Um
oficial em Moçambique - 1
Vão
seguir alguns textos com histórias de um oficial português, em Moçambique.
Final do século XIX.
Uma
demonstração clara do modo como se lidava com os nativos, soberanos e ciosos do
seu poder e do seu povo, o respeito que nos mereciam e o respeito que as nossas
atitudes igualmente granjeavam.
Obrigados
a guerrear os povos moçambicanos mercê da política inglesa que os estava a
financiar e mentalizar para que combatessem os portugueses e ocuparem todo o
Norte do país.
Guerras
são sempre tristes, mas fazem parte da história e não podem ser “varridas para
baixo do tapete”! Mais do as guerras travadas, falam alto o valor, a educação e
a inteligência de muitos desses militares que por lá fizeram nome. Não só para
Portugal, como para Moçambique.
1.-
A Pacificação de 30.000 km2
1893 - O ministro da Marinha e Ultramar, o Capitão de Mar e Guerra João
António de Brissac das Neves Ferreira, tinha recebido do governador geral de
Moçambique, o Capitão Tenente Rafael Jácome Lopes de Andrade, o seguinte
telegrama:
«Massacrada interior... pacífica caravana objectivos mineiros comerciais
composta engenheiro ..., ex-sargento... , 5 mercadores Bombaim, 3 Goa, 40
carregadores. Cônsul britânico apresentou grave reclamação. Massacre seguido
sublevação geral. Território até hoje nunca penetrado sequer. Governador
distrital calcula população sublevada 200.000 almas incluindo 15.000
combatentes, requisita urgência brigada mixta europeia mais 5.000 cipaes
zambezianos. Secundo requisição.»
Também o comandante-ministro não
conhecia o território de ... apesar dos seus serviços na província que chegara
a governar. Mas apurou que havia um oficial, um único, que por ordem de
Mousinho estudara a região e que esse oficial estava em Lisboa.
Na manhã seguinte, sobre a
secretaria ministerial cadernos de marcha, esboços topográficos, o rascunho
de um relatório - e o telegrama.
Sentados frente a frente: o ministro,
60 anos, e o oficial 28.
A conferencia estava a findar e o
ministro dizia: “Por motivos de ordem política
interna e financeira ao governo não convém organizar uma expedição de tamanho
vulto e dispêndio. Por outro lado, considerações de política internacional
impõem uma ação imediata para castigo dos rebeldes e submissão do território.
Precisava que algum oficial conhecedor da região se prestasse a ir tomar conta
dela com carta branca para tudo meter na ordem. Mas não dou um soldado nem uma
moeda de vintém: quem for terá de se desembaraçar aproveitando
os elementos locais.”
O jovem
oficial, como resposta, só perguntou: “Em que dia embarco?”
O dia do desembarque, mês e meio
depois (em Angoche ou Quelimane?), foi
tomado pelo acto de posse, pelos discursos da praxe e pelo banquete oficial.
Deve ter desembarcado em algo parecido com este “paquete”!
Logo para o dia seguinte o recém-chegado encomendou um batuque na
povoação indígena situada no arrabalde a oeste da vila. E foi presenciá-lo
acompanhado do interprete Usseni-Caximo, também chefe da povoação, seu antigo
conhecido e experimentado companheiro de imprudências cinco anos antes.
A um lado, os dois iam escolhendo: este, aquele, fulano, cicrano.
Apartaram 5o rapagões, fortes, alegres, os melhores bailarinos, apesar de só 40 serem precisos: 10 seriam
para eliminar depois.
No terceiro dia, logo ao romper do sol, começou
a instrução de recruta, intensiva e secreta, no fundo do enorme quintal murado
da residência. Muito embora paisanos o não entendam, só a escola de recruta faz
soldados, tanto de pretos como de brancos.
Assim preparados em poucas semanas os
elementos locais de que o ministro falara vagamente, seguiram durante dois
anos e meio inúmeros episódios. Muitas marchas de penetração (durante três
épocas secas somaram 5.000 quilômetros como rezam os Boletins Oficiais) em som
de paz e em guerra aberta, acabaram com a lenda cafreal, fundada em factos, de
que “o branco tinha navios para o mar,
mas não tinha homens para o mato”.
Na impossibilidade de todos citar
segue, para amostra, um dos últimos, talvez o mais curioso por mostrar, pela
banda de dentro, os costumes da guerra na Macuana.
Mussa-Momade tinha acabado a parte
narrativa e concluía repetindo textualmente o recado verbal do sexagenário
xeque de Sangage, seu tio-avô:
«Tu, Gavana (capitão-mor),
tens-me proibido de fazer guerra por minha conta, mesmo com a maior das
razões. Prometeste vir em meu socorro quando eu to pedisse, assim como eu
sempre tenho acudido aos teus chamamentos. Ouviste a história da horrível matança
de pessoas da minha família e de dezenas dos meus homens praticada por esse
celerado Agy-Allaue, Que palavra sai agora do te coração?”
Sem um gesto, o branco respondeu:
“Dize ao teu tio
Mussa-Piri que se vá juntar comigo na confluência do Mutuguti com o Moriosi
daqui a 72 horas, levando toda a sua gente de guerra.”
Eram seis da tarde. Mussa-Momade e a sua pequena escolta largaram logo
em direção a Sangage pela grande langua de Malatane.
Ficando só com o interprete Usseni-Caximo, chefe de terras do Inguri, o Gavana
ajuntou:
«Vae já buscar-me seis
estafetas de confiança, um para ir a Nhamuatua, outro para Namecoio, o terceiro
para Mihéhé. E prepara a guarda-grande-do-quintal, mais trinta carregadores,
para marcharmos daqui a quatro horas, as dez da noite”.
Às sete abalaram os três estafetas. Cada um levava como credencial um
botão dourado, de ancora e coroa, e como instruções a mesma ordem de
concentração confiada Momade Mussa.
Ás nove formaram no quintal,
a um lado os 40 cipaes da guarda-de-corpo e a outro lado os 30 carregadores.
Seguiu-se a distribuição já costumeira: aos primeiros as Martinis e 60
cartuchos, aos segundos as latas com pólvora e os barriletes com
zagalotes.
Tanto a uns como a outros, 5 quilos de arroz por cabeça—a ração de ferro
desse tempo.
Às dez em ponto a pequena hoste, põe-se em marcha com mais um cozinheiro,
um moleque e o Gavana. Esse também a pé, que a ferida aberta por uma operação
recente lhe não permitia montar a cavalo. E marchou-se durante dez horas, toda
a noite e mais alguma cousa, caminhando 40 quilômetros. De dia dormia-se, por estar quente
demais para andar. Em três marchas iguais atingiu-se a confluência do Muiuguti
como Moriosi.
No campo de concentração, em plena floresta, as massassa (abrigo
temporário) já estavam armadas. Eram o xeque Mussa o Namecoio-Muno dos Kopjies
Erati que tinham chegado adiante com as suas êcôtos (colunas) de cerca
de 5oo homens cada.
Pelo meio-dia entrou o gigantesco M’cuépére-Muno de Mihéhé com um
soberbo contingente de mais de 1.000 homens. Ainda o sol se via quando chegou
o de Nhamuatua, rude montanhês armado até aos dentes capitaneando outro meio
milheiro de guerreiros.
A concentração findara e a força excedia 2.700 homens de guerra: das
tropas regulares - uma pessoa só.
Solenemente, os
quatro chefes indígenas dirigiram-se, juntos, para o Quartel-General (uma
arvore de boa copa) e pediram licença para murrapo-mácuê (literalmente:
lavar com remédio). Já experimentado naquelas praxes o comandante-em-chefe logo
concedeu. E começou a cerimónia que durou toda a noite, á luz do luar, e a
maior parte do dia seguinte.
Traduzindo, cada um dos quatro cirurgiões de brigada (Chamulla)
seguido pelo seu ajudante (mulupa-saco) começou passando revista sanitária
aos guerreiros da sua hoste, um por um, ao mesmo tempo fazendo-lhes com uma faquinha pequenas incisões na
epiderme sobre os dois bíceps, sobre o peitoral esquerdo e sobre o frontal,
que logo eram cauterizadas com um remédio tirado do muila (rabo da
guerra, cauda de antílope ou de zebra) transportado pelo mulupa-saco.
Coragem, força, inteligência, eram
os três estímulos que a cerimonia era suposta incutir.
Libertos das mãos dos chamulla
e mulupa-saca os homens
partiam em carreira aberta para o rio e procediam a rigorosas lavagens. Após o que cingiam
em volta das cabeças e dos braços o licata, digamos o distintivo da
unidade.
Com não menor seriedade,
Usseni-Caximo, o intérprete, armado em chamuilo da guarda-grande-do-quintal e auxiliado pelo moleque Alaue, que funcionava de mulupa-saco,
mas, por garoto, abusando da arnica
contida na ambulância, preparavam
os 40 cipaes do Gavana. Para estes porém, o distintivo, que já vinha vestido, era uma espécie de camisola sem mangas feita em filleli (tecido de algodão)
vermelho fornecido pelo armazém de bandeiras da Capitania do
Porto.
Na segunda (e última) noite passada no bivaque fez-se a cuma. Das 9 às 11
os cazembes acompanhados
pelos mulupa-á-tuié,
homens das campainhas, recitaram os deveres militares: idênticos aos nossos em substância, mas com um
acrescentamento repetido com a maior ênfase no mais cru palavreado - a
recomendação de guardar rigorosa castidade durante toda a campanha sob pena de
desgraças terríveis, fatais e inevitáveis.
Agy Alaue, meio-árabe, meio-preto,
julgava-se um espertalhão porque já tinha feito a peregrinação a Meca e vira
na Maganja construir aringas. Insubmisso e insolente, havia dois anos que
abusava da paciência do Gavana.
Tinha este querido evitar a guerra e chegara ao extremo de meses antes,
ir sozinho ao covil da fera exprobrar-lhe a conduta e dar-lhe o último aviso. Ao
mesmo tempo fizera discreto reconhecimento do território, da gente e da célebre
aringa—que não valia muito).
Seguindo sempre oculta pela floresta, a hoste negra avançou contra o
rebelde cuja povoação atingiu após duas curtas marchas de quatro léguas cada
uma. Curioso. Não adoptava a tática de marcha da falange grega ou a da legião
romana, nem a de nenhum outro povo que houvesse tido contato com negros. Como a
gente da Dácia e da Floresta Negra, avançava em três colunas paralelas que
passavam à ordem de batalha com centro, n’tundu e duas alas, mono-mulopuana
e môno-m’tiâna
A floresta adelgaçava. De súbito divisou-se a aringa a 150 metros. Ao
toque de palapáta (corneta
feita de chifre de antílope) a hoste coseu-se com o chão. O centro estacou e
estendeu-se; as duas alas, correndo de gatas, depressa cercaram o inimigo
cobrindo uns 300 graus da circunferência.
De novo os quatro
chefes indígenas se dirigiram ao comandante-em-chefe e tratando-o, dessa vez,
por Munéné-á-vita-á-Ré (dono da guerra do Rei), disseram-lhe: “Agy Allaue está ali: quando quiseres dá o
sinal.”
O branco avançou, sozinho, a passo, de chibata na mão, perante toda aquela gente deitada, imóvel e
calada ao alcance dos espingardões da aringa (80 metros), acelerou e correu
para o tapume, chibata alta. Só os defensores faziam fogo. Soaram então as
grandes palapátas dos assaltantes.
E com uma vozearia ensurdecedora todos aqueles 2700 homens se atiraram à
carga contra a fortificação do rebelde, que não resistiu ao embate e se
desmoronou com fragor.
O final não pode ser descrito por horripilante. Deve compreender-se: um
homem só não podia impor preceitos cristãos, quanto ao tratamento dos
vencidos, a uma horda de 2700 selvagens enfurecidos.
Celebrando a vitória, toda aquela noite estrugiu o batuque de guerra da
gente macua: N’áuâna carêma nauânéla êhâno—fui à guerra cortei
cabeça, cortei cabeça do meu inimigo.
Costumes dos elementos locais a que se referira o ministro. Mas
só com eles, sem soldados brancos e sem gastar um vintém, recompensando-os com
o saque, mulheres e gados, se sufocou a rebelião.
Glossário:
Aringa: defesa, tipo paliçada, feita de paus e pedras
Cazembes: os comandantes de uma ensaca
- 250 homens
Langua de Malatane: grande delta acima de Angoche
Tem continuação, a ação deste jovem oficial. A continuar.
Fontes:
“Escola de Mouzinho” – Eduardo Lupi, Lisboa, 1929
“A República Militar de Maganja da Costa”, José Capela, Maputo, 1988
“Foto” – Blog Gurupez
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