sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

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A LENDA DA CIRCUNCISÃO
e outras memórias

De África conservo algumas peças de artesanato que prezo especialmente.
Em primeiro lugar, a coleção de estatuetas de madeira, figuras da cerimonia da circuncisão. Feitas na região do Bié, no centro de Angola. Representam muquixes, máscaras.
1960. Por aí. Tempo em que trabalhava na Cuca, andava em viagem, como tanta vez, lá pelo interior, quando no restaurante do hotel no Bié, hoje Cuito, e na ocasião se chamava oficialmente Silva Porto, nome de um famoso sertanejo, vi alguns bonecos de madeira, artesanato local, que logo chamaram a minha atenção.
- Onde o senhor arranjou isto?
- Foi um velho que vive no mato, a uma dúzia de quilômetros daqui. Faz estas coisas que de vez em quando lhe compro.
- Quero ir vê-lo.
Foram mostrar-me o caminho. Num quimbo¸ modesto, encontrei o artista entretido a esculpir madeira. Madeira macia, talvez tronco de palmeira ou bordão, muitas das peças feitas para comércio não tinham a meu ver qualquer interêsse, mas os bonecos, eram sensacionais.

Algumas das "estatuetas" de máscaras da circuncisão

Tinha alguns começados, nada pronto. Perguntei-lhe quantos diferentes ele fazia. Não sabia. Todos, representações de personagens da cerimónia da circuncisão, uma das cerimónias mais importantes em quase toda a África. E mais antigas. Perde-se no tempo o início deste procedimento, que virou rito religioso, que segundo os historiadores, os judeus receberam através do Egito antigo, bem como os árabes e daí, através do Islão, omisso a esse respeito, acabou seguindo para o oriente. Ninguém sabe ao certo a origem desta tradição, que acabou sendo ato de profunda significação religiosa, como por exemplo entre os judeus que lhe atribuem um significado semelhante ao batismo para os cristãos. De onde veio? De África.
Rezam as lendas, que um dia um soba andava à caça, com a vestimenta que Deus lhe dera ao nascer, quando uma folha de capim, daquelas que têm os bordos serrilhados, lhe cortou o prepúcio. Regressou à embala com o pénis sangrando, onde a ciência dos quimbandas locais foi suficiente para o curarem. Pouco tempo depois, já curado, as esposas, que eram várias, não tardaram a segredar a todas as outras mulheres da embala, que as relações sexuais com o soba, depois que cortara a ponta do negócio, tinham melhorado muito!
Mulheres, metidas no assunto, num instante todas quiseram passar a usufruir do mesmo privilégio e não terá sido difícil convenceram os restantes homens a cortarem os respectivos prepúcios! Circuncisão vem do latim e significa cortar em circum, isto é em roda, o que a medicina convencional chama postectomia, que por sua vez vem do grego, para complicar, claro. Não sei como é, mas face à sua antiguidade e lendária origem... se melhora assim tanto, devíamos todos ser operados!
Terá assim nascido em África a circuncisão, que se espalhou por quase todos os povos daquele e outros continentes, a sua grande importância advindo do interêsse das mulheres e a seguir dos homens, como é evidente!
Ao artista escultor pedi então para fazer quantos bonecos soubesse e quisesse, mas que no final os identificasse um por um, porque só assim podiam ser depois compreendidos. Quando prontos entregasse ao nosso agente que lhos pagaria.
Se bem me lembro pediu cinco angolares, cinco escudos, por cada. Deixei algum dinheiro para que tivesse a certeza que eu estava mesmo interessado, e passado uns tempos, recebi em casa uma caixa grande cheia de bonecos. Adorei. Fiquei entusiasmadissimo. De uma simplicidade e ingenuidade incríveis, são um valioso documento etnográfico de uma época que está a perder-se com o avanço da civilização, e sobretudo com a devastação que o genocídio que durou quase 30 anosfez naquela região, de onde os povos tiveram que fugir e refugiar-se na miséria das cidades, destruídas e atacadas constante e alternadamente pelos exércitos do MPLA ou da UNITA. Uma desgraça.
Os bonecos, que passaram à categoria de estatuetas, importantes, alguns já um pouco martirizados devido à sua própria fragilidade e muitas viagens, são ainda vinte e dois. Já não tenho a certeza se alguma vez foram mais, mas estão todos identificados pelo artista:
Aspirante, Bambe, Belengue, Cacuni, Camussambe, Candinba, Capumba, Catelenga, Gongo-cangila. Liangou, Liavangua, Nachicole, Pundo. Sacalumbo, Sacunganga. Sati, Socou. Tumbassungo, Txiaveleca, Txibiambiulo, Txicunza. Waieia.
Os únicos que consigo identificar são: o Aspirante, cara pintada de amarelo que representa o aspirante administrativo, branco, do tempo colonial que por razões de serviço talvez presenciasse a cerimonia, e o Txicunza, adiante descrito eo Candimba, coelho, até pelas orelhas! Os outros não encontrei até hoje quem os identificasse, nem significado para a palavra.
É difícil descrever, por ordem de gosto ou ligação sentimental, estas recordações de África. Tivémos muitas, muitas, mas o tempo e as tais viagens, acabaram com um grande número delas. Não vou obedecer a nenhuma ordem especial de valores para falar delas. Só um pouquinho!
Os manipanços. Esculturas de madeira com cerca de um metro de altura. Encontrei-os em casa de um secúlo perto de Serpa Pinto, hoje Menongue, centro sul de Angola, uns trezentos quilometros a sul do Bié. No que se chamava o princípio das terras do fim do mundo! O muene, possivelmente ganguela ou quioco, não queria vendê-las, já não sei porquê, mas quando, em 1958, bati o olho neles, não desisti enquanto não o convenci. Julgo que foi habilidade dele para cobrar um pouco mais caro, no que os africanos de um modo geral são mestres. Fez bem. Tenho uma idéia, vaga, que me custaram uns cem ou cento e cinquenta escudos cada um, o que era um razoável dinheiro naquele tempo e naquele sertão. São também representações de personagens da circuncisão. De acordo com o grande etnólogo José Redinha, com quem tive o privilégio fazer amizade, e recordo com saudade, são também Txicunza!


Os "manipanços" - Txikunzas

Txicunza ou Txicanza é o rito da mucanda, a prática da circuncisão com todas as suas praxes, regras e doutrinas, que prevaleceu entre os Quiocos. O homem com a máscara Txicunza é o primeiro a aparecer nas cerimónias e ritos iniciais, e sem ela nem sequer se pode dar início à festa.
Um dos manipanços é mais simplório, naive, isto é, ingénuo, o que, a meu ver só o valoriza. O outro mais bem elaborado, parece ter influência externa, chamada erudita! De qualquer modo são companhia que não dispenso, apesar de se ver que sofreram já com os anos e viagens!
Lá das bandas do Moxico, Luena, naquele tempo Vila Luso, são as duas pequenas tapeçarias que pelas suas diminutas dimensões não sei que finalidade teriam quando foram tecidas. Devem ser uma espécie de tapetes cerimoniais onde os conselheiros se sentam quando vão visitar o soba. Quem sabe! Mas têm tanto sabor de autenticidade africana, e são tão simples, que considero, e são, duas peças de arte. Se eventualmente algum entendido não estiver de acordo, não tem importância alguma! Em nossa casa todos apreciamos, e têm sido cobiçadas. Arte quioca.

Os ngoma, tambores compridos, dois, feitos de tronco de mafumeira (sumaumeira) abertos no interior e forrados de pele em um dos lados. Continuam impecáveis, como quando os adquiri. Não admira, porque há muitos anos fazem parte da composição de estantes, como suportes de prateleiras de livros, e assim não terem sido levados pelos filhos para batucadas de destrutivas farras de rock pauleira! Se a memória não falha também são lá do sul de Angola, das bandas do Caiundo, às margens do rio Cubango. Também ganguela ou quioco.
Os dois "ngoma" de 150 escudos cada!
Há mais e 50 anos!

Armas: as de fogo, treze, que possuía, usadas em África para caçar, foram oficialmente roubadas à chegada à alfândega do Brasil! Para esquecer. As brancas, por ordem de valor real e/ou estimativo começam por um punhal e um machado que, segundo o tio meu, o grande tio Chico, que mos deu, teriam pertencido a seu tio Mouzinho de Albuquerque, grande figura da história de Portugal que chegou a ser comissário régio em Moçambique. Homem de grande valor militar e moral, foi um dos educadores do Príncipe Dom Luís Filipe que morreu assassinado junto com o pai, o Rei Dom Carlos, em 1908. Ainda hoje na Academia Militar da Áustria, aos jovens cadetes é lida uma carta de princípios éticos, pela qual estes devem pautar a sua conduta pela vida fora, escrita por Mouzinho ao seu Príncipe!
Se lhe pertenceram ou não, não tenho como garantir, mas com esse curriculum, vieram para as minhas mãos. São antigos e bonitos, sobretudo o punhal, que é uma faca de chefe, um mucuali. O machado está entre o tipo de gala e de caça, e em Angola se chama javite, onjavite, canjavite, cau e certamente de outros modos ainda.
Os dois "punhais" e o javite

O outro punhal, ou faca, foi comprado no aeroporto de Kano, na Nigéria, em 1956! Peça para turista, mas de bonito acabamento, com a bainha em pele de cobra.
Neste aeroporto passei com o meu sogro, quando íamos a caminho de Benguela. O vôo de Lisboa a Luanda, num Super G - Constellation, quadrimotor, fazia escala técnica de abastecimento em Kano. O edifício do aeroporto era pouco mais do que um armazém, estando em construção um outro menos precário.
Aterrámos antes do nascer do dia e, durante aquela escala foi-nos servido um café da manhã. Café e pão! Os criados do restaurante, belo cofió vermelho na cabeça, serviram os passageiros com café, e passado um pouco um deles percorria as mesas com uma colher e uma toalha na mão. Fazia sinal para que puséssemos o açúcar na xícara para ele mexer! Enfiava a colher na nossa xícara, mexia, retirava-a, passava na toalha e mexia a de outro freguês, e assim por diante a todos os presentes! Ou só havia uma colher naquele restaurante (?!) ou assim ele teria menos trabalho de as lavar quando os passageiros acabassem a refeição! Mistério que não decifrável na ocasião, nem depois, mas que foi motivo de boa galhofa.
Outras peças, como o arco e flechas têm a sua origem contada no meu livro “Contos Peregrinos”. Mas como sei que muitos não leram... vou repetir o que ali está escrito, até porque não tenho que me preocupar com plágios e/ou direitos autorais:

Entre o que resistiu ao passar dos anos e dessas viagens, há uma lança, um arco e algumas flechas, um javite e um facão, comprados a um caçador cuamato, lá bem no finzinho sul de Angola, em Namacunde, junto à fronteira com a Namíbia.
O melhor da recordação ainda foi a negociação. O caçador, magro e sereno, como todo o bom caçador, atravessava a povoação, com o seu trajo tradicional, que não se compunha de mais do que uma tanga, uns escassos pedaços de panos pendendo na frente do sexo, um cordão na cinta que os sustentava, e alguns colares! Às costas o facão e na mão além de uma lança, o arco com cinco flechas, cada uma com sua ponta diferente. Uma penetrante, outra cortante, outra ainda tipo moca para caçar pássaros sem os destruir com objeto cortante,e mais uma para pescar.
Quando vi todos aqueles objetos, que achei sensacionais, perguntei-lhe se mos vendia. O homem quase não falava português. A negociação necessitou de interprete, porque caçador vive sempre no mato, onde só a sua língua tem serventia, raras vezes vai à civilização, e em Namacunde a civilização mal chegara! Chegava um pequeno avião de carreira a Ondjiva, a cinquenta quilometros dali, uma vez por semana, e depois só a estrada até lá.
O homem não queria vender, como seria de esperar. Era toda a sua ferramenta de sobrevivência, de trabalho. Mas não lhe era difícil repô-la em poucos dias. A argumentação do meu “advogado” e de algum dinheiro, o dobro do que alguns entendidos tinham avaliado, acabou por convencê-lo. Fez foi um ar muito espantado para o intérprete perguntando depois na sua língua:
- Branco tem espingarda boa, não sabe atirar com arco! Para que branco queria aquilo?
Quando me traduziram a sua observação por tão aparentemente despropositada compra da minha parte, disse-lhe:
- Está vendo aquele pneu abandonado, ali debaixo daquela arvore?
- Sim.
- Olha bem p´ra ele.
O pneu estava a uns quinze metros. Apontei, retesei o arco e atirei uma das flechas, que foi entrar certinha no meio do pneu!
- Hah! Hah! Háca!
- Viu? Agora já posso ir caçar com você!
Infelizmente não fui. Quem caçou, lá em casa, foram os filhos. O arco ainda hoje sobrevive bem, com a sua tira de couro em perfeito estado de conservação, a lança e o facão também, mas as flechas quase todas quebraram em tiro ao alvo, nas paredes!
Depois disto escrito aprendi um pouco mais de termos angolanos, e assim vamos ver como eles por lá chamam aos diversos tipos de setas:
- Mive, nome genérico de flecha, nos quiocos;
- Conji, tipo moca, para pássaros, entre os lunda, quiocos e ganguelas;
- Mive-ua-txicalo, tipo arpão, de madeira, multi barbelada, pode ser dos quiocos e lundas, ou
- Nsuma em quimbundo;
- Vulongo, penetrante, de ferro;
- Mive-ua-djimbo, em forma de machado, cortante;
- Ica, formato de meia lua;
A lança tem o nome de Eoanga.
Gostaram?

Também gosto muito daquela representação de uma aldeia cuanhama, feita de junco, com uns cinquenta centímetros de lado. Os cuanhamas são um povo estabelecido em sua maioria na zona sudoeste de Angola, entre os rios Cuango e Cunene. Povo caçador e pastoril, constrói à volta das suas casas uma paliçada, alta, para se proteger, de ataque de feras, principalmente leões, e defender também o gado, que para aquela gente representa tudo. Quem por ali andou reconhece imediatamente a região de onde ela veio. É das peças mais curiosas que guardamos com carinho, muito frágil, que considero obra de grande artista, com uma imaginação espetacular. Já se conserva conosco há uns quarenta anos!

Vejam o detalhe da antepara em frente da entrada do "banheiro"!

Outras peças sem aparência, mas que eu gosto, e está o assunto encerrado, pelo menos não aberto a estéreis discussões, são as caixas de rapé. Uma delas, de madeira escura comprei do próprio utente, com o tabaco dentro e tudo. O tabaco era um horror! Tinha um cheiro horrível, e para lhe tirar esse cheiro permaneceu meses, sim, meses, mergulhada em água com detergente.


As caixinhas de "rapé" !

Os africanos fumam dois tipos de tabaco, sendo o mais comum a liamba ou maconha, com que se entorpecem e levam a vida! O outro é um tipo de tabaco parecido com o comum, conhecido como acaia e mafuinha. Em rolos, o tabaco pode chamar-se cambando ou mbandu. Ambos têm um cheiro pestilento!
O tabaco transportado nestas pequenas caixas não se destina a fumo, mas a mascar ou enfiar pitadas no nariz como se usou no mundo civilizado, e a que se chamava rapé.
Tem mais, mas ficam para a próxima.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Deus foi quem deu os dentes



Para aqueles que ainda não leram algo sobre essa outra “aventura”: em 2001 fui estar seis meses em Moçambique, como voluntário, ajudando na maravilhosa obra do Pai Américo, a Obra da Rua ou Casa do Gaiato. Na Massaca, Boane , a 45 km. de Maputo.

Há muito, muito que falar sobre esta Obra espantosa, mas hoje vão só dois “clichês” bem simples.


A Casa do Gaiato vista da horta. O cone ao fundo é o telhado da lindissima capela.


Aquilo a que, soberbos, os países ricos classificam de civilização, e que o dicionário eufemisticamente teima em traduzir por perfeição do estado social, não é mais do que um modus vivendi que, através da força do dinheiro e/ou órgãos de informação e difusão, se vai espalhando pelo mundo.
Não respeita fronteiras nem tradições, invade a privacidade, promove guerras e revoluções e a seguir empresta dinheiro para resolver situações criadas pela venda de armas, derruba e elege governos, e despreza os valores tradicionais.
Roma civilizou com o gládio, a inquisição com a água benta, os portugueses com a cruz e a espada, o Hitler tentou com os Panzers e Stalin com genocídios, os americanos com os dólares e a fissão dos átomos, e por aí segue a civilização, sendo a última moda as ONGs e os Projectos de Cooperação.

De repente, bem lá no interior duma qualquer selva tropical, onde habitam pigmeus ou insulares aborígenes asiáticos, entra um veículo motorizado, um rádio, uma revista pornográfica, que de entrada faz essa gente simples rir alegre e santamente e a seguir começa a perverter, e logo se põe o problema sobre o que está certo ou errado.
De que vale o milenar culto dos antepassados, se nos países civilizados os velhos são um lixo, um estorvo, e só quando morrem é que as pessoas fingem chorar a sua perda? Nem sempre!
De que vale uma Carta Universal dos Direitos do Homem se, nesses países civilizados, a voz da justiça tanta vez é abafada pela força da política, do dinheiro, dos lobbys e venda desenfreada de armas, minas anti pessoal e drogas?


Vasco e Jeremias. Em 2001, a estes ainda os dentes mal lhes haviam chegado!



Todos sabemos que a tal civilização pode trazer bem estar e melhoria de vida. Na verdade a quem? Àqueles que atraídos pelo mito das cidades acabam numa mísera barraca, à espera que da mesa dos bafejados caia uma migalha que lhes passe às mãos? Aos que na ânsia de usufruir dos bens modernos viajam como animais pendurados em velhos e desmantelados caminhões, ou os que todas as manhãs, e tardes, amontoados dentro de ónibus (autocarros, machimbombos, chapas, etc) com o imenso calor dos trópicos, correm para um sub emprego que na maioria dos casos nem lhes paga o básico para sua subsistência?
As ilusões vão-se perdendo, o Papai Noel deixa de ser um mito poético para ser unicamente uma festa da ganância comercial, assim como o Dia das Mães e o Dia das Crianças, e os civilizados passam a viver exclusivamente voltados para a força do dinheiro.
Abandonam-se os valores morais e as formas de religião tradicionais dando lugar àquelas que descobriram na crendice popular uma forma de rápido e violento enriquecimento, e a matéria acaba liquidando o espírito.
A um gaiato de 10 anos, moçambicano, cara alegre, cabeça rapada, orelhas em destaque, que ao rir mostrava a falta dos dois dentes incisivos de cima, por estar na idade da muda, perguntava para brincar com ele:
- O que você fez aos dentes? Comeu? Perdeu?
- Caíram!
- E onde estão agora?
- Na telha. E apontava para cima da casa.
- !?
Um religioso que ali estava, rindo também, explicou:
É tradição. Quando caem os dentes à criança, como foi Deus que lhos deu, ela atira-os para o ar, para Deus, para que Ele lhe devolva outros novos!
Quanta poesia, quanto respeito, quanta certeza no ciclo natural!
Felizmente ainda não estava totalmente civilizado, e por isso permanecia em comunhão e respeito para com o que os civilizados chamam de cosmos, mesmo sem saberem o que significa.


Numa das deambulações para captar em foto algumas imagens do povo, passei junto a uma casa onde estava uma mulher sentada à sombra a peneirar farinha. Ao lado um filhote de uns 2 anos. Disse-lhes adeus, sorriram e descontraídos corresponderam, com muitos outros adeus! Segui em frente. O filhote levantou-se e veio até à esquina da casa sempre a olhar para mim. Parei, para ver por onde seguir, olhei para trás e lá estava ele, ali a uns escassos metros. Disse-lhe adeus de novo. Sorriu e saiu a correr para mim! Quando chegou ao meu lado agarrou logo na minha mão. A mãe levantou-se veio atrás e quando o viu ao meu lado chamou-o: Zé! O tal de Zé disse logo “Não” e não largava a minha mão, com uma cara muito bem disposta! Devia querer ir passear comigo! A mãe tirou para fora um recheado peitão a ver se ele se interessava pela comida. “Não”.
Sempre com uma cara divertida, mas com a certeza de saber que naquele momento não era esse o programa que o atraía. A mãe aproximou-se (peitão já recolhido dentro da blusa, como é óbvio), ele largou a minha mão e fugiu. Lá foi ela atrás, apanhou-o, deu-lhe a mão, e quando os dois voltavam da grande “fuga”, uns cinco ou seis metros, fotografei-os. Vai aqui a foto deles.



Boa “praça”, o Zé!!

Do livro "Loisas da Arca do Velho", de Francisco G. de Amorim, 2001 - Livro inédito!
18-jan.2010

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Faz tempo que não recordo Moçambique. Hoje vai um episódio triste, vergonhoso, mas, é história, e a história não é para esquecer.
Os próximos textos sobre este país lindo, serão mais agradáveis! Prometo


NOITE  DE  HORROR

Lourenço Marques. 1974

A revolução já tinha acontecido em Portugal. A primeira medida tomada, depois de trancafiados na cadeia os responsáveis da PIDE, incluindo os burocratas que ali trabalhavam, foi anunciar a independência das colônias.
Quando? Como? Isso ninguém sabia, mas como os exemplos anteriores de grande parte das independências em África fizeram correr muito sangue, a preocupação geral era grande.
Os africanos há anos, quase há séculos era o que almejavam, ver-se livres do jugo colonial que nunca aceitaram. Hoje são subjugados poder económico. Mas ninguém gosta de jugo. Não só os africanos como todos aqueles que ali viviam e não podiam trabalhar livremente porque as dificuldades criadas pela metrópole a todos pesavam. A uns mais vergonhosamente, mas a todos, economicamente.
Finalmente chegava a independência. Para isso tinham lutado, e era um direito seu inalienável e histórico. Os brancos que tinham ali vivido toda a sua vida, alguns vindos de três, quatro e mais gerações, achavam-se no mesmo direito à independência, à continuação do seu trabalho, das suas vidas, a não perder o que tinham. À paz.
Mas como ia ser essa independência?
Geraram-se à última hora pseudo movimentos políticos de feição moderada, que pretendiam opor-se a uma independência unicamente negra, o que era total ilusão, que pressupunha a continuação de muitos dos brancos e mestiços tanto na política como em lugares públicos de responsabilidade, sobretudo técnicos, outra ilusão, mas sobretudo o que se gerou foi muita confusão e muito pânico em todos os lados.
Substituíram-se os governos coloniais por governos de transição com elementos da Frelimo, até hoje no poder, cabendo a responsabilidade pela segurança dessa transmissão de poderes a um Alto Comissário português, nomeado pelo chamado conselho da revolução. Com letra minúscula!
Os africanos que compunham esse governo por parte da Frelimo, nada racistas, consideravam os brancos, todos, sem excepção, inimigos dos pretos. Era difícil, quase impossível o diálogo com esta mentalidade!
Alguns dos platónicos que quiseram ainda iludir-se que um governo misto poderia acontecer, preservando os bens humanos e materiais adquiridos, acabaram provocando uma reação perigosa, e em setembro desse ano apoderaram-se do Radio Clube de Moçambique, e numa emissão desastrosa incitavam a população, sobretudo branca, a se defender com armas contra a imposição, pelo governo português, de um governo negro, que entretanto já ia dando provas de arrogância e hostilidade a peles claras.
Como resultado, a estação de rádio foi ocupada por soldados portugueses, com alguma troca de tiros, e toda a população de um modo geral ficou ainda mais receosa que no meio de tamanha exaltação pudessem acontecer outros confrontos, armados, perigosos.
A tensão era grande, ia crescendo, e os europeus, mesmo nascidos em Moçambique acabaram por se convencer que tinham que sair de qualquer modo.
Entre as tropas que desde o inicio da guerra colonial, em 1961, foram mandadas para as colônias, podiam-se destacar os comandos. Homens super treinados e ensinados para lutar nas condições mais adversas, para matar nem que fosse mordendo no pescoço do inimigo como fazem as onças e leões. Sobreviver a qualquer custo, vencendo.
O inimigo que lhes foi incutido no espirito em doses maciças, durante o treinamento quase do tipo lavagem cerebral, não era a população africana, que deviam proteger, até porque, apesar de raros, havia homens de cor nessa tropa de elite. Inimigos eram os soldados contra quem se lutava, em Moçambique, sobretudo da Frelimo. Se nos abstivermos de que guerra é sempre um ato criminoso, seja porque motivo for, a partir do momento que ela começa e os homens não se entendem, os comandos são peça fundamental.
Assim que se anunciou o fim da guerra, esses comandos dispersos pelas zonas mais recônditas do país foram mandados regressar às cidades, aquartelados, sem missão outra que não fosse aguardar o seu embarque de regresso a Portugal. Os meios de transporte eram diminutos, e eram largas dezenas de milhares de homens só nas forças armadas a retirar de todas as colônias. Só em Angola mais de cinquenta mil! Fora os civis que também queriam ou tinham que ser retirados. De avião levaria anos, e navios já Portugal tinha poucos!
Alguns aguardavam, numa espécie de férias forçadas e incomodas, em Lourenço Marques, cidade tranquila apesar da tensão que todos carregavam dentro de si. Férias aliás merecidas, como para todos os que deram o seu melhor de si, em qualquer dos lados.
Do mesmo modo foram levadas para a capital algumas companhias de soldados da Frelimo, a quem o país estava a ser entregue.
Aquartelados, não no mesmo edifício, mas em áreas contíguas. Aqui começa um grande erro. Não foi muito fácil para os comandos aceitar aqueles vizinhos com quem uns dias antes estavam em luta de morte, mas não criaram problemas. Procuraram ignorar-se.
Logo a seguir à revolução a estupidez subiu à cabeça de muitos. Era conveniente ser de esquerda, quanto mais à esquerda melhor, já que o comando da revolução estava dominado por lacaios de Moscovo. E uma das maneiras de exibir esse esquerdismo era menosprezar tudo quanto simbolizasse a direita, na qual, resta saber porquê, se incluíam os comandos, de quem o MFA - Movimento das Forças Armadas - em Portugal, que era senhor e dono da situação, temia alguma atitude contra-revolucionária. Por isso ia-se adiando quanto possivel o seu regresso à metrópole.
Dias depois, como os dois aquartelamentos não tinham talheres suficientes para que todos comessem, tiraram os garfos e facas dos comandos para os entregar aos soldados da Frelimo! A maioria destes nem hábito tinha de comer assim! E aqueles, em condições normais, não comiam de outro jeito! Aí a tensão estoirou.
Não que os soldados da Frelimo tivessem alguma culpa nisso. A burrice foi do oficial português responsável, aliás, irresponsável, que numa atitude subserviente e completamente estúpida dera essas ordens.
Esta elite militar tinha, para esse oficial, virado uma espécie de lixo, e talvez por isso mesmo na sua opinião devessem passar a comer com as mãos, para saberem quem mandava agora!


Bem em destaque a Praça 7 de Março. À esquerda ficava o BCCI
 
A seguir ao almoço, saem do aquartelamento quatro jeeps carregados de comandos armados, bravos, furiosos, em manifestação de protesto contra a estupidez de tal ordem que parecia ter sido dada para os desafiar. Nada contra a Frelimo. Enquanto circulavam pelas ruas da cidade foram dando rajadas de metralhadora para o ar! Atitude impensada, infantil.
Um dos tiros, por incrível que pareça, em vez de ser dado para cima foi para o lado, atravessou toda uma galeria comercial, comprida, que ia de uma rua a outra, àquela hora com bastante gente, indo atingir uma senhora que passava no outro lado. Morreu na hora. Se a população andava assustada isto deixou-a aterrada.
Os pretos abandonaram o trabalho e correram a procurar refúgio em suas casas, a maioria nos bairros periféricos, gritando:
- Os brancos querem matar os pretos. Os brancos querem matar os pretos! Fujam. Fujam.
Gerou-se o pânico total. Nas ruas de acesso aos bairros suburbanos fizeram-se barricadas, não deixando branco nenhum cruzá-las, mesmo os que tivessem que por ali passar para chegar a suas casas. A cidade ficou fechada. Branco que chegou perto dessas barricadas, onde os ânimos estavam exaltados pelo terror e pela tradicional violência que é característica das massas populares enfurecidas, foi impiedosamente morto. Muitos. Muita gente.
Uma das funções do Alto Comissário era exatamente a manutenção da ordem, não a segurança ou defesa da população, mas a ordem na transferência para a Frelimo da governança do país. Para isso era o comandante chefe das forças armadas portuguesas e simultâneamente das forças unificadas, portuguesa e Frelimo.
Mas a sorte das colónias estava traçada. A missão portuguesa junto aos Governos de Transição era assegurar que esta se processasse sem perturbações, fundamentalmente da parte dos brancos¸ uma vez que tinha sido decidido entregar os novos territórios diretamente, e sem mais delongas, em negociata rápida e suja, aos partidos comunistas.
Elemento do tal conselho da revolução portuguesa, oficial da marinha, logo graduado ou promovido a almirante - nem sei quantos degraus terá subido de um só pulo - foi nesse dia jantar a casa de um amigo de longa data.
Ao jantar, a dona da casa e o marido, administrador do banco onde eu trabalhava, o almirante e sua mulher, uma espécie de chefe de gabinete deste, e eu.
Desde a tarde, quando se assistiu ao tumulto provocado pelos comandos, sabia-se que algo de grave e muito anormal estava acontecendo. As informações chegavam imprecisas, confusas, porque essas barricadas foram improvisadas já perto do fim do dia.
O telefone não parava. De dentro para fora e de fora para dentro. Pedidos de informações da situação geral na cidade, confirmação ou desmentido de rumores. Logo era o gerente de uma das agências bancárias da periferia informando que havia grande tumulto em frente da agência. O que fazer? Nada. Apagasse as luzes, e não saísse sem que tudo voltasse ao normal.
Pouco depois chamam o almirante ao telefone. A informá-lo sobre as barricadas e o que lá estava acontecendo. Tumultos graves, muita confusão e várias mortes confirmadas.
Este, politicamente procura o colega da Frelimo. Não o encontra nos primeiros telefonemas, nem toma atitude. Não pode. O governo era já da Frelimo e a sua autonomia restringia-se quase exclusivamente ao controle dos que afinal eram portugueses. Fala com diversos militares, mas resolver o problema, nada.
Chegam mais notícias de outras agências do banco, com a mesma tónica da primeira, e muitissimo preocupantes. Em quatro agências estava pessoal retido, apavorado. O mesmo conselho. Aguentassem quietos, se possível escondidos, telefone à mão, e não saíssem sem ter a certeza que a situação normalizara.
De novo o almirante ao telefone,
- Não posso resolver sozinho. Tenho que consultar a Frelimo.
- Mas está morrendo gente. Mande sair o exército para tomar conta da situação.
Fala finalmente com o chefe do governo provisório, da Frelimo, que se opõe à saída do exército português. Os soldados de Portugal só estavam ali aguardando embarque para abandonarem o país e sem qualquer outra função. Além disso não era político para a população negra ver, naquela altura, sair o exército português! Mesmo em missão de paz.
- E os soldados da Frelimo?
Alem de outras escusas evasivas, poderiam causar o mesmo pânico nas populações brancas. A situação vai acalmar.
Não acalmou. Pelo contrário, até altas horas da madrugada a violência foi incrível. Sangue chama sangue.
O almirante continuou manietado e preocupado. Não mandou nada. Manteve fechado nos quartéis o exército que ainda ali estava para quê, se não podia sequer policiar? Para manter a segurança das populações? De quais?
Saldo final, muitos mortos.
O tumulto acabou por morrer sem intervenção de quaisquer forças da ordem. Que ordem?
Essa noite que tinha a intenção de ser de conversa amena, ao jantar, transformou-se num suplício. O alto comissário não tomava atitudes, sentia a sua idiota impotência, e nós não tínhamos a menor hipótese de ajudar alguém.
Perto da meia noite voltou-se a falar com as agências do banco, o pessoal estava todo bem, já não se ouvia tanto tumulto, mas não era aconselhável sair de noite. Quem estivesse dentro do banco que aí passasse a noite. Era mais seguro.
Na manhã seguinte a preocupação estava estampada na cara de todos.
O pessoal das agências estava bem, mas havia que ir pessoalmente incutir-lhes alguma confiança. Lá foi o administrador visitá-las. As ruas onde tinham montado as barricadas apresentavam um espetáculo de desolação: carros ainda a arder, montes de ferros retorcidos, paus, pedras, tudo o que se pode usar para esse fim, cheiro a borracha queimada. Alguns corpos cobertos por panos ou papeis. Um horror.
Xipamanine, em cujo largo ficava uma das agências, sempre em grande animação com o seu mercado de peixe, frutas, hortaliças, panos, etc. naquela manhã estava quase deserto. As lojas de comércio dos indianos, dos monhés, continuavam com as portas fechadas. Apesar de ter acabado o tumulto, o medo entre todos aumentara.
A chegada do patrão, o administrador, às agências, nesse dia, foi um sucesso. A cara dos funcionários, entre os quais algumas mulheres, cansados, atemorizados, mas a trabalhar, quando viram o numero um do banco ir cumprimentá-los, mudou como a água para o vinho. Alguns choraram de emoção. O patrão também teve dificuldade em esconder a sua lágrima.
O que se tinha passado nessa noite foi uma amostra do que poderia vir a acontecer após a independência.
Se alguns portugueses tinham mantido ilusões de ficar em África, nessa noite perderam-nas.
África! Adeus.
 
Do livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco” de Francisco G. de Amorim, 1988

















































domingo, 10 de janeiro de 2010

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Luanda 75

Um berro na madrugada!


Depois da Europa com estágios e passeios terminados, em meados de 61, nas vésperas de regressar a Angola onde a guerra colonial estava a acender-se, entrei num ferro velho à saída de Sintra, que ficava num terreno onde hoje está construído um prédio com agência bancária e tudo, para ver uns carros bem antigos, aí dos anos 20, brinquedos que sempre exerceram em mim forte atração. Apeteceu-me comprar os dois velhinhos que ali jaziam, abandonados, um Chevrolet bege, capota de lona, aí de 1928 e um outro que nem sei já o que era. Sonhos destes, para quem não é rico, são difíceis de concretizar, e limitei-me a olhar, embevecido, para as relíquias.



