domingo, 31 de outubro de 2021

 

Senilidade e Besouro dourado

 

 A história que vou contar, contou-me, aqui no Rio de Janeiro, uma senhora velhinha, há tantos anos já, que esqueci a sua cara, seu nome, e onde a conheci. Mas a estou a “vê-la” a rir-se com algumas das aventuras amorosas daqueles tempos dos seus antepassados.

Descendente de algum Baron ou visconde, que os houve muitos, sobretudo no tempo do famoso Império do Brasil, arruinada pela idade e pelas finanças, esgotadas nos faustos imperiais, sonhava com aqueles tempos de exibição e despesas inúteis que ouvira contar aos avós.

Ainda a revolução Francesa não tinha corrido com muitos nobres ou “quase nobres”, alguns encontravam-se, fora da França, negociando, em qualquer missão diplomática ou vivendo de recursos próprios, naquele tempo só das terras e do que lhes pagavam os trabalhadores rurais.

O Baron de Urban, duma velha cepa de servidores palacianos vindos do tempos dos Luises XV e XVI, juntara alguma fortuna, que guardava, muito bem escondida em casa, num lugar onde nem a mulher sabia, a Madame La Baronne de Urban. Tudo quanto ganhava, e em alguns negócios escusos junto do monarca, tudo trocava por moeda, só em ouro, e vivia, já quase com mais de 60 anos, exibindo-se nas festas palacianas, dizendo graças às senhoras e moças, velhas graças conhecidas, mas sempre com um sorriso e uma forma nova de contar as mesmas coisas que obrigava as damas a corresponderem com outro sorriso, o que ele levava para a conta de um próximo “affaire”. Vestia-se com luxo, punhos de renda sempre cheios de goma, pavoneava-se, mas lá no fundo ia ouvindo vozes do povo que “as coisas” não andavam bem por todo o país. Fome, impostos imensos, etc.. O que muito o preocupava.

Madame la Baronne, com a mesma idade do marido, sonhava, respirando com dificuldade, do tempo, quase meio século passado, quando chegou dividir o leito com Luis xv. Fora a sua glória, mesmo tendo depois chegado aos seus ouvidos que o Roi Soleil tinha feito saber que a noite fora como que perdida.

Assim mesmo, o Rei, generoso, presenteou-a com um pequeno besouro dourado, feito em ouro, que a Baronne sempre exibia, orgulhosa, fazendo charme sem contar quem lho tinha dado!

Continuava a usar roupa fantasiada, enchia o peito com algumas almofadas e a cara de cremes e pós, muito “rouge”, sentava-se nos salões com negligência forçada, o que lhe permitia mostrar um pouco da perna, perna velha e magra, com que sonhava atrair um homem qualquer. O marido já não lhe interessava, nem este por ela.

Ambos velhos, vestindo-se espalhafatosamente, moviam-se nas festas dizendo gracejos, ele a elas e ela a eles. Como é de se esperar sucesso nos amores jamais alcançavam e, apesar de se apresentarem sempre de forma ridícula, davam ao ambiente alguma descontração pelos risos que provocavam.

Um dia Monsieur le Baron muito cautelosamente, como mandava o cerimonial, pediu ao rei, Luis XVI, que o mandasse para outro país, se possível Portugal, porque ele e a Baronne, com o frio estavam a sofrer muito do reumático. Tinha ouvido falar no sol de Portugal, onde corriam soltas o mesmo tipo de festas palacianas, o que significava que podia continuar com as suas tentativas amorosas, mais ainda se tivesse uma função diplomática.

Luis XVI, alguns dias depois, saturado das figuras caricatas que o casal fazia, e levando em conta que era a terceira geração que os Barões de Urban serviam o palácio, consentiu e nomeou-o para um cargo fantasioso junto da Legação da França em Lisboa.

E aí vão os dois, levando uns quantos baús com as roupas indispensáveis para a vista que pretendiam fazer, além de um outro, muito pesado que levava o tesouro vital.

Viagem de navio, ambos o tempo todo enjoados, não tiveram como se exibir, nem estavam interessados em marinhagem.

Ao chegaram a Lisboa, tomam conhecimento da revolução popular em França, e fizeram questão de logo se apresentarem ao rei, nessa altura ainda o Príncipe Regente, mais tarde Dom João VI, que amavelmente os convidou na primeira oportunidade para um serão no Palácio das Necessidades.

Lá vão os barões exibindo as suas mais vistosas joias e roupagens, Mr. Le Baron na sua língua, muito cultuada pela nobreza em Portugal, ia dizendo os repetidos gracejos, que, como novidade divertiam os convidados. Madame la Baronne, cheia de pós, muito rouge e sempre mordendo os lábios para incrementar a corrente sanguínea e mais avermelharem, esticando-se na cadeira para endireitar as costas, sonhava que com todo esse esforço ainda conseguiria a atenção de algum jovem ou não tão jovem. E o besouro em lugar de destaque.

Uns anos passados, nem um deles conseguia a caça que tão freneticamente procuravam, a Família Real decide fugir da invasão das tropas francesas e ir para o Brasil.

Aos barões de Urban, pareceu surgir-lhes uma oportunidade única, seguir a realeza. E desembarcam no Rio de Janeiro onde logo se depararam com a primeira dificuldade: onde se alojarem, onde guardarem os baús com as roupas quentes e, não só, o famoso do tesouro. 

E mais: onde encontrar serviçais? As primeiras mulheres que se apresentaram, de pele escura, descendentes de escravos angolanos, horrorizou não só o Baron como madame la Baronne. Gente que em Paris jamais tinham visto. Para eles era uma visão terrífica.

Logo o Príncipe Regente estava a dar recepções e festas no palácio adaptado, não esquecendo os franceses, que sempre se apresentavam para oferecer os seus préstimos.

Maior foi o choque quando numa das primeiras recepções no palácio, entre a nobreza acabada de chegar se apresentavam também alguns cariocas, de posição elevada e muito sangue misturado.

O Baron foi perscrutando as novas variantes femininas, não esquecendo de lhes dirigir as mesmas graças envelhecidas em Paris e em Lisboa, mas que eram novidade no Rio de Janeiro.

Ao fim de pouco tempo já começava a fixar o seu olhar nessas novidades estranhas, enquanto a Baronne punha as saias bem até aos pés não fosse algum desses indivíduos mais escuros lhe descobrirem aquela pele engelhada e curtida que revestia uns ossos finos! Havia muito militar de fardas brilhantes, e apesar de os haver de todas as idades, a madame sorria para todos eles à espera de um sinal que lhe parecesse corresponder aos seus anseios amorosos.

O Baron encantou-se com uma jovem, filha de um dos mais poderosos negociantes do Rio de Janeiro, George Hilton, inglês. Catarina, lindona, desinibida, belo porte físico, pele levemente mais tisnada do que as esquálidas parisienses, que se divertia com os gracejos do velho francês, e com alguns mais encontros já se demorava em conversa fiada numa das varandas do palácio, e consentido até a deixá-lo segurar na sua mão. Catarina, achava graça a isso pensando que seria uma oportunidade para aprender melhor a falar a língua da gente fina, o francês, apesar de já ter o seu arranjinho com um militar, jovem como ela. O Baron resfolgava antevendo o dia do encontro que almejava há algumas décadas, julgando ter conquistado o coração de uma jovem e bela dama, solteira ainda, que parecia deliciar-se com tanta patetice que o decadente conquistador lhe contava. Ela ria, troçava, chegou a pedir-lhe para brincarem de cavalinho e cavaleiro, sentando-se ela nas costas do velho que levava tudo aquilo à certeza duma, em breve, relação... total.

Desesperada, sem ver que alguém retribuísse tantos olhares “envergonhados”, madame la Baronne, esticava o que podia – quase nada – tentava exibir o lindo broche, contava já entre algumas damas umas confidentes descaradas, desabafou a uma delas o seu desespero, pedindo se lhe emprestava a casa para um encontro secreto. A “parceira” logo anuiu e a Baronne tomou uma decisão. Andava já há algum tempo sonhando com um capitão bonitoso que também se pavoneava no palácio na sua farda elegantésima, e decidiu atacar: escreveu um pequeno bilhete que num momento de distração introduziu num dos bolsos da dita farda, dizendo: “Une jeune Femme est tombée amoureuse de vous”. O Capitão, Ajudante do Estado Maior da Guarda Real, Fernando da Costa e Almeida não conseguiu adivinhar de onde tal declaração saíra, e comentou com Catarina, a sua jovem amante a mesma a quem o Baron contava os seus gracejos.

Estes aguardaram o desenrolar desses novos apaixonados. Quando na vez seguinte a Baronne deslizou novo bilhete no bolso do capitão, indicando o endereço do local do encontro, com detalhes do horário e de como devia comparecer, este percebeu quem era a “apaixonada”, e decidiu entrar no jogo. Disfarçadamente passeou pelo salão e foi pedir à Baronne para dançar uma polka! A meio da dança já a Baronne, “jovem” de mais de setenta anos, resfolgava e teve que sentar-se para não desfalecer!

Com o endereço do secreto encontro nas mãos o capitão planejou a estratégia: Catarina deveria entregar também um bilhete ao Baron, convocando-o para um encontro secreto, no mesmo local e num horário um pouco posterior ao da Baronne. A porta da rua ficava fechada, mas sem chave. Devia entrar, de mansinho, e sem alardes.

O Baron exultou.

O encontro estava previsto para daí a dois dias. Ele e ela esfuziantes, sem contarem nada um ao outro. Chegada a ocasião ambos saíram de casa, roupas espampanantes, seguindo cada um por seu lado.

A Baronne entrou na casa emprestada, que estava vazia. Fechou as janelas quase todas, deixando a sala numa penumbra em que era difícil enxergar e não se tropeçar em algum móvel, que ela teve o cuidado de afastar do caminho para não haver acidentes, e foi refastelar-se, dengosa, cheirando mais a perfume do que perfumaria, lábios bem pisados e rouge que simulava queimadura de churrasco, as saias arregaçadas até perto do joelho, e o coração batendo forte!

Não tardou, ouviu a porta da rua abrir-se, paços entrarem na casa e depois atravessarem cautelosamente a sala, onde, com dificuldade, se adivinhava num canto uma figura feminina, amorosamente recostada, que o esperava.

Chegando perto e, ambos disfarçando as vozes para esconderem a rouquidão da idade, rompem em troca de motes de amor.

A Baronne, excitadíssima, levanta-se, agarra no “capitão” e quando vai para o beijar abrem-se as janelas, a sala enche-se de luz e gargalhadas. Escondidos atrás das cortinas estavam o capitão e a sua bela amante, que exultavam, parabenizando o idoso casal, por ao fim de tantos anos juntos ainda trocarem juras de amor em recantos isolados.

As enrugadas faces de ambos ruborizaram-se, agradeceram os elogios e de forma elegante, de braço dado saíram da casa.

