, em vias de extinção!

in "Contos Peregrinos a Preto e Branco, de 1998

sexta-feira, 18 de junho de 2010

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O Contrabandista



Quem se lembra do fado-canção de Alberto Ribeiro, que foi grande sucesso lá pelos anos 40 ou 50, “O Contrabandista”?
“Ai! Não há maior desengano / nem vida que dê mais pena / do que a vida do cigano. / Atravessar a fronteira / para ser atravessado / por uma bala certeira. / E tudo porque o destino / que fez dele um peregrino, / companheiro de luar / um triste judeu errante / que não tem pátria nem lar”!
Portugal com a sua economia também triste, e com uns dois milhares de quilômetros de fronteiras terrestres e marítimas, sempre foi uma atração e um mercado para os arrojados contrabandistas, perseguidos, às vezes, pela guarda fiscal, quando esta não fazia vista grossa. Também eram clientes!

Não era ainda tempo, que bom, do imenso contrabando que hoje domina o mundo, das armas e sobretudo das drogas, a que deixou de dar o nome de contrabando e passou à “categoria” de tráfico.

Hoje trafica-se tudo, incluindo crianças, mulheres e também os “inocentes” e baratos produtos chineses.

Lá no antigamente eram mercadorias “comezinhas” como alguns frascos da boa “água de Colônia” que faziam os vizinhos espanhóis, nosso maior fornecedor de contrabando. Lembro especialmente o famoso “Coñac Três Cepas” de Pedro Domecq, bem mais barato e melhor do que a maioria das aguardentes portuguesas, que ainda hoje se encontra até pela Internet, e do “Fundador”, de mais categoria.

No início dos anos 50 conheci um jovem militar, tenente, incorporado na Guarda Republicana, cuja primeira função foi comandar o posto fronteiriço de Chaves (para quem não sabe, Chaves fica no Norte de Portugal, a uns escassos dez quilômetros da fronteira com a Espanha) que, rindo, nos contou a sua primeira aventura na “luta” contra o contrabando.
Jovem, saído há pouco da Escola do Exército, resolvido a endireitar o mundo, como a mocidade em geral julga ser capaz, decidiu que havia de acabar com o contrabando que, naquela região, era intenso.

Informado com os guardas que conheciam os principais fornecedores além fronteiras, um dia meteu-se no seu carro particular, desfardado, para tentar passar por um “turista” qualquer, aí vai ele a Espanha. Em dois ou três lugares comprou uma jaqueta de couro (ótimas as que vinham de Espanha), umas garrafas de conhaque e mais algumas coisas assim banais.

Compra efetuada, pergunta aos comerciantes se lhe podiam entregar a mercadoria em sua casa. Em Portugal. Todos, com a mais natural simplicidade, lhe disseram que sim.

Regressou a casa, sentou-se numa cadeira e ficou esperando que o entregador viesse, e aí ele então se preparava para o obrigar a explicar como o sistema funcionava.

Não esperou muito. Nem meia hora depois batem à porta, aparece um garoto de talvez uns doze anos, pergunta se ele o senhor “F”, e na afirmativa, entrega-lhe todas as compras que o glorioso tenente havia feito em Espanha.

Como é natural espantou-se com a velocidade da entrega e obrigou o garoto a dizer-lhe como tinha conseguido tal proeza.

Muito naturalmente o garoto disse-lhe que, sabendo que ele era o comandante do posto de fronteira, ninguém iria abrir a mala do seu carro. Então, foi simples: ele fora na mala do carro, esperou um pouco para se certificar que ali seria a sua casa, e... pronto!

Finalizava, mais tarde o glorioso defensor das nossas fronteiras:

- Não há como lutar com esta gente. Eles inventam mil e uma maneiras de nos enganarem!

Ainda hoje assim é!



17-jun-10

sexta-feira, 4 de junho de 2010

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Anedotas de Moçambique.
Em 2001.




Não vale a pena ver sempre tudo pelo lado trágico mas, vez por outra, encarar as situações com boa disposição. Faz até bem à saúde.


Multa por osmose



Um grupo de portugueses que há pouco tempoa visitou a África do Sul, alugou meia dúzia de carros e aí vai em passeio pelo Kruger Park, e Suazilandia. Da capital da Suazi à fronteira de Moçambique são uns escassos 150 quilómetros. Porque não ir lá almoçar? Lá vão os seis carros, passam a fronteira mesmo sem visto, deixando os passaportes no controle de fronteiras, porque se tratava de uma visita de um só dia. Um pouco adiante na estrada, a polícia. Manda parar os da frente e começa a multá-los porque não levavam os cintos de segurança colocados. O último carro parou também, mesmo sem que tivesse recebido ordens para isso, mas porque viajava com o grupo. Aproxima-se o polícia:
- Tu também estás multado.
- Multa de quê?
- Cinto de segurança.
- Mas eu tenho o cinto colocado, como vê. Só parei porque venho junto com aqueles carros.
- Paraste, não paraste? Então também vais pagar a multa.
- ?!

A “doença” da pele



O Jorge é um trabalhador moçambicano, escuro, como seria de imaginar, que presta serviço na carpintaria da Casa do Gaiato. O “mestre” é um antigo gaiato de Portugal, português de sotaque fechado lá da bimbas do Minho, louro. Trata todo o mundo como se fossem cães infiéis! Foi possivelmente assim que o trataram em pequeno até ser recolhido em Paço de Sousa, para se tornar homem. Berra muito, com todos, mas não passa de berraria, e a maioria já o deixa a falar sozinho. De qualquer modo não é agradável passar o tempo todo a ouvir um sujeito berrar, tanto mais que não parece ser esse o melhor método de ensino. Mas...
Um dia o Jorge, depois de ter feito uma série de asneiras na montagem dumas janelas, ouviu uns “porros” a mais e foi queixar-se. No calor das suas queixosas divagações teve a infelicidade de apontar para o pulso e dizer ameaçadoramente:
- Se não fosse esta pele.
Eu, que estava assistindo, não participando, do problema, avancei para o Jorge, peguei no braço dele e:
- Não me diga que você está com um problema de pele. Chegue aqui à luz. Deixe ver. O melhor é você ir ao posto médico. Pode ser contagioso.
O Jorge entupiu. Entendeu a mensagem e riu. Daí em diante quando passava por ele sempre lhe perguntava se estava melhor da pele! Ganhei outro amigo!
 

Lá vai o combóio, lá vai...

Portugal, quando senhor de Moçambique, seguiu à letra a filosofia do homem de visão, cujas idéias foram desumanamente aplicadas, António Enes. Assim, em condições que na maioria dos casos se consideram hoje condenáveis, habilitou-se a colônia, ou província, com uma razoável rede de caminhos de ferro, com mais de 3.500 quilómetros de extensão. Isso permitiu desenvolver o país, e continua a ser uma das fontes de divisas, pelos serviços prestados aos vizinhos Suazilandia, África do Sul, Zimbabwe, Zâmbia e Malawi. Mal ou bem, depois da devastadora guerra fratricida, os combóios continuam a circular, a maioria do equipamento muito degradado.


“Apeadeiro Diogo”. Ao fundo a Casa do Gaiato

Uma das linhas faz Maputo-Suazilandia, sobretudo para daqui trazer o açúcar e outros produtos de exportação deste vizinho. A quarenta quilómetros da capital, passado Boane, o terreno sobre um pouco, muito pouco, e lá vem a formação, uma locomotiva e trinta e cinco vagões, a ter que vencer aquela serra de uns quarenta metros de altitude!
Durante as primeiras semanas que ali estive assisti a algo interessante. As locomotivas não tinham força para carregar aquela parafernália toda por ali “a cima”! O declive não será talvez de 0,5 por cento, mas a verdade é que num determinado lugar o trem parava. O maquinista descia, andava a pé pouco mais de mil metros e ia à Casa do Gaiato pedir para telefonar para a estação central. Ficava por lá um bocado na conversa, até que uma a duas horas depois chegava outra locomotiva a dar o empurrãozinho necessário para tirar o trem dali! Não aconteceu uma vez só. Durante várias semanas isto acontecia quase sistematicamente. Por fim devem ter reparado os motores e o problema ficou resolvido!]No ano anterior, ali mesmo em frente à Casa, onde está a moderna estação-apeadeiro, “Diogo”, nome do antigo proprietário português daquela machamba, e onde no tempo da guerra algumas formações ferroviárias foram dinamitadas e destruídas, voltava da Suazilandia mais um combóio, sempre com os mesmos trinta e cinco vagões a reboque. Desta vez o trem desce. As grandes inundações afetaram tudo, até a estrutura dos aterros de assentamento da linha, a que se pode juntar aquilo que normalmente se chamaria falta de conveniente manutenção. Um dos carris não aguentou, abriu e... lá vão vinte e seis vagões descarrilados. Uns com açúcar, outros com combustível, outros com carga diversa. O maquinista seguiu viagem. Quando parou na estação seguinte é que lhe perguntaram:
- Ha! Ha! Como tu só traz nove vagões? Onde estão os outros, pá?
- Não sei!
Não sabia. Nem se deu conta que a máquina puxava mais folgada. Era a descer. Da Casa do Gaiato é que viram o acidente, para lá correram, alertou-se a central e mandaram vir bombeiros e ambulâncias porque no meio daquelas ferragens estavam dois homens presos! Lá vieram. Primeiro, soldados para não deixar que o povo saqueasse o açúcar e outros alimentos. Sete horas depois o socorro aos homens. Um entretanto não necessitava mais de socorro!

Um dos vagões ainda lá está... “perdido”!

Dez. 2001