domingo, 7 de março de 2010

Já referi diversas vezes que em 1971 me ofereci como voluntário e estive seis meses em Moçambique, na Casa do Gaiato. Aqui vão algumas das impressões colhidas nessa ano que, bem espero em Deus, e nos homens, tenham levado um grande modificação para melhor.


O ensino


Entre outros encargos que me foram entregues quando cheguei à Casa do Gaiato, o mais difícil foi dar aulas de português aos alunos das 9ª e 10ª classes, na Escola Comunitária. Logo eu que sempre considerei o Português a disciplina mais difícil de ensinar! Basta consultar em Portugal as pautas de notas das escolas, para se constatar que sempre é esta disciplina a que piores notas tem. E, pior para mim, que ainda tenho estabelecido, desde os meus tempos de estudante, um conceito simples sobre pedagogia: se o aluno não aprende, a culpa é do professor! Ia pôr-me à prova na mais difícil das situações até porque não sou professor, muito menos de português.

A "Obra da Rua" - Casa do Gaiato, em Moçambique

Mas, como ao oferecer-me para colaborar com ta maravilhosa Obra, o pestanejei. Arregalei os olhos! Catei todos os livros que havia disponíveis na escola, li-os e iniciei as aulas por uma rápida apresentação, em que garanti não falar de guerra nem colonialismo, o que seria bater em teclas desagradáveis. E por um teste para avaliar o nível do conhecimento dos alunos. Uma desgraça! Nem na 4ª classe se fazem erros assim. Um vocabulário limitadíssimo, erros ortográficos elementares, total desconhecimento de princípios básicos de gramática, redações na quase totalidade ilegíveis ou incompreensíveis, enfim um panorama aterrador, mais ainda tratando-se de classes avançadas, a 10ª com exame oficial, a teóricos dois anos da faculdade, e somente cinco meses de aulas pela frente!

A bonita e simples capela

Para se ter uma idéia aqui ficam alguns exemplos recolhidos, e que no final do ano constituiu “uma recordação” entregue a todos os “autores”!
Excertos de redações, mantidos os erros:
- O céu é um espaço do universo, que sempre que sinto uma pequena variação de temperatura, chega-me a vontade de querer olhar para o céu. Às vezes sinto a variação de temperatura quando estou a dormir. Neste caso não sinto essa vontade que me tem aparecido quando não estou a dormir. ...tem estrelas mais brilhantes, outras polares e outras que parecem pequenas e agromeladas uma próxima das outras.
- O céu é um universo que incanta todos os seres humanos, vegetais e seres inanimados. O universo faz com a terra e as águas onde habita todos os seres vivos seja bem aprecida. Durante a noite as estrelas formam uma galáxia em forma de algumas figuras geométricas. São milhares de estrelas que existem no céu formando um percurso de ano luz.
- Quando vamos para a floresta nos antepenultimos dias as pessoas comecaram confusão comigo. - - Nos dias de regresso pidi alguem para mandar quên estava ao meu lado. ... Que é que você pretende anós.
- Palestra é um tipo de converça sobre um determinado tema;
- Prezada Talucha, é do meu licencioso e expontánea vontade, que desejo saber da tua opulenta saúde. Bom, para ser franco, no dia 3 entregaram-nos os boletins da Escola. O prol foi muito fraco.
- ... envergonhado que a familia esta-lhe esquecido;
- Freud foi em escritor de alguns livros moçambicanos. ou por outra é um nome adaptado na capa do livro!
Palavras da família do enunciado, como por ex. carro - carroça, carroceiro, etc.:
Abrir: abril, abri-latas, abrigar, abraçar, arbitro, fechar, tampar, abelinha, abel, abrigarafa, abretinho
Guia: guia dos professores, guiné, conduzir, dirigir, guidaster, guiagem, guiande, guiadouro, indicar, boletim, guida, guiaxa, guim, guinar, guiadinho, guiana, recepcionista;
Mar: mar vermelho, oceano, praia, mareco, marta, maria, banho maria, porção de água, etc.
Mel: melão, melancia, melagem, mesa, menos, medigno, melita, doce, açúcar, melagem, ...
Plural de cidadão: citadinos, e até citrinos!!!
Os numerais ordinais:
3 - trípula, triplu, treceiro
7 - sétuplo, sentilha
12 - dosi, duze, déssimo segundo, desimo segungo, duzia
50 - quingésimo, quinsézimo, sinquenta
63 - sicenta..., sexta gezimo, secenta
87 - oitavono e setímo, oitavo gezimo setimo
95 - nonogono e quitímo
154 - uma sentézimo e quinto gezimo quinto
E como estas, ou ainda pior, se possível, muito mais. Não podia desistir! O desafio tornou-se cansativo, mas aliciante, e tive ocasião de confirmar tudo aquilo que eu tinha como certo: o português é difícil de ensinar e se os alunos não aprendem a culpa é dos professores. Sem dúvida. E agora ali estava a experiência a mostrá-lo.
Tática usada: mandá-los ler muito, fazer muitas cópias, fazer muitos exercícios elementares como indicar o plural ou singular de algumas palavras, escrever frases em que entrem preposições, ou advérbios, selecionar adjetivos de textos e transformá-los em outros graus ou substitui-los por outras palavras, etc., etc. Aquilo que no meu tempo se fazia na Instrução Primária.
Aqueles jovens, entre os 15 e os 20 anos, mal habituados, a grande maioria com uma tremenda preguiça mental, aparentemente desinteressados, esperando talvez que a resposta lhes caísse do alto, como as ajudas que chegam a Moçambique para resolver todos os problemas do país. De entrada começaram a lamentar-se que lhes dava muito trabalho para casa! Alguns deles ou não faziam ou disfarçavam fazendo só uma pequena parte. Alteração de estratégia: a partir de hoje as notas vão ser dadas pelo aproveitamento do trabalho de casa. Melhorou. Exercícios nas aulas, exercícios para casa, comentários nas aulas, enfim, trabalhar. Foi difícil. Talvez tenham aprendido alguma coisa mais, recuperado um pouco, só um pouco, do tanto tempo já perdido, mas a partir de certa altura comecei a notar que os trabalhos de casa eram já feitos depois de pensados. Antes eram só para encher a folha de papel e deixar correr! Foi um progresso e tanto! Muitas vezes tive que lhes dizer que não adiantava tentarem enganar o professor: os enganados eram eles mesmos! Eu não estava ali para receber ordenado no fim do mês, muito menos à espera duma promoção. Eles não. Eles procuravam, os que queriam, uma promoção, que seria a passagem de ano.
Paralelamente tinha que lhes ir ensinando comportamento. Moral e cívico. Noções básicas de civismo e de respeito. Devagar e sempre, fui falando disto, e os últimos dias de aulas as redações foram sobre estes temas. Valeu a pena.
A turma da 10ª tinha dez rapazes e quatro moças, e da 9ª quinze mais seis. Os rapazes sempre mais metidos a vivaços, num país onde é normal um homem ter tantas mulheres quantas quiser! Uma das primeiras redações que os mandei fazer foi sobre o namoro. No dia seguinte trouxeram os trabalhos. Genericamente todos diziam que ainda eram muito novos para pensar nisso, que tinham muito que estudar, que isso era coisa de mais velhos, etc. Depois de os ler, comecei a aula:
- Vocês são uma cambada de mentirosos! Quem querem vocês convencer que ninguém tem namoro, nem quer, nem tem tempo? O trabalho que vos dei para fazer em casa não era para mentir. E se escreverem mentiras jamais vão escrever algo que preste. Só os bons escritores o conseguem fazer.
Muitos deles, e sobretudo elas, tinham ou o seu namorico, ou queriam tê-lo, e ainda por cima ninguém estudava nada e queriam com isso disfarçar!
- Vocês pensam que o professor é o quê? Que não foi jovem como vocês? Que não teve namoro? Que não fazia as suas malandrices?
Mandei-os fazer tudo de novo. Mentiram menos!
Alguns dos rapazes, mesmo os mais velhos, tinham alguns hábitos terríveis. Gente sem família, vindos do último degrau da sociedade, para eles, enfiar o dedão nariz acima, era coisa normal. De vez em quando lá se via um na carteira querendo furiosamente perfurar o cérebro via ventas!
Como falar nisso sem melindrar diretamente nenhum deles?
- Curioso como alguns de vocês procuram as respostas aos exercícios! Eu sempre que tenho dificuldade em ultrapassar uma questão, penso, olho para o alto, para os lados, respiro fundo, apoio a cabeça na mão, etc., mas nunca me tinha ocorrido usar o vosso método que é genial!
Silêncio.
- Ir buscar as respostas às questões, que certamente estão armazenadas no cérebro, via ventas, assim ó... e eu mesmo enfiava com aparente fúria o dedo no nariz, girando-o para um e outro lado e ainda procurando empurrá-lo com outro braço, acho o método sensacional, só que duvido que se consiga extrair alguma coisa por essa via!
Gargalhada geral. Todos olham para os habitués. Riram muito mas nunca mais algum deles repetiu a cena! Na aula.
Um outro assistia, não participava, assistia às aulas esparramadão na cadeira. Um dos convencidos lá do pedaço! Uma perna para cada lado, os pésões bem à frente, dificultando até a circulação nos corredores entre as carteiras. Na terceira aula tive que montar o teatro:
- A partir de hoje vou comportar-me como um moçambicano. Alterar a minha postura na vossa frente. Tenho-me comportado como me lembro de ter visto fazer aos meus professores, mas penso que terei que me adaptar às técnicas daqui.
Coloquei a minha cadeira bem na frente de todos, sentei-me recostei-me para trás e estiquei uma perna para cada lado. Não foi necessário dizer mais. O visado encolheu as pernas, endireitou-se na carteira, sob o riso quase convulsivo dos colegas, e nunca mais deixou de estar com postura correta.
Muitas outras cenas semelhantes se passaram.

 
A Aldeia da Casa vista da lagoa, onde, todos os dias,
centenas de patos bravos vão passar a noite.
A escola ocupa os três edifícios em primeiro plano,
e a capela destaca-se no alto.
Rimos em muita ocasião, trabalhámos, e por vezes tive também que representar o drama:

- Vocês não querem fazer os trabalhos de casa? Não se interessam por estudar mais, continuam a fazer um monte de burrice e eu que nada ganho com isto, o que estou aqui a fazer? Se vocês não querem, quem vai querer? Eu? Não. Então não vou continuar a dar aulas.
Sentava-me na cadeira, relógio na frente, e deixava correr uns bons minutos em total silêncio. Ouvia-se o voo de um mosquito se ali estivesse. As caras de todos eles mostravam preocupação e perturbação, e quaisquer minutos em silêncio total é uma eternidade. Mas é muito bom para que pensem um pouco com alguma profundidade. Ao fim desse tempo mandava anotar o trabalho de casa, que podiam começar a fazer mesmo dentro da aula porque ainda faltariam uns dez minutos para a saída. No dia seguinte o trabalho vinha bem feito.
No último dia entrei nas salas com um sentimento estranho: ainda não me tinha separado daqueles jovens e um aperto interior me dizia que já estava a sentir saudades! Espero muito que o meu trabalho lhes tenha sido útil, e que alguns ensinamentos, sobretudo os de conduta cívica, não deixem de ajudar a nortear as suas vidas.
* * *

O ensino, de uma forma geral, é muito fraco. Faltam professores capacitados, e também, porque não?, humildade para cada um reconhecer o limite das suas capacidades. O bom mestre tem que saber reconhecer, e confessá-lo, onde terminam os seus conhecimentos, para dar ao aluno a possibilidade de procurar outro degrau acima.
Não adianta querer ensinar a correr, e à sombra de cajueiros, toda a população do país, se no fim assistimos a uma tremenda degradação do nível cultural.
Há um abismo imenso entre o ensino pré e pós independência. Dizem-no os que estudaram no antigamente e hoje têm filhos nas escolas, mesmo nas melhores e mais caras, e até os missionários que desde há um século lecionam em todos os cantos do país.
Até nos seminários, alunos já no curso superior, filosofia, escrevem de tal modo que os professores muitas vezes não conseguem entender. Se fossem só os erros ortográficos, talvez se compreendesse o sentido. Mas a redação é ininteligível!
Será falta de consciência? Como se pode admitir que o reitor da Universidade Eduardo Mondlane, a principal universidade, estadual, tivesse aprovado a admissão de alunos com uma média de 2 e 2,5 valores em 20, só porque algumas províncias, de outro modo, não conseguiriam universitários? O reitor é um político, e se assim for é um inconsequente, ou é o responsável máximo pelo nível intelectual e cultural do país? Neste caso, irresponsável, também. O governo teve que interferir e anular, com toda a lógica e justiça, a decisão.
Aliás isto não é para rir nem admirar, porque no Brasil até analfabeto já foi admitido em universidade! Analfabeto total. Um jornal, para demonstrar a falibilidade do sistema de aprovação para as universidades levou vários analfabetos à prova do vestibular. Só tinham que assinalar o número que correspondia à resposta certa. Tipo loteria! A redação de português, porque analfabeto, não fez. Mas como um deles acertou a maioria das respostas, ficou em 9o lugar, entre mais de um milhar de candidatos, para o curso de Direito, e... foi aprovado! Lindeza, né?
Em visita de estudo passaram pela Casa do Gaiato umas dezenas de professores que lecionam português nas escolas técnicas de todo o país. Estavam num seminário para discutir e procurar soluções para melhorar o ensino. Foram ali ver se algo se fazia de diferente do que nas suas escolas, onde o nível de conhecimento dos alunos era abaixo de lamentável. Acompanhava-os um “mestre”, padre português, peito inflado, certamente de conhecimentos. Por um acaso cruzo-me com eles durante a visita e sou apresentado: um amigo, que está aqui a ajudar-nos e a dar aulas de português à 9ª e 10ª classes. Muito prazer, etc., e a pergunta genérica: e então? Eu não queria falar para não os chocar, mas uma vez que me perguntaram tive que dizer a verdade:
- Uma desgraça!
Intervém o paternalista mestre português:
- Coitados, é a segunda língua deles.
Tocou na ferida! Já não consegui manter a boca fechada:
- Coitados? Aqui não há coitados! Aqui há gente. O que não há é professores capazes. Lamento muito dizê-lo na vossa frente, e eu agora até estou no mesmo lado, mas essa é a verdade que eu sinto e vejo.
Fez-se um frio e um ar de espanto na cara daquelas dezenas de moçambicanos. Voltei ao ataque:
- Porque é que os “coitados” do antigamente, que também tinham que aprender esta segunda língua, chegavam ao fim dos estudos médios e ingressavam nas universidades, em Portugal, com um nível de conhecimentos muitas vezes superior aos da própria metrópole madrasta? Não eram os mesmos “coitados” de hoje? Eu não sou professor de carreira, mas quando estudei fiquei com a certeza de que se os alunos não aprendem a culpa é dos professores, e hoje que estou a dar aulas, confirmo plenamente este pensamento. A culpa não será de nenhum de vós individualmente, mas é de todos como unidade. O governo não vos proporciona meios, bem sei. Mas por causa disso vão ficar de braços cruzados e lamentar-se?
- É. Tem razão. Começava a cativar o auditório.
- Vocês conhecem o livro oficial de português da 10ª classe, não é verdade? De que país é?
- ?!?!?!?!
- Como se chama este país?
- ?!?!?!?!
- Chama-se Frelimo? Renamo, não é. Ou chama-se Moçambique? O livro é ou não somente um meio de propaganda exclusiva da Frelimo? É ou não uma constante naqueles textos o falar mal dos ”inimigos” do partido - os mabandido, a Renamo - e da grande desgraça que foi o colonialismo? Que ganham os jovens em que se lhes fale somente no que é negativo? O que ganham eles com o constante acirrar dos ânimos, quando o colonialismo acabou há 26 anos e a Paz se mantém há quase 10? Onde está o interesse na reconstrução e união do país? E mais, onde estão os exercícios de acompanhamentos dos textos? Onde está a metodologia do ensino da disciplina?
O mestre não piou mais. Os moçambicanos, que se iam chegando e me rodeando, assentiam e só não aplaudiam porque não era caso para tanto. Por fim disse-lhes:
- Meus amigos: a vossa tarefa não é fácil. Mas não desanimem. Alguns terão turmas com sessenta e mais alunos. Não há como ajudar sessenta de cada vez. Tem que ser deficiente o ensino.
- Há turmas até de oitenta!
- Como trabalhar toda essa gente? Vocês têm que exigir muito do governo, obrigá-lo a tirar dos livros os textos negativos e a editar os livros complementares. E se não tiverem gente habilitada para isso, Portugal ou o Brasil podem certamente dar uma boa contribuição, e hão-de fazê-lo com a melhor boa vontade e entusiasmo. Depois exijam que os alunos façam muito, muito trabalho em casa. Que leiam livros, jornais, o que for. Os livros de história, de ciências, matemática. Todos são escritos em português. Mas não lhes dêem folga. O país tem tudo por fazer, e nada fará sem muito esforço e sacrifício. Não esqueçam que vocês são os responsáveis pelo Moçambique de amanhã.
Belo discurso! Assim tenha a semente caído em boa terra. À despedida vieram cumprimentar-me:
- Boa tarde, senhor padre, e obrigado pelo que nos disse.
- De nada. Mas olhe que eu não sou padre!
- Muito obrigado na mesma, senhor doutor.
- Também não sou doutor.
- Então o que é?
- Sou o Francisco.

Escrito em 2001/2

terça-feira, 2 de março de 2010

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Orquídeas e
"Focinho de Porco"


Talvez em 1963, no tempo em que trabalhava para a Cuca, fui em serviço a S. Tomé, onde só tinha passado umas escassas horas durante as escalas que ali faziam os navios entre Lisboa e Angola. Desta vez ia ensinar o pessoal de alguns bares a lidar com cerveja de barril, que pretendíamos enviar também para aquela terra.
“Curso de Tiradores de Cerveja”, bastante badalado na pequena cidade de São Tomé, que passava a ter possibilidade de beber cerveja “a copo, de barril ou à pressão”, as imperiais, os finos, os chopes. No fim de cada aula sempre havia cerveja de borla para os clientes. Era necessário treinar os tiradores! Profissionalmente correu muito bem, e foi um trabalho proveitoso.
Como era obrigado a ficar uma semana na ilha, por causa dos vôos para Luanda, o tempo sobrava e procurei visitar um pouco daquela exuberante terra, sobretudo as plantações de cacau que não conhecia. Os meus cicerones eram ótimos. Amigos e colegas de estudo, um deles até do meu curso, fizeram questão em mostrar-me os mais ínfimos e especiais detalhes. Andámos muito, e vimos muito.
O verde ali é uma coisa! Exatamente sob o equador, calor e umidade certos, só não cresce o que não se deixa crescer. As ilhas de São Tomé e o Príncipe, podem considerar-se uma estufa com cerca de novecentos quilometros quadrados! Tudo aquilo é uma estufa... enquanto não se desmata!

Antúrios que se jogavam fora!
O que mais me impressionou nas plantações de cacau foi ver como se limpava o terreno. Tudo quanto crescia por debaixo das árvores era capinado: desde capins e plantas infestantes ou indesejadas de variadas espécies, a antúrios, lírios, begônias, orquídeas e outras plantas com flores e frutos dum exotismo maravilhoso, as imensas orquídeas cresciam agarradas aos troncos das árvores de sombreamento. Uma beleza. Passámos por caminhos abertos no meio dos cacaueirais ladeados com baunilheiras, planta também da família das orquidáceas, cujo perfume nos fazia pensar estarmos entre uma perfumaria e uma fábrica de bolos.

Begónias (dobradas)

Antes de sair de São Tomé fiz questão de pedir ao governador que me recebesse. Não foi difícil. O tal “Curso de Tiradores de Cerveja” fora comentado, e numa cidade com uma meia dúzia de milhares de habitantes, até um espirro se fica sabendo mesmo antes de ser dado! Sexa concedeu-me uns rápidos minutos pensando que eu ia ao beija mão.
- Senhor Governador, vou daqui impressionado. Esta terra é maravilhosa. Pena que viva quase exclusivamente do cacau. Exporta também um pouco de café, mas no fundo vive do cacau que enriquece meia dúzia de magnates lá em Portugal, e destrói sistematicamente uma riqueza natural que lhe podia dar muito dinheiro.
Sexa deve ter pensado que estava na presença de algum lunático. No mínimo um chato metido a esperto. Continuei.
- Eu vi capinar antúrios e lírios debaixo dos cacaueiros, que ficam no chão a apodrecer, quando na Europa se paga muito dinheiro por estas flores. São Tomé, e certamente o Príncipe, onde tenho pena de não ter podido ir, são estufas naturais. Podem-se produzir belíssimas flores exóticas o ano inteiro e vendê-las por bom dinheiro nos mercados ricos da Europa e Estados Unidos. Viver só do cacau, cultura quase exclusiva, está escrito nos livros, que acaba sendo um desastre no dia em que a cotação internacional baixar, além de esgotar as terras.
Sexa escutou e... boa tarde, passe muito bem!

Orquídeas que podiam ser de mil variedades

Falei sobre isto com muita gente. Com os meus amigos, técnicos, que mais não eram do que empregados dos donos das roças, para quem o único interesse era o chorudo lucro que dali lhes chegava todos os anos aos bolsos, lá... longe. Um dos maiores proprietários, e das melhores terras, tal como acontecia em Angola, Moçambique e ali em São Tomé, era o Banco Nacional Ultramarino, que cresceu imensamente à custa da sua política monetária de agiota. Criado para desenvolver a agricultura das colónias, os juros dos seus empréstimos foram sempre de tal montante que os agricultores que caíram nessa esparrela acabaram por ter que entregar as terras ao banco. Este, financiava-se a custo zero de juros! Pudera, o dinheiro era dos depositantes. Mas enfim, tinha previsto não falar de problemas políticos ou sócio-económicos neste texto, porque os considerandos poderiam levar a muitas páginas mais. Enfim, preguei no deserto. Estava bom assim. Para quem?

De todo aquele exotismo acabei colhendo umas hastes lenhosas com uns cinco a seis milímetros de espessura, de onde saíam uns frutos, não comestíveis, que nunca havia visto nada similar. Imagine-se uma pêra, bem amarela, cor viva, lisa, agarrada à haste não pela ponta estreita mas exatamente pelo lado oposto, ao contrário do caju, sem pedúnculo, bem encostada ao caule. Isso, assim, ao contrário. Imaginem ainda que a pêra não estava pendurada, como as que todo a gente conhece, nem de cabeça para baixo. Ficavam praticamente em posição horizontal. Da parte mais larga saem uma espécie de orelhas gordas, duas a três, parte integrante do mesmo fruto, e por isso com a mesma cor. Em cada haste, com uns sessenta a setenta centímetros de comprimento, o tamanho com que as colhi, entre três a quatro daqueles frutos. Conhecem a cara daquela boneca da tv a Piggy? Lembram-se dos Três Porquinhos? Algo da mesma família! A verdade é que lá em São Tomé tudo quanto consegui saber sobre esta planta é que lhe chamavam Focinho de Porco.
Colhi uma braçada, talvez uma dúzia destas hastes, lindíssimas, que guardei no hotel com o maior cuidado para chegar com elas intactas, a Luanda. No regresso a casa carreguei-as sempre na mão.
No aeroporto, quase a embarcar, um indivíduo desconhecido aproximou-se:
- Bonito, isso. Onde o senhor arranjou?
- Apanhei no mato. Na roça... lá debaixo do cacau.
Olhou, remirou:
- Interessante. Como se chama?
- Não sei. O único nome que me souberam indicar foi “Focinho de Porco”.
O sujeito franziu a testa, deu meia volta e desandou. Quem estava por perto começou a rir disfarçadamente. Eu, achei estranho, mas não só não entendi o que se estava passando como nem me interessava entender. Fiquei quieto, aguardando que me chamassem para o vôo.
Logo a seguir um outro indivíduo que estava por ali pergunta-me:
- Sabe quem era aquele homem?
- Não faço idéia. Nunca o vi antes.
- É o comandante da polícia.
- Muito bem. E depois?
- Aqui chamam-lhe o “Focinho de Porco”!
As flores, aliás os frutos, chegaram a Luanda em ótimas condições e, durante anos, sim, duraram anos, sempre fizeram um grande sucesso nas jarras de flores lá de casa.
Na jarra, a única coisa que se trocava era a folhagem verde que compunha o arranjo, por cima da qual aqueles lindos focinhitos de porco pareciam participar, interessados, em tudo quanto se passava na sala de nossa casa.
Orgulhosos, talvez agradecidos, porque finalmente alguém lhes reconhecera a beleza e valor, que pelos vistos, depois disto ninguém mais o fez.
Que pena. E São Tomé que tanto precisa que se faça algo pelo seu povo, que vive uma miséria grande.
Os “focinhos de porco”, os antúrios, os lírios, as orquídeas e tantas outras maravilhas, que além de terem um preço compensador, exigem boa qualidade e quantidade de mão obra, que não falta naquela terra, talvez ajudassem a minimizar o problema.
Quem sabe?

N.- Isto foi escrito antes de se ter declarado a descoberta de petróleo naquela terra. São Tomé pode viver agora melhor, mas o que é habitual é que o rendimento do petróleo fique com meia dúzia, e promova, com muita rapidez, a corrupção. Que Deus permita isto não venha a acontecer ali! O rendimento da produção agrícola, neste caso de flores, pode ficar nas mãos de centenas ou milhares de trabalhadores.
Alguém, algum político está interessado nisso?

Do livro “Loisas da Arca do Velho”, por Francisco G. de Amorim (inédito)