quinta-feira, 30 de julho de 2009

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Atira agora! Atira!
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Mais caça em Angola
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Muito se caçou de cima de jeeps, de dia, tal como se vê no filme Hatari estrelado por John Waine, em 1962, e até de noite com farolim. Visto a mais de quarenta anos de distância dá até a sensação de que se maltratavam os animais. Para os apanhar vivos ainda não se tinha desenvolvido a técnica dos tiros com anestésicos, que mais tarde se passou a utilizar, e que sem duvida é muito mais fácil para o caçador e bem melhor para o caçado. Os tempos eram outros, as técnicas mais elementares, e se não fosse natural aquele modo de proceder certamente que um astro como John Waine não teria consentido em colaborar.
É verdade. Caçava-se muitas vezes de cima de um jeep, e até se atirava com ele a correr pelo mato! Aos saltos. Tudo era fruto do enebriamento e entusiasmo que a caça produzia.
Em Angola chamavam-se aos donos ou diretores de empresas que viviam em Portugal, e que ali se deslocavam em viagem de teórica inspeção, mas sobretudo de passeio e férias, pagas, os inspetores do cacimbo! Cacimbo era a designação genérica da época mais fresca, teoricamente o inverno, mas cacimbo é especificamente a névoa matinal que só aparece naquele período. Uma espécie de orvalho. Em São Paulo é a garoa. Esses tais inspetores de cacimbo normalmente não apareciam em África nos meses mais quentes quando o clima era pesado. Ar condicionado não existia, e sobretudo as noites eram difíceis de suportar. Tudo afinal uma questão de hábito.
Habitual era proporcionar a esses visitantes alguma caçada, sobretudo caça grossa, visto que muitos deles, lá em Portugal caçavam já perdizes, coelhos e pouco mais.
Um deles, um ricaço metido a esperto, Manuