quarta-feira, 24 de maio de 2017


Um oficial em Moçambique - 1

Vão seguir alguns textos com histórias de um oficial português, em Moçambique. Final do século XIX.
Uma demonstração clara do modo como se lidava com os nativos, soberanos e ciosos do seu poder e do seu povo, o respeito que nos mereciam e o respeito que as nossas atitudes igualmente granjeavam.
Obrigados a guerrear os povos moçambicanos mercê da política inglesa que os estava a financiar e mentalizar para que combatessem os portugueses e ocuparem todo o Norte do país.
Guerras são sempre tristes, mas fazem parte da história e não podem ser “varridas para baixo do tapete”! Mais do as guerras travadas, falam alto o valor, a educação e a inteligência de muitos desses militares que por lá fizeram nome. Não só para Portugal, como para Moçambique.

1.- A Pacificação de 30.000 km2


1893 - O ministro da Marinha e Ultramar, o Capitão de Mar e Guerra João António de Brissac das Neves Ferreira, tinha recebido do governador geral de Moçambique, o Capitão Tenente Rafael Jácome Lopes de Andrade, o seguinte telegrama:
«Massacrada interior... pacífica caravana objectivos mineiros comerciais composta en­genheiro ..., ex-sargento... , 5 mercadores Bombaim, 3 Goa, 40 carregadores. Cônsul britânico apresentou grave reclamação. Mas­sacre seguido sublevação geral. Território até hoje nunca penetrado sequer. Governa­dor distrital calcula população sublevada 200.000 almas incluindo 15.000 combatentes, requisita urgência brigada mixta europeia mais 5.000 cipaes zambezianos. Secundo re­quisição.»
Também o comandante-ministro não conhecia o território de ... apesar dos seus serviços na província que chegara a governar. Mas apurou que havia um oficial, um único, que por ordem de Mousinho estudara a região e que esse oficial estava em Lisboa.
Na manhã seguinte, sobre a secretaria mi­nisterial cadernos de marcha, esboços topo­gráficos, o rascunho de um relatório - e o telegrama.
Sentados frente a frente: o ministro, 60 anos, e o oficial 28.
A conferencia estava a findar e o ministro dizia: “Por motivos de ordem política interna e financeira ao governo não convém organizar uma expedição de tamanho vulto e dispên­dio. Por outro lado, considerações de política internacional impõem uma ação imediata para castigo dos rebeldes e submissão do território. Precisava que algum oficial conhe­cedor da região se prestasse a ir tomar conta dela com carta branca para tudo meter na ordem. Mas não dou um soldado nem uma moeda de vintém: quem for terá de se de­sembaraçar aproveitando os elementos locais.”
O jovem oficial, como resposta, só perguntou: “Em que dia embarco?”
O dia do desembarque, mês e meio depois (em Angoche ou Quelimane?), foi tomado pelo acto de posse, pelos discur­sos da praxe e pelo banquete oficial.

Deve ter desembarcado em algo parecido com este “paquete”!

Logo para o dia seguinte o recém-chegado encomendou um batuque na povoação indígena situada no arrabalde a oeste da vila. E foi presenciá-lo acompanhado do inter­prete Usseni-Caximo, também chefe da po­voação, seu antigo conhecido e experimen­tado companheiro de imprudências cinco anos antes.
A um lado, os dois iam escolhendo: este, aquele, fulano, cicrano. Apartaram 5o rapa­gões, fortes, alegres, os melhores bailarinos, apesar de só 40 serem precisos: 10 seriam para eliminar depois.
No terceiro dia, logo ao romper do sol, começou a instrução de recruta, intensiva e secreta, no fundo do enorme quintal murado da residência. Muito embora paisanos o não entendam, só a escola de recruta faz solda­dos, tanto de pretos como de brancos.

Assim preparados em poucas semanas os elementos locais de que o ministro falara vaga­mente, seguiram durante dois anos e meio inúmeros episódios. Muitas marchas de pe­netração (durante três épocas secas somaram 5.000 quilômetros como rezam os Boletins Ofi­ciais) em som de paz e em guerra aberta, acabaram com a lenda cafreal, fundada em fa­ctos, de que “o branco tinha navios para o mar, mas não tinha homens para o mato”.
Na impossibilidade de todos citar segue, para amostra, um dos últimos, talvez o mais curioso por mostrar, pela banda de dentro, os costumes da guerra na Macuana.
Mussa-Momade tinha acabado a parte nar­rativa e concluía repetindo textualmente o recado verbal do sexagenário xeque de Sangage, seu tio-avô:
«Tu, Gavana (capitão-mor), tens-me proi­bido de fazer guerra por minha conta, mes­mo com a maior das razões. Prometeste vir em meu socorro quando eu to pedisse, assim como eu sempre tenho acudido aos teus cha­mamentos. Ouviste a história da horrível ma­tança de pessoas da minha família e de de­zenas dos meus homens praticada por esse celerado Agy-Allaue, Que palavra sai agora do te coração?”
Sem um gesto, o branco respondeu:
“Dize ao teu tio Mussa-Piri que se vá jun­tar comigo na confluência do Mutuguti com o Moriosi daqui a 72 horas, levando toda a sua gente de guerra.”
Eram seis da tarde. Mussa-Momade e a sua pequena escolta largaram logo em direção a Sangage pela grande langua de Malatane.
Ficando só com o interprete Usseni-Caximo, chefe de terras do Inguri, o Gavana ajuntou:
«Vae já buscar-me seis estafetas de confiança, um para ir a Nhamuatua, outro para Namecoio, o terceiro para Mihéhé. E prepara a guarda-grande-do-quintal, mais trin­ta carregadores, para marcharmos daqui a quatro horas, as dez da noite”.
Às sete abalaram os três estafetas. Cada um levava como credencial um botão dou­rado, de ancora e coroa, e como instruções a mesma ordem de concentração confiada Momade Mussa.
Ás nove formaram no quintal, a um lado os 40 cipaes da guarda-de-corpo e a outro lado os 30 carregadores. Seguiu-se a distri­buição já costumeira: aos primeiros as Martinis e 60 cartuchos, aos segundos as latas com pólvora e os barriletes com zagalotes. 
Tanto a uns como a outros, 5 quilos de arroz por cabeça—a ração de ferro desse tempo.
Às dez em ponto a pequena hoste, põe-se em marcha com mais um cozinheiro, um moleque e o Gavana. Esse também a pé, que a ferida aberta por uma operação recente lhe não permitia montar a cavalo. E marchou-se durante dez horas, toda a noite e mais alguma cousa, ca­minhando 40 quilômetros. De dia dormia-se, por estar quente demais para andar. Em três marchas iguais atingiu-se a confluência do Muiuguti como Moriosi.
No campo de concentração, em plena flo­resta, as massassa (abrigo temporário) já es­tavam armadas. Eram o xeque Mussa o Namecoio-Muno dos Kopjies Erati que ti­nham chegado adiante com as suas êcôtos (colunas) de cerca de 5oo homens cada.
Pelo meio-dia entrou o gigantesco M’cuépére-Muno de Mihéhé com um soberbo con­tingente de mais de 1.000 homens. Ainda o sol se via quando chegou o de Nhamuatua, rude montanhês armado até aos dentes ca­pitaneando outro meio milheiro de guerreiros.
A concentração findara e a força excedia 2.700 homens de guerra: das tropas regulares - uma pessoa só.
Solenemente, os quatro chefes indígenas dirigiram-se, juntos, para o Quartel-General (uma arvore de boa copa) e pediram licença para murrapo-mácuê (literalmente: lavar com remédio). Já experimentado naquelas praxes o comandante-em-chefe logo concedeu. E começou a cerimónia que durou toda a noite, á luz do luar, e a maior parte do dia seguinte.
Traduzindo, cada um dos quatro cirurgiões de brigada (Chamulla) seguido pelo seu ajudante (mulupa-saco) começou passando revista sa­nitária aos guerreiros da sua hoste, um por um, ao mesmo tempo fazendo-lhes com uma faquinha pequenas incisões na epiderme so­bre os dois bíceps, sobre o peitoral esquerdo e sobre o frontal, que logo eram cauterizadas com um remédio tirado do muila (rabo da guerra, cauda de antílope ou de zebra) trans­portado pelo mulupa-saco. Coragem, força, inteligência, eram os três estímulos que a cerimonia era suposta incutir.   
Libertos das mãos dos chamulla e mulupa-saca os homens partiam em carreira aberta para o rio e procediam a rigorosas lavagens. Após o que cingiam em volta das cabeças e dos braços o licata, digamos o distintivo da unidade.
Com não menor seriedade, Usseni-Caximo, o intérprete, armado em chamuilo da guarda-grande-do-quintal e auxiliado pelo moleque Alaue, que funcionava de mulupa-saco, mas, por garoto, abusando da arnica contida na ambulância, preparavam os 40 cipaes do Gavana. Para estes porém, o distintivo, que já vinha vestido, era uma espécie de camisola sem mangas feita em filleli (tecido de algodão) vermelho forneci­do pelo armazém de bandeiras da Capitania do Porto.
Na segunda (e última) noite passada no bivaque fez-se a cuma. Das 9 às 11 os cazembes acompanhados pelos mulupa-á-tuié, homens das campainhas, recitaram os deveres militares: idênticos aos nossos em substância, mas com um acrescentamento repetido com a maior ênfase no mais cru palavreado - a recomendação de guardar rigorosa cas­tidade durante toda a campanha sob pena de desgraças terríveis, fatais e inevitá­veis.
Agy Alaue, meio-árabe, meio-preto, julga­va-se um espertalhão porque já tinha feito a peregrinação a Meca e vira na Maganja cons­truir aringas. Insubmisso e insolente, havia dois anos que abusava da paciência do Gavana.
Tinha este querido evitar a guerra e che­gara ao extremo de meses antes, ir sozinho ao covil da fera exprobrar-lhe a conduta e dar-lhe o último aviso. Ao mesmo tempo fizera discreto reconhecimento do território, da gente e da célebre aringa—que não valia muito).
Seguindo sempre oculta pela floresta, a hoste negra avançou contra o rebelde cuja povoação atingiu após duas curtas marchas de quatro léguas cada uma. Curioso. Não adoptava a tática de marcha da falange gre­ga ou a da legião romana, nem a de nenhum outro povo que houvesse tido contato com negros. Como a gente da Dácia e da Floresta Negra, avançava em três colunas paralelas que passavam à ordem de batalha com centro, n’tundu e duas alas, mono-mulopuana e môno-m’tiâna
A floresta adelgaçava. De súbito divisou-se a aringa a 150 metros. Ao toque de palapáta (corneta feita de chifre de antílope) a hoste coseu-se com o chão. O centro estacou e estendeu-se; as duas alas, correndo de gatas, de­pressa cercaram o inimigo cobrindo uns 300 graus da circunferência.
De novo os quatro chefes indígenas se di­rigiram ao comandante-em-chefe e tratando-o, dessa vez, por Munéné-á-vita-á-Ré (dono da guerra do Rei), disseram-lhe: “Agy Allaue está ali: quando quiseres dá o sinal.”
O branco avançou, sozinho, a passo, de chibata na mão, perante toda aquela gente deitada, imóvel e calada ao alcance dos espingardões da aringa (80 metros), acelerou e correu para o tapume, chibata alta. Só os defensores faziam fogo. Soaram então as grandes palapátas dos assaltantes.  
E com uma vozearia ensurdecedora todos aqueles 2700 homens se atiraram à carga contra a fortificação do rebelde, que não re­sistiu ao embate e se desmoronou com fragor.


O final não pode ser descrito por horripilante. Deve compreender-se: um homem só não podia impor preceitos cristãos, quan­to ao tratamento dos vencidos, a uma horda de 2700 selvagens enfurecidos.
Celebrando a vitória, toda aquela noite estrugiu o batuque de guerra da gente macua: N’áuâna carêma nauânéla êhânofui à guerra cortei cabeça, cortei cabeça do meu ini­migo.
Costumes dos elementos locais a que se referira o ministro. Mas só com eles, sem soldados brancos e sem gastar um vintém, recompensando-os com o saque, mulheres e gados, se sufo­cou a rebelião.

Glossário:
Aringa: defesa, tipo paliçada, feita de paus e pedras
Cazembes: os comandantes de uma ensaca - 250 homens
Langua de Malatane: grande delta acima de Angoche

Tem continuação, a ação deste jovem oficial. A continuar.

Fontes:
“Escola de Mouzinho” – Eduardo Lupi, Lisboa, 1929
“A República Militar de Maganja da Costa”, José Capela, Maputo, 1988

“Foto” – Blog Gurupez

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