Os relatos da época não falam mais do casal francês. Mas o caricato episódio logo se espalhou com rapidez.

Já não estavam em condições físicas para voltarem para a sua terra e crê-se que saíram do Rio e foram para um lugar mais tranquilo onde não houvesse chegado a história do ridículo por que haviam passado.

Com eles foi também o Scarabée dorée, onde Madame la Baronne derramava as suas lágrimas de amor ultrajado.

Néanmoins, Tout est bien qui finit bien.

 

Conto inspirado no livro

 25/10/21

 

domingo, 24 de outubro de 2021

 

Como se fabricam deuses - 2

 

Interessante: comecei o primeiro blog em 2005, que o provedor eliminou sem dar qualquer satisfação nem conhecimento (a mim e todos os outros!) e recomecei este (e o Zukumuna) em 2009.

Escrevi sobre tudo: política, história, ladroagem, romancecos, filosofia, geografia, religião, viagens, etc., e muitos outros temas, não me envergonhando de entrar por aqueles que costumam ser feroz pertença de catedráticos honoris causa ou sem honoris­ nenhum, metendo a cara, e aprendendo com muitos comentários que fui recebendo.

Vejo que as pessoas se cansaram do que escrevo – pouquíssimos comentários e visitas ao blog – o que deve significar que ou “estão de saco cheio” ou estou escrevendo muito mal.

Bem sei que a idade tem essas coisas, levando-me a preparar a aposentadoria dos escritos. Passar a escrever só para me entreter, arquivar os textos e... pronto.

Mas não vou agora deixar os “deuses” na sua etérea paz, porque não acabei de escrever o que penso.

Penso, existo, escrevo, e quem não quiser ler... não leia. Mas por favor digam que não querem mais para eu não encher os vossos computadores com os meus e-mails.

Só por curiosidade: ao fim de tantos anos a escrever, noto que as pessoas estão muito mais interessadas nas historinhas verdadeiras ou semi verdadeiras, histórias de amor e semelhantes bobagens, do que quando arvoro em intelectual, pensador ou filosofo – ápodos que em consciência, por favor dispenso. Isso me leva a concluir que as pessoas não estão dispostas a discutir problemas pesados, chatos, ou que possam colidir com as suas linhas de pensamento. Não gostam de discutir, coisa que a mim me dá um gozo especial.

Nessa mesma linha de atuação (atuação?) vemos uma Europa a desaparecer. A maioria, se for consciente, está desinteressada da política, de problemas, acabando por ter governos que se governam e desgovernam e esmagam o povo. Talvez prefiram sentar-se a ver uma novela... coisa incrivelmente medíocre.

Ora vamos à deuso-logia.

No texto anterior deixámos saudades do rei Wamba, que lutou para não ser rei! Era um homem forte e determinado. No seu tempo (672-680) cessaram as perseguições aos judeus.

Andemos um tanto mais para trás para o aparecimento das primeiras religiões que estabeleceram um Deus Único e se era único teria que ser Universal.

Penso que se pode começar com Zaratustra ou Zoroastro, - terá vivido entre 1.700 e 1.500 a.C. - que fundou o masdeísmo, uma religião e filosofia originada na antiga Pérsia, com uma fé multifacetada centrada numa cosmologia dualista do bem e mal.

Aos trinta anos, enquanto participava num ritual de purificação num rio, Zaratustra viu um ser de luz que se apresentou como sendo Vohu Manah ("Bom Pensamento") e que o conduziu até à presença de Aúra-Mazda (Deus) e de outros cinco seres luminosos, os Amesa Espentas, o que o levaria a elevar Aúra-Mazda ("Senhor Sábio") ao estatuto de divindade suprema, criadora do mundo e única digna de adoração.

Uma religião de paz e bom senso – o Bom Pensamento – que os Amesa Espentas: dividem em

Vohu Manah ("Bom Pensamento"): os animais;

Asha Vaista ("Verdade Perfeita"): o fogo;

Epenta Ameraiti - ("Devoção Benfeitora"): a terra;

Khashathra Vairya - ("Governo Desejável"): o céu e os metais;

Hauravatate ("Plenitude"): a água;

Ameretate ("Imortalidade"): as plantas.

Os zoroastrianos acreditam que Zoroastro é um profeta de Deus, mas não alvo de veneração. Eles acreditam que através dos seus ensinamentos os seres humanos podem aproximar-se de Deus e da ordem natural marcada pelo bem e justiça (asha).

Temos nestes princípios tudo aquilo que a humanidade hoje pode e devia respeitar. Não se fala de guerras, nem de proselitismo mas de simplicidade e humildade.

Tão natural foi esta religião que não representa seus deuses em esculturas mesmo tendo templos, e deixou traços nas principais religiões mundiais como o judaísmo, cristianismo e islamismo através das seguintes crenças:

Imortalidade da alma, Vinda de um Messias, Ressurreição dos mortos e Juízo final.

Com a conquista dos árabes no século VII, os muçulmanos consideraram os zoroastrianos como dimis (dhimmis), ou seja, praticantes do monoteísmo (à semelhança dos judeus e dos cristãos), e, como não aderiram ao islamismo, foram sujeitos a pesados tributos cujo objetivo era estimular a conversão ao Islão.

Sobrevivem hoje alguns milhares, deixados entregues à sua crença, mas sem expressão mundial.

A seguir surge no Egito o senhor Amenófis IV, que se intitulou Akenathon. Correu com a casta dos sacerdotes, uns sanguessugas desgramados, e instituiu o culto de um único Deus, Athon, o Sol, de quem se intitulou filho. Autoproclamou-se o filho direto de Deus e governou em seu nome!

Não durou muito porque os sacerdotes cortaram-lhe o “barato” e voltaram a mandar, sobretudo nas virgens que o povo tinha que lhes oferecer para... para quê mesmo?

Foi um átimo de monoteísmo que morreu à nascença.

Vem a seguir a Bíblia contar que Abraão (por volta de 1800 a. C.) um patriarca bíblico, recebeu de Iavé (Deus) a missão de chefiar os povos semitas e migrar para Canaã, sendo assim considerado o pai das religiões monoteístas atuais.

Mas que Deus falou com Abraão? O mesmo, sempiterno que criara Adão e Eva? Ou outro/outros tantas vezes mencionados na mesma bíblia?

Os seus descendentes, incluindo via Ismael, criaram diferentes deuses, cada um a seu jeito, sobretudo hebreus e muçulmanos, deuses de guerra, deuses eufemisticamente chamados de únicos, mas que eram, e ainda são, deuses privativos de diferentes povos, instigando-os a que combatam, matem, roubem os vizinhos.

Onde está a universalidade destes deuses? Não está. Não são deuses únicos por muito que a bíblia – a quem para melhor “argumentarem” chamam de Livro Sagrado – assim o afirme, mas em dezenas ou centenas de passagens se contradiz, porque incitava povos a guerrearem com os adoradores de outros deuses, sem sequer referir se esses poderiam ser, na opinião dos vencedores, deuses verdadeiros ou falsos!

Foram deuses criados, inventados, para juntar o povo sob uma regra que obrigava e castigava quem não a seguisse. Assiste-se ainda hoje, e parece que por tempo a vir, à ferocidade com que o “pacífico” Islão se refere a qualquer um que não siga Maomé!

Uma nova concepção de DEUS houve que foi diferente (já lá vamos) mas entretanto relembremos que o próprio islão ao invadir e conquistar a Pérsia matou e dizimou a quase totalidade dos mazdeístas, que seguiam uma religião de concórdia e paz.

Previsto no mazdeísmo e na bíblia, está a vinda de um Messias, esperado não como um deus, mas como um profeta que trouxesse entendimento entre os homens.

E veio. Veio um HOMEM que disse a coisa mais simples, mas que, ainda possivelmente por milénios para a frente, parece ser o impossível.

O Filho do Pai, do teoricamente mesmo Deus Único, não trouxe leis, nem castigos, não fomentou guerras, nem aversão a vizinhos e outros povos, não estabeleceu hierarquias nem luxos.

Ao Deus chamou simplesmente Pai, o Pai de todos, qualquer que fosse a sua origem ou nação.

Pregou só o impossível: Amai-vos uns aos outros. Todos seriam irmãos.

A solução de todos os problemas da humanidade e da natureza.

Respeitai, amai o vosso semelhante, ajudai os que mais necessitados, sede simples como as criancinhas, fazei aos outros o que gostarias que fizessem convosco.

Nem há quase 4.000 anos, com Zoroastro, nem há 2.000, nem hoje os homo sapiens, mesmo batendo com a mão no peito, estão preparados para isso.

Erguem, ou ergueram templos sumptuosos, com mão de obra miserável, criaram impostos para o povo enriquecer os episcupus (vigilantes), continuam a pregar verdades misturadas com contos de fada, e o Filho do Pai, chicoteado e morto na cruz, simplesmente disse “Pai perdoai-lhes. Não sabem o que fazem!”

Há muitos anos comprei um livrinho de bolso que falava sobre as religiões. Há mais de 70 anos, e lembro até hoje a frase com que o autor, um pastor protestante, depois de uma breve descrição sobre a maioria das religiões, cada uma com seu texto próprio, sem comparações com outras que já tinham existido e das que prevalecem, começa a falar sobre o cristianismo, e marca:  O cristianismo é o milagre da normalidade!

A única religião que não é um código de proibições, como sempre se ouviu nas igrejas. Que diz ao pecador que ouça o vazio que deixa o pecado, que nada mais é do algo que vai contra a natureza e o amor ao próximo.

Mas o que é hoje o AMOR? Sexo? Esmola para ofender o esmoler e se auto engrandecer? Ignorância dos necessitados? Ou, SIMPLESMENTE, o maior poderio bélico, para ameaçar os outros quaisquer que sejam, sobretudo desde que sejam mais fracos?

De que adiantam procissões, datas festivas em qualquer religião, que o povo aproveita para comer e beber melhor, sempre de costas viradas aos problemas?

De que adiantam santuários onde vão milhões por devoção e turismo, onde choram emocionados, mas onde é impossível que não sintam que estão a fazer parte de um teatro, talvez até uma farsa, porque escondem assim a necessidade de lutarem por um mundo mais, muito mais justo.

Para que servem conventos onde se enclausuram homens e mulheres para orar? O que fazem com aqueles que lá não entram, muitos nem entram em casa alguma porque não a têm?

Há, evidente que há, muitos, muitos, que se dedicam totalmente aos outros, e eu até conheci alguns. Mas quantos são e como influenciam o perdão universal? Miseravelmente poucos. Muitos, isto é, raros.

Terá que vir outro Messias e contar o mesmo, e ser novamente desprezado e ridicularizado?

Mais uma vez conto o mesmo: o homo sapiens acabou de nascer. Está como aquela criancinha a quem tiram um brinquedo e ela chora e bate no companheiro.

O crocodilo tem 60 ou 70 milhões de anos, como as tartarugas e muitos outros animais. Tiveram tempo para se adaptarem. O homo terá, com boa vontade, uns 150 mil, 0,25% da idade desses “velhos”.

Solução: esperar. Talvez uns milhares de anos, milhões. Os homens não têm pressa porque imaginam que o Sol só se apagará daqui a uns 10 bilhões!

Entretanto não consegue, não quer, reconhecer todos os outros como irmãos. Aproveitam e vão roubando, matando e esquecendo os OUTROS.

 

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

 

Rosa e Jacinto - Final

 

Deixámos os jovens casais felizes com as crianças que lhes nasceram e sabemos que cresciam em graça e princípios de sabedoria, coisa com que toda a criança nasce para alcançar o quer e deixar os pais fazendo papel de bobos.

Cresciam junto, como irmãos, o bom velho soba sentia-se avô das duas crianças, e Kieka apreciava o novo viver saída da senzala, mas não abandonando as suas raízes.

Passaram quase dois anos, Kieka sentiu-se adoecer, e como a medicina por aquelas bandas era ou nula ou abaixo de precária (os missionários ajudavam, mas pouco), recorreu ao médico/feiticeiro do seu sobado.

Foi piorando, não havia antibióticos e não aguentou. Fechou os olhos, sofrida, e deixou a filhinha entregue aos pais do Jacinto.

Eduardo, chorou também e, como era hábito naqueles tempos, pouco demorou como aspirante no Puri. Foi transferido para o Bailundo. Só, não tinha como levar a pequenina filha com ele. passados mais uns anos foi promovido a Chefe de Posto, e colocado em Xamutete, cada vez mais longe do Puri; e aqui perdemos o rasto dele. Visitava a filha sempre que podia, fazendo longas viagens até...

As crianças tiveram a melhor educação que se podia conseguir naquele tempo e naquela área. Instrução primária na missão, depois num colégio no Uige (ao tempo chamado Carmona!).

Cresciam saudáveis, fortes, com a vida na fazenda e, desde bem pequenitos se perspectivava que ambos seriam duas belas crianças.

Abílio tinha já uma razoável situação financeira, os estudos da Rosa eram compartilhados, generosamente, pelo avô N’Kongali e os também babados “avós” Joaquim e Conceição. Quando chegou o seu tempo decidiu-se que deviam pôr as crianças a estudar em Luanda, no Liceu Salvador Correia, seguindo com eles a mãe Beatriz.

Ali alugaram casa, a vida corria tranquila, ambos bons alunos, educados e disciplinados; a amizade entre eles sempre se fortalecia.

Jacinto teve que encarar várias lutas, algumas sangrentas, com jovens “metidos à besta” (como se diz no Brasil) quando estes idiotas se metiam com a sua “irmã, com evidentes traços africanos, que lhe realçava a sua beleza exótica.

Terminam o liceu em 1957, e lá vai a mãe Beatriz com os dois, “filha” e filho, para continuarem os seus estudos em Portugal.

Rosa queria ser médica, porque sabia que a mãe tinha morrido por falta de assistência, Jacinto pensou primeiro em agronomia, com vista ao futuro das terras de Angola, mas também sabia que o desenvolvimento iria exigir novas estradas, construções e fábricas, optou então por engenharia civil.

Joaquim, grande comerciante e produtor de café passava já parte do ano em Portugal, e construíra uma casa no arredores de Viseu. Tinha os negócios bem entregues ao Abílio e a mais dois angolanos, apresentados pelo amigo N’Kongali.

Entre Lisboa, Coimbra e Porto, os estudantes optaram por esta cidade. Estariam mais perto dos “avós” Joaquim e Conceição, para onde iam sempre que algumas ocasião o permitisse. O pai, visitavam-nos no verão, quando não eram os “irmãos” que iam a Angola, já universitários, onde, na missão e no Puri eram sempre recebidos com festa.

Chegou 1961. Em Fevereiro grande agitação em Luanda, provocada pela possibilidade de ali chegar o general Humberto Delgado com o navio Santa Maria sob sequestro, que propiciou o ataque do MPLA às prisões da PIDE, com um sangrento resultado e larga divulgação mundo afora, mostrando que as províncias de Portugal não viviam naquela paz anunciada pelo salazarismo.

Rosa e Jacinto temeram.

Em Março, com o imbecil apoio dos EUA, quando Kenedy acordou para a forma como a URSS se estava a apropriar de África, os congoleses, não só de Angola, mas sobretudo do Congo ex-Belga, invadem o norte de Angola, com milhares de homens drogados, matando pelo caminho todos os europeus e angolanos que com eles trabalhassem, destruindo fazendas e o comércio, chegando quase às portas de Luanda. Uma imensa onda de terror.

Joaquim preparava-se para regressar a Angola, quando este massacre foi conhecido. Ficou em Portugal aguardando a evolução da situação. Não tardou a saber que Abílio e todo o pessoal que trabalhava nas suas organizações foram vitimadas (degoladas) assim como os missionários de Sanza Pombo e até o amigo N’Kongali.

Ao mesmo tempo tomou ciência que perdera quase tudo que construíra durante a vida. Tinha 64 anos e um fulminante ataque de coração prostrou-o.

Deixou algumas reservas financeiras e propriedades em Portugal que Conceição continuou a administrar, contando agora os centavos. Sua maior preocupação era o estudo dos “netos”, a quem faltavam ainda dois a três anos para se formarem. Seus únicos verdadeiros membros da sua “família” e universais herdeiros.

Reduziram todas as despesas que puderam e conseguiram pelo comportamento e boas notas havidas até ali, que as duas faculdades lhes dessem bolsas de estudo integrais.

Tristes, prosseguiram com ainda mais interesse os seus cursos.

Mas... há sempre uns quantos “mas” na vida das pessoas; Rosa apesar da seu porte e beleza, exóticos, sofria mais agora pelo que se passava em Angola, Moçambique e em todas as colónias. Ouvia insultos e piadas porcas, a que só podia revidar quando Jacinto estava junto. Entretanto pelos mestres da faculdade era muito estimada face ao seu interesse e desempenho. É evidente que isto incomodava os mais burros.

Acabados os cursos, com a criação da nova Universidade aberta em Luanda, é para a sua terra que vão trabalhar.

Rosa, já doutora, completando a especialidade de clínica geral na faculdade, Jacinto numa empresa de engenharia, cujo salário lhes dava para viverem com tranquilidade.

Era hora de se deixarem de irmandades. Não podiam viver um sem o outro. Sempre se tendo respeitado, era evidente que o final da meninice e adolescência era o casamento. Chegara o momento que, lá bem no fundo de cada um, sabiam havia de chegar. Apesar de FGA (1827-1891) ter escrito “Se é raro o amor constante, a amizade inda é mais rara”, Rosa e Joaquim sabiam que pertenciam um ao outro. Aquele amor estava incrustado numa amizade total.

A missão de Sanza Pombo reabrira, e foi lá que quiseram dar o SIM, que estava previsto e dado desde o dia em que nasceram.

Puri tinha novo soba, irmão da Rosa, que do mesmo modo recebeu o casal com grandes manifestações de carinho e alegria.

Fixaram residência em Luanda, de onde ambos se deslocavam com frequência.

Angola, como Fênix, renascia das cinzas e crescia como nunca antes. Depois de muito trabalho conseguiram reaver a fazenda de café, os armazéns e lojas em Sanza Pombo, Puri e Negage.

Nenhum dos dois queria mais trabalhar no campo ou no comércio. Venderam tudo, e juntaram um capital razoável.

Rosa abriu uma pequena clínica no Puri, para onde se deslocava dois a três dias por semana e atendia o povo da região sem cobrar um cêntimo.

Jacinto visitava obras de estradas e outros projetos que iam crescendo por toda Angola.

Parecia que estava difícil que viessem filhos, coisa que a toda a hora as duas “avós” perguntavam de Portugal; “Quando chegam bisnetos?”

Foram chegando. Em 1966, primeiro uma menina que teve que se chamar Kieka! Depois um Abílio. E o terceiro, Joaquim.

Quando tudo parecia calmo e promissor o futuro de Angola, nova e profunda reviravolta nas suas vidas: a Revolução em Portugal que entregava de forma vergonhosa e covarde as suas colónias aos soviéticos.

Abandono dos quadros técnicos, estagnação e falência da economia, as saúde, da agricultura, das obras públicas. O que fazer? Voltar para Portugal?

Nunca. Eram angolanos, surgia-lhes a grande oportunidade da vida: darem o seu saber e trabalho pela terra onde nasceram!

Rosa foi chamada a lecionar na faculdade de medicina em Luanda e Jacinto nomeado para o Ministério das Obras Públicas, ministério esse que nada fazia, a não ser assistir, incapacitado de agir, à degradação das estruturas.

Os três filhos, ainda pequenitos foram mandados passar um tempo com as saudosas bisavós, até que a situação se normalizasse. Acabaram ficando em Portuga, a crescer, estudar e receberam aquela educação saudável e carinhosa da avó e bisavó.

Os anos não param. Apesar de se verem com razoável frequência, os filhos que entretanto se formaram também em Portugal, ao chegaram à idade de seguirem os seus próprios caminhos não quiseram voltar para Angola. País despedaçado, roubado, malbaratado, infeliz, totalmente corrompido.

Em Portugal a situação também era de insegurança, desgoverno e incerteza. Com os diplomas nas mãos, um bom curriculum escolar, os três unidos, os três mosqueteiros angolanos, estudaram e muito discutiram qual seria o melhor destino, tanto mais que a “bisavó” Conceição há muito fechara os olhos e a Beatriz muito velhinha estava em estado deplorável, de falência eminente.

Arranjaram um lar para esta e optaram por ir para o Canadá.

Demorou algum tempo para conseguirem o visto, mas lá estão os três, na mesma cidade, acompanhados pelos pais que entretanto se aposentaram.

Vidas difíceis, a quem o bom senso e consciente determinação acabaram por encontrar um tranquilo rumo para os ex jovens e seus idosos pais.

Parece que por lá andam ainda, Rosa perdendo o viço, Jacinto sem as cores brilhantes da juventude, agora avós babados a curtir as crianças, sorrindo ao ver os filhos com as vidas asseguradas e os netos sempre lindos – como são todos os netos.

 

14/10/21

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

 

Rosa e Jacinto

 

Não vamos tratar de floricultura, nem jardinagem. Mas de uma história passada não há muitos anos naquelas terras lindas, férteis e calorosas de Angola.

Comecemos por descrever as personagens como se de teatro se tratasse.

- Abílio, beirão de Penalva do Castelo, alfabetizado com a instrução primária, emigrado para Angola com 22 anos, em 1935. Deixou na terrinha a amada Beatriz.

- Beatriz, da mesma terra, rural, também alfabetizada, espera que o seu amor cresça e vai ter com ele em 1939.

- Joaquim Costa, beirão dos arredores de Viseu, em África desde 1920, comerciante, e fazendeiro de café.

- Maria da Conceição – mulher de Joaquim Costa.

- N’Kongali, soba de Puri, aldeia no distrito de Uige, Norte de Angola.

- Eduardo, jovem aspirante do Posto Administrativo de Puri.

- Kieka, filha do soba.

- Rosa, filha de Kieka.

- Jacinto, filho de Abílio e Beatriz.

 

Começa a história com o Joaquim Costa, ex soldado em França na I Guerra Mundial, condecorado por bravura em combate, recém chegado a Angola, um país imenso onde tudo está por fazer. Tal como fizeram os judeus quando se instalaram no Brasil, foi trabalhar com um patrício, em Luanda, que logo se apercebeu das qualidades do Joaquim. Homem sério, trabalhador, disposto a vencer na vida.

Nem um ano passado abre-lhe um crédito para ele levantar uma boa quantidade de mercadorias e pagar-lhe à medida que fosse vendendo, recomenda-lhe que procure os bravos camionistas que carregavam mercadorias para o interior, e de lá traziam o que encontrassem e, ouvindo o que lhe iam dizendo, devia optar por um lugar com possibilidades para abrir uma casa comercial.

Joaquim correu as poucas casas da capital, procurou os camionistas, que durante a guerra 14-18 até óleo de palma usaram para abastecer os seus carros, que lhe iam indicando onde havia falta de comerciantes, e acabou por se decidir por uma região, com rara ocupação de europeus mas que lhe pareceu com possibilidade de crescer, “regularmente” visitada pelos escassos transportadores.

Neste meio tempo, em 1921, chegam a Angola missionários portugueses para abrirem uma missão em Sanza Pombo, no Norte, região dos Bacongos.

Joaquim procurou esses padres e decidiu que seguiria com eles, onde abriria a sua loja. Estaria bem acompanhado e seria também muito útil para a missão.

Partiram juntos.

Joaquim, com a ajuda, fundamental, do povo dali, construiu uma pequena casa, com deposito e loja, e logo começou a vender, sobretudo trocar o que levara por produtos dos nativos, além de ir fornecendo também os missionários.

A vida, dura, parecia correr-lhe bem, jovem vinte e poucos anos, começou a visitar praticamente todos os dias a missão, não só por razões financeiras, mas para conversar, ouvir a Boa Nova, e, talvez o principal era deixar os olhos viajaram apaixonados por uma das noviças que vieram também de Portugal para auxiliar o serviço da missão, ainda sem votos, com quem as várias trocas de olhares iam levando os dois para pensamentos mais para a frente.

Um dia tomou coragem, falou com o superior da missão e confessou-lhe que estava apaixonado pela noviça Maria da Conceição, jovem como ele. Disse que as poucas trocas de olhares entre eles, levavam-no a pensar que ela também gostaria dele, e pensava em casar, se pudesse.

O padre superior ficou de falar com a noviça, ouvi-la e aconselhá-la no que lhe parecesse melhor para ela.

Encurtando razões, e após um rápido namoro (sempre sob o controle dos missionários!), nem quase dois meses haviam passado e aconteceu a festa do casamento!

A vida ia-lhes correndo financeiramente bem, mas nada de aparecer o que tanto esperavam: filhos.

Trabalhavam muito os dois e foram estendendo o seu comércio e investimentos.

Negociou com o soba de Puri, a uns 50 kms para sul, comprou uma boa área onde plantou de café e ordenou pastagens para gado.

Os anos passavam e sentia que precisava de um auxiliar. Escreveu para parentes de Portugal e um deles, jovem ainda, logo se entusiasmou com a visão do mundo novo.

Abílio chega a Angola em 1935, e não tardou que Joaquim lhe entregasse a fazenda para gerir.

Beirão também, rijo e trabalhador, não tardou a ganhar a simpatia do soba N’Kongali e poucos anos depois do recente aspirante do Posto Administrativo, recém criado, Eduardo, jovem também em início de carreira, seus companheiros de cavaqueira no final dos dias, quando possível, e em muitos fins de semana.

A casa comercial de Joaquim expandia-se com segurança, já abrira filial também no Puri, e o salário de Abílio melhorava. Tinha deixado o seu coração preso na terrinha, e quando viu que o podia oferecer à dona dos seus pensamentos, mandou-lhe dizer que embarcasse.

Em 1939 chega a Angola mais uma portuguesa, Beatriz, e novo casório acontece na missão!

O convívio com os povos nativos naqueles tempos tinha duas versões: indivíduos grosseiros e de má educação, que unicamente os queriam explorar, e aqueles que, de boa índole, os tratavam com toda a educação e até amizade, sendo generosamente retribuídos.

Foi o que aconteceu com todos estes que já vimos, sobretudo com o aspirante Eduardo, que desde que chegara, entre outras coisas não tirava os olhos da filha do soba, uma jovem bonita e elegante, que não tardou a perceber que o tal aspirante, com certeza, aspirava a conquistá-la. E estava a gostar!

Eduardo fazia muita visita ao soba, que desconfiava de tanta amabilidade, e esperto, ia-se apercebendo que entre a filha e o português administrativo, havia mais do que simples olhares provocadores.

Joaquim visitava assiduamente a fazenda, entretinha-se também com o velho amigo N’Kongali e até com o Eduardo. Sempre era bom ter contato amigável com o aspirante do posto que o recebia com alegria.

Nessa última visita Eduardo decide abrir o seu coração, o seu problema com Joaquim, que ali funcionava quase como um pai, apesar de não ser grande a diferença de idades.

- Senhor Joaquim, sabe como sempre tratei bem o povo daqui, especialmente o seu amigo e cliente, o soba N’Kongali, com quem passo muitas horas na conversa. Tenho aprendido muito com ele.

- É verdade. Eu também aprecio muito esse homem, bom caráter e trabalhador. Comigo ele tem quanto crédito quiser. Desde que abri a loja, primeiro em Sanza Pombo e depois aqui, nunca faltou à sua palavra.

- Sabe que ele tem uma filha, Kieka, que desde há tempos me obriga a não poder tirar os olhos dela.

- É bonita, sim senhor. Também me encanto com ela. Mas faz tempo que não a tenho visto.

- É que... (Eduardo engasga-se) acho que fui um pouco longe demais! Tanto sorri para ela que parece ter conquistado o seu coração, e acabámos por chegar ao que não era para acontecer!

- O que foi?

- Deu hoje à luz uma filha... minha!

- Oh!!! Por isso ela não aparecia. E como reagiu o pai?

- De entrada mostrou-se muito aborrecido comigo, mas eu fui-lhe dizendo que jamais ia desamparar a filha, e que o filho que tivesse ia ser adotado como meu filho. Aí ele parece que aceitou. Pelo menos sossegou.

- Isso é atitude de homem.

- Eu pensava até ir hoje visitá-lo não só para lhe contar que nos nasceu uma criança. Decidi que vou mesmo casar com ela! E venho convidá-lo, e à sua senhora, para serem os padrinhos de casamento.

- É homem valente! Acaba de subir muitos pontos na minha consideração. Aceitamos com muito gosto sermos vossos padrinhos, e nessa situação a festa do casamento vai ser por nossa conta.

Ambos emocionados chega Abílio.

- Bom dia. Gosto de os ver animados, mas com cara de caso. O que se passa?

- Mal sabes, Abílio, o que o Eduardo nos veio contar. Grandes novidades nesta terra. Acaba de ter uma filha e vai casar. E esta hein?

- Mas quem é a felizarda?

- Kieka, a filha do soba N’Kongali.

- Bom gosto, bom gosto, Eduardo! Parabéns. E quando é casório?

- Logo que a mãe esteja bem do parto, que aliás correu muito bem. E vamos aproveitar para batizar a menina, que é linda e até já escolhemos o nome, Rosa. Vou agora avisar o padre Próspero, aquele padre novo, que chegou há poucos dias. Ele é de Cabinda, mas muito simpático.

- Como é curioso! Eu também vinha aqui comunicar algo importante ao amigo Eduardo, e depois iria procurar o senhor Joaquim. Também trago uma novidade importante. A Beatriz, ontem também me presentou com um herdeiro! Olhem que coincidência.

- Parabéns, homem. E está tudo bem?

- Graças a Deus. O menino é forte, e já escolhemos um nome para ele, Jacinto, o nome do meu falecido pai.

- Que coincidência, nascerem no mesmo dia. Já vão ter com quem brincar.

Não tarda a chegar outro conviva.

- Dá licença seu Eduardo?

- Entre. Entre sempre soba N’Kongali. Sabe como gostamos de o receber. O que traz por aqui?

- Vejo que está bem acompanhado: o senhor Joaquim e o sô Abílio. Acho que estão a preparar alguma coisa!

- É verdade que estamos, sim, e o meu amigo?

- Parece que cheguei tarde para contar a novidade. Já deve saber que o nosso aspirante se meteu com a minha filha e ela acabou de ter uma filha.

- Sabemos já e ficámos todos contentes.

- É! Eu de entrada fiquei muito chateado, zanguei-me com a filha e fui até reclamar com o aspirante. Tivemos longa conversa e acabei sossegado porque ele diz que quer casar com ela.

- Não sabe você o melhor: quem vão ser os padrinhos do casamento sou eu e a minha mulher a D. Maria da Conceição. E a festa será por minha conta. O Eduardo tem-se mostrado um homem de palavra, tem futuro e vai cumprir, ser um bom marido e um bom pai. Mais ainda sabemos todos nós como a sua filha é uma mulher bonita e simpática.

- Só nos resta agora dar os parabéns ao avô! Disse Abílio. E o nosso soba não sabe ainda, mas a minha mulher também nos deu ontem um filhinho, um homem! A sua neta e o meu filho já têm com quem brincar.

- Isto tem que se comemorar. Vou buscar uma garrafa de vinho.

- Soba N’Kongali, já sabe como se vai chamar a sua neta?

- Ainda.

- Rosa! Os pais já combinaram. Linda flor, como lindas são a mãe e a menina. E o meu filho, Jacinto, outra flor bonita. Já pensou que eles vão crescer juntos e serem amigos?

- Então vamos ter grande festa, soba N’Kongali? O meu marido já me contou e eu estou pronta para colaborar em tudo.

- Muito obrigado, senhora.

- E parabéns duplos ao promissor administrativo, Eduardo. e ao nosso colaborador, Abílio. Felicidades. E como sabe, eu tenho algum jeito para a costura, prometo já que farei o vestido da noiva, modesto, mas bonito e mais, os dois vestidinhos para as crianças que vão ser batizadas.

Reinava alegria. Abriu-se uma garrafa de vinho do Porto, brindou-se e... secou a garrafa.

Um mês depois foi bonita a festa não só na Missão, com o casamento e batizados, como depois no Puri, onde o soba matou um boi para festejar com a população.

Kieka estava bonita na nova roupa, misto de africana e europeia.

As crianças progrediam de boa saúde e felizes. Mas a alegria não durou muito.

 

(A continuar)

06/10/21