Um dos que estavam aguardando desmanche! Chevrolet 1926. Uma pena


O outro seria talvez igual a este Willis Overland 1925. Beleza!

Ferro velho é um lugar onde me sinto bem! Sempre fuço por entre velharias e daquela vez tanto fucei que encontrei um monte, sim, um monte de camas de ferro, e achei que seria ótima idéia comprar umas quantas, para os quartos dos filhos. Não foi tarefa fácil encontrar cabeceiras que casassem com os pés, longarinas menos empenadas e mais fortes, decidindo que a solução seria comprar uma boa porção de cada. Acabei com umas oito cabeceiras e meia dúzia de pés.
Lá foi tudo, de navio, para Luanda, onde se fez a conveniente seleção e casamento, raspou-se a ferrugem, pintaram-se e vieram a servir muitos anos para os filhos, os tais quatro já nascidos nesse ano e mais os que vieram a nascer depois. Foi um bom “investimento”.
Entretanto parte dessas camas teve que ser substituída por beliches porque o espaço dentro de casa era escasso para tanta gente que de mansinho foi chegando.
Com as viagens, ou sem culpa destas, o número de camas foi-se reduzindo e hoje sobram só as duas que estiveram no quarto das filhas. As que estavam mais bem cuidadas! Alguns anos mais tarde, em Abril de 1975, ainda na Cabral Moncada, no número 128, a casa que comprámos e... lá está, decisão tomada de abandonar Angola, a Joana e Helena dormiam nessas camas.



Uma das duas camas que sobrevivem aoo fim de quase cincoenta anos de receber dorminhocos!

Uma bela noite, madrugada avançada, a Helena acordou com a luz do quarto acesa. No chão uma parafernália de coisas espalhadas, bolsas abertas, um reboliço. Pensou logo estas sonambolices da Joana, olha o que fazem! E, arrumada como é, tratou de repor tudo nos lugares. A seguir, eram umas quatro horas da manhã, aproveitou, já que estava acordada, para ir ao banheiro.
Sem que estivesse totalmente desperta, ao sair do quarto, alguém tenta lhe enfiar um lençol de banho pela cabeça! O susto foi medonho, coitada. Mas a Helena, que nunca entregou os pontos sem luta, defendeu-se por lapsos de segundos para se desenvencilhar daquilo com que o alguém teimava em lhe tapar a cabeça. Caiem ela e o outro no chão. Entretanto a Helena, assim que teve a cara e boca destapadas solta um berro de tal forma desesperado e forte que acordou não só todos os daquela casa, como grande parte da vizinhança que dormia no sossego de uma cidade que fora tranquila.

Estremunhado também, coração em sobressalto com tamanho berro, num salto saí do meu quarto, a porta do meu era a dois ou três metros do quarto dela e vejo a Helena:

- Pai! Pai! Um bandido!
Eu não via bandido nenhum.
- Onde filha?

- Vai ali, pai, a descer a escada!

Olho do cimo da escada e só consegui ver uma espécie de vulto virar no último degrau. Corro ao meu quarto pego uma caçadeira de três tiros, carrego num instante enquanto corro para baixo atrás do sujeito, dizendo aos filhos:

- Ninguém sai aí de cima.

A porta da copa para a cozinha estava fechada, mas havia uma outra porta que comunicava diretamente com a sala de jantar. Receoso que ele saísse por essa outra, voltasse atrás e agarrasse algum dos filhos como refém, procurei fechar com a chave a primeira para depois entrar pela segunda.
Nessa altura batem à porta da rua com violência. Abro e vejo três soldados da FNLA, os chamados Fenelas, cuja sede era na casa ao lado da nossa. Ouviram o tremendo grito e vieram correndo. Metralhadoras, pistolas e granadas de mão, na mão! Apavorado com a idéia que pudessem soltar uma granada dentro da casa, a primeira preocupação foi mandá-los guardar aquilo! Expliquei o que se passava e pedi que um deles se postasse em frente da tal outra porta da cozinha para evitar que o sujeito voltasse por aí.
Como a janela da cozinha para a rua tinha uma persiana, meio empenada, dificílima de abrir, conclui que o pilantra estaria encurralado. Quando por fim abro a porta é que vejo que o f.d.m. tinha mesmo entrado por essa tal janela dificílima de abrir. E voltou a sair por ali, porque a cozinha estava vazia e a janela aberta! O miserável tinha aberto a janela pelo lado de fora. Por dentro era difícil de abrir, mas para ladrão até por fora é tudo fácil.
A traseira da nossa casa dava para um parque, o Alvalade, com árvores, e sem iluminação. Qualquer um não precisava andar mais de meia dúzia de metros para ficar invisível. Pegámos em lanternas, acendemos as luzes todas das varandas, mas enxergar o assaltante é que nada. Os soldados deram uma rápida batida por detrás da casa mas também nada encontraram. O sujeito escapulira. Sumira, como por encanto, sem deixar rasto!
Entretanto os filhos rapazes, não apareciam! No meio de tanto tumulto e nervosismo ninguém ouvia bater, por dentro, na porta do quarto deles. Estavam fechados por fora. O bandido tinha começado a limpeza por aquele quarto. Levou um relógio do Luís e uma meia dúzia de escudos, e quando saiu trancou-lhes a porta por fora. Depois é que foi ao quarto das filhas, abriu a carteira da Joana e para facilidade de escolha espalhou tudo pelo chão, e se a Helena não tivesse acordado faria outro tanto no meu. Felizmente não entrou primeiro neste, porque se eu tivesse ficado fechado o caso poderia ter sido grave!
Na rua iluminavam-se janelas e mais janelas da vizinhança, cabeças aparecendo, indagando o que se passava. O forte berro alertara boa parte da rua.
A Helena muito excitada e nervosa, acabou por vir dormir no nosso quarto, bem como a Joana, claro, e mal nos tínhamos deitado, batem de novo à porta. Os soldados. Pegaram um sujeito! Estranho àquela hora da manhã, aliás ainda noite, e queriam que eu o identificasse. Estava ali detido, no meio do jardim da rampa, um pouco abaixo na nossa rua. Lá fui ver. Era um estúpido rapaz, branco, talvez vinte anos, com uma desculpa esfarrapada para explicar o que andava a fazer àquela hora da madrugada. Os soldados queriam linchá-lo, como é de supor, e insistiam para que eu confirmasse que era ele o assaltante. Como eu não o tinha visto voltei a casa para perguntar à Helena como ele estava vestido, e ela descreveu, sem sombra de dúvidas, a cor das calças e da camisa. O miserável, que o meu íntimo dizia ser ele mesmo, estava com outra roupa. E um pequeno embrulho na mão, que eu, burro, não me lembrei de mandar abrir! Devia já ser truque habitual. E sem nada mais que o pudesse condenar, sem ficar com idiota peso posterior na consciência, convenci os soldados a deixá-lo ir, o que fizeram extremamente contrariados.
Nem uma semana depois o bestalhóide fez outro assalto ali por perto e foi apanhado. Dessa vez lixou-se, claro.
Quem haveria de supor que umas velhas camas velhas teriam até história de bandido para contar?

09=01=10








terça-feira, 5 de janeiro de 2010

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 À procura de gente
de Benguela

Foi muito gratificante ter sido informado que o Magalhães, o Mário, mesmo velhotinho, está a viver em Évora. Aqui fica um abraço para ele e a esperança de que ainda o possa ver.
Também me lembraram do nome do outro parceiro de tênis que era funcionário da Fazenda: o Pompeu, que agora recordo melhor.
Vasculhando fotos antigas, que tenho várias gavetas cheias – o que não admira, depois de oito filhos e onze netos – encontrei umas quantas de Benguela de 1955 e, para minha alegria algumas têm escrito atrás os nomes do fotografados!
Começa pelo “meu” ajudante na Lusolanda, a que sempre tenho chamado António, e constato agora que se chamava Joaquim.


O Joaquim a quem chamei, até no meu livro, António!

O António que afinal é Joaquim, se um dia chegar a ler isto, que me perdoe. Tem anotado no verso da foto (24 x 35 mm, milímetros, visto ser só a cópia do filme!) que “lhe tremia a beiça”! Quando alguma coisa lhe saía errado ou não sabia o que fazer o bom do Joaquim ficava com a beiça a tremer! Vejam só que recordações a gente guarda.
A seguir vão duas fotos da Lusolanda. Uma onde se vê o nome da firma e a porta do armazém onde eu trabalhava, e outro da “sede” indicando, com uma seta, onde era o Departamento Agrícola!


Aqui era o Departamento Agrícola


A "sede" em Benguela
Mais algumas outras com bicicleteiros e motoqueiros lá da terra e por fim o almoço de despedida quando fui embora daquela saudosa terra.


Carlos da Silva Gouveia (Góia), Mário Magalhães, Marques André e Rui Amaral - 18/06/1955


Jaime Cradoso, António Brás e António Frias Jr.


Jorge Ribeiro da Silva, no ténis, com a sua motoquinha!
O almoço de despedida!

É natural que alguns ainda se “descubram” nestas fotos e/ou que saibam do paradeiro de algum deles.
É muito bom recordar tudo isto, e a todos abraço com saudade.

5-jan-10




domingo, 3 de janeiro de 2010

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Benguela e arredores

Benguela foi (ainda será?...) terra de poetas! Alguns deixaram poemas escritos, outros levaram uma vida misto de boemia e poesia. Mas boemia levada alegre não é um canto de amor à vida, um poema constante? Além do meu querido amigo Ernesto Lara, de quem vai um “cheirinho” de “O canto do Martrindinde”, e já veremos a que propósito isto vem, lembro dois benguelenses que só por si faziam a vida em Benguela valer a pena! Sugiro que antes de continuar a ler este texto leia primeiro a “Mukanda para a Cidade de Benguela”, carta linda, como tudo o que o Ernesto Lara escrevia, e que vem em http://www.angola-saiago.net/cidmae10.html  

Fala ele, mesmo que rapidamente, dum poeta desconhecido: o fotógrafo Luis de Camões! Não se podia estar com ele e ficar de má disposição. Era um bálsamo! Mesmo que fosse um bálsamo de maluquice, valia a pena. Conheci-o muito bem, e no tempo que trabalhei com material fotográfico, era impossível cortar-lhe o crédito apesar de, por boemia, levar alguns meses para pagar as contas!

Tinha no seu estúdio uma espécie de mezzanino, para onde subia por uma escada de madeira, e ali ficava estendido, recuperando o que a farra na noite não lho tinha permito, ou aproveitando a sesta! Quando chegava algum cliente à loja era preciso chamar várias vezes para ver aparecer uma ensonada cabeça lá no alto! Dizia ele que ali era o seu refúgio secreto, para onde muita vez subiam simpáticas garotas que ajudavam a embalar o seu “descanso” sem correr o perigo de serem vistas porque se mantinham deitadas lá no fundo, enquanto os clientes estavam na loja!
Depois, no famoso e saudoso bar do Guimarães, onde se juntava a alegria da terra, com “St. Pauli” e mais tarde com umas “Cucas”, contavam-se histórias, descontraía-se e, depois do cacimbo, as acácias iam começando a florir para enfeitar o Natal tropical daquela terra morena!
Um dos freqüentadores dessa tertúlia lá por 1954, era um piloto aviador que tenho a maior pena de ter esquecido o seu nome, e na minha memória aparece só uma turva figura, um daqueles morenos loucos de vida e de amigos.
Para pilotar, todos tinham que saber um pouco de inglês, por causa do trafega aéreo. Um dia viu anunciado numa revista americana um produto para desfrisar os cabelos crespos, e logo pensou que isso seria um belo negócio a fazer por todo o lado por onde andava.
Pediu a um colega, americano, que quando voltasse um dia dos EUA lhe trouxesse algumas embalagens desse produto, que ele já considerava a descoberta do século.
Passados uns meses chegou a promissora e miraculosa maravilha! Uma rápida olhada no rótulo onde se via uma garota com os cabelos todos lisinhos, e vá de fazer o primeiro ensaio, antes de “entrar no mercado”. Em quem ensaiar? Uma prima, bela cabeleira africana, logo se prestou para ser a primeira beldade a exibir tal progresso. E começa o trabalho: entorna um pouco de produto nas mãos e vá de esfregar a cabeça da prima! Não tardou que esta começasse a sentir uns ardores exagerados na nuca, mas o “cientista” não desistia: “Prima! Sofrer para ser bela!” E insistia. Não tardou que o cabelo, com a base queimada, começasse a cair! Correm para uma torneira para aplacar a dor, e em socorro da vítima acorre a família e os irmãos, que ao verem o sucedido partem para cima do “desfrisador”.
O nosso piloto/cabeleireiro teve que fugir da cidade e só regressar alguns meses depois quando a prima e família, acalmados, decidiram perdoar-lhe!
Veio depois a constatar-se que o tal produto deveria ter sido diluído em não sei quantas partes de água... e aplicado durante vários dias.
Mas esta história contada pelo autor, um indivíduo cheio de boa disposição, está até hoje gravada na minha memória e sempre me riu, mesmo sozinho, quando me vem à memória!
Havia lá na terra um outro piloto e rádio Amador, Belém, casado, tranqüilo, simpático, dono de um carro lindão. Um Citroen igual ao que vai aqui a imagem, só que cor verde e estofos bege. Um luxo! Não me lembro já se ele precisava de dinheiro ou queria comprar algo mais moderno, a verdade, é que insistiu comigo diversas vezes para eu ficar com o carro! Eu que tinha um boa situação na Lusolanda e andava com a mulher, grávida, sentada no quadro da bicicleta, e ainda por cima ficava de olhos vidrados a olhar aquele carro... seria o comprador certo, não fosse um fator simples: não tinha dinheiro! Lembro-me que ele queria 20 contos e que eu lhe pagasse como entendesse. Não havia entendimento possível sem os equivalentes “Angolares”! Até hoje sonho com essa lindeza de carro! Sempre sonhando...


Olhem que belezoca ! O "meu ainda era mais bonito: verde com estofos bege!


Precisava de vinte destas notas para ter o bólido!


O verso da nota.

Vamos agora aos insetos cantadores. Em Benguela era o Martrindinde, que para quem não conhece, é uma espécie de grilo, que inspirou o nosso grande boêmio/poeta Ernesto Lara


O canto do Martrindinde



O canto do Martrindinde
é um canto da cidade
vem pela noite dentro
cheio de ambiguidade




O canto do Matrindinde
é um cantar nacional
veio do mato à cidade
e tornou-se universal.


O belo martrindinde

Catengue, a cerca de 70 ou 80 kms de Benguela, no caminho para o interior, para o Huambo, por exemplo, era um local de passagem de carros e do combóio. Este metia água e lenha, os carros, alguns, combustível, e os passageiros aproveitavam para comer no “palace”, quase única casa, pensão, restaurante e comércio do lugar. A única atração daquela terra, além da eventual fome dos passantes, ou cansaço para passar a noite, era um búfalo que o dono do “hotel” tinha preso num curral de madeira. Bicho grande, o “Bonifácio”, pacífico, adorava que se lhe fizessem festas, comia o capim que lhe era servido com regularidade e... ali estava. O problema é que aquela região era (ou ainda é?) terra de búfalos, e quando chegava a época da reprodução o “Bonifácio” apurava as ventas e chegava-lhe o cheiro doce do cio das fêmeas! Apesar do curral ser feito de fortes troncos de madeira, “Bonifácio” dava um ligeiro empurrão na cerca e saía atrás das garotas! Não adiantava proculá-lo. Ficava uns dias desaparecido e, após certamente cumprido o seu dever de procriador, voltava tranquilamente para a pensão que o alimentava e mantinha forte, sem ter que brigar por um lugar na manada!


O "Sincerus caffer" - "Bonifácio"




Nesse “hotel”, uma noite em que ali passei, fizemos uma paragem para jantar. Noite. Janelas e portas abertas para tornar o ambiente mais agradável, os martrindindes estavam longe e as cigarras tinham já cessado o seu canto. A minha mesa a uns 8 ou 10 metros da porta para a rua, eu sentado de frente para a porta, comendo sem pressa o habitual bife com batatas fritas, acompanhado dum copo de vinho tinto, de momento ainda cheio pela metade. De repente sinto uma pancada na cabeça que me despertou em menos de um segundo, porque imediatamente após, a cigarra, que fora ela que num vôo suicida se chocara com a minha testa, caíra dentro do copo de vinho e vibrou tanto as asas que o vinho espirrou todo de dentro do copo! Tudo isto demorou uns segundos, mas foi o suficiente para que o meu companheiro de viagem, e eu, ficássemos com a cara, braços e camisa toda encharcada em vinho tinto. Até o bife e as batatas tiveram que ser substituídos!



A cigarra do género "bebedolas!


A cigarra após seu desesperado “canto do cisne”, jazia, morta de bêbeda, no fundo do copo vazio!

Mas nada disto impedia que tivéssemos perdido a juventude sem praticar desporto. Havia a praia, mas que já lá vamos, e a Associação Comercial com seu campo de Tênis.

Nesta foto vê-se o belo edifício da Associação Comercial e quase no canto inferior direito o campo de ténis que no ano seguinte desapareceu!

Toda a semana, às vezes mais do que uma vez lá ia jogar uma ou outra partida. O principal parceiro era um jovem, como eu, funcionário da Fazenda, cujo nome... há muito me fugiu. Ótimo parceiro, simpático, bom jogador – creio que era ele que ganhava quase sempre; depois de sair de Benguela só encontrei uma vez, em Luanda, cabelo levemente a encanecer, já diretor de Fazenda, mas sempre atencioso e educado. Está na foto à minha direita. Se alguém o reconhecer, ou melhor, souber do seu paradeiro, eu ficaria imensamente feliz. O mesmo para o outro parceiro, o Magalhães, funcionário também da Lusolanda, na contabilidade, jogador do clube de futebol da terra, sempre bem disposto e motociclista!

Os três tenistas de Benguela: ?, eu e Magalhães

Naquele tempo para se falar ao telefone com a famigerada metrópole... só do Lobito. A Benguela ainda não havia chegado esse imenso avanço tecnológico! Minha mulher aguardava instruções para embarcar de Lisboa para a nossa aventura africana. Nas vésperas da sua chorosa largada – largava os pais e a irmã! – eu quis telefonar-lhe. O Magalhães emprestou-me a sua moto – talvez fosse uma Norton! – e lá fui eu aqueles trinta e poucos quilômetros de asfalto, falar ao telefone. A minha caneta tinteiro de estimação que levava no bolso externo da camisa... voou no meio da viagem!
Foi este rapaz, o Magalhães que me apresentou aos “atletas” praianos! Aos domingos lá ia com minha mulher até à praia. Não conhecíamos ninguém. Só eu, os colegas de trabalho. Como em toda a praia, juntava-se uma turma de jogadores, normalmente de vôlei; ótimo para aquecer os músculos e dar um bom mergulho a seguir.

Num dos dias de grande calema, quando as ondas, enormes, que chegavam à praia, tinham o condão de encher de areia a rua atrás do “Porta Aviões”, tomar banho de mar era uma temeridade. Mas... lá está o atrevimento da juventude... Com uma grande câmara de ar a fazer de bóia, era uma delícia passar a arrebentação e ficar lá fora subindo e descendo no ondular daquelas grandes ondas. Depois, para vir para terra, é só esperar aquele intervalo das sete ondas quando o mar dá uma folguinha! Assim fiz. Pareceu-me que tinha chegado o momento para regressar à praia e comecei a nadar e ao mesmo tempo empurrando a bóia. Só que... estava um pouco longe demais para ter tempo de aproveitar o tal intervalo das ondas, e quando estou já perto da praia, olho para trás e vejo um autêntico “tsunami” – nesse tempo não existia este termo! – a desfazer-se por cima da minha cabeça! Solto a bóia, encho os pulmões de ar, e andei a rolar dentro da onda apanhando em todo o corpo uma valente surra de cascas de mariscos, pedras, pequenas mas pareciam chibatas, não sabia qual era o lado do céu ou do fundo, até que esse castigo acabou, ponho a cabeça fora de água e vejo a segunda onda, igual em tamanho e fúria, a despencar! Repete-se a cena, mas desta vez o mar foi generoso: a onda agarrou em mim, como um trapo velho, desprezível, e me jogou para cima da areia, onde fiquei uns momentos estendido... a respirar!
A minha mulher assistiu àquele pré naufrágio, pensando que eu estava total senhor da situação! Não estava. Só a levar pancada e a aprender.

3-jan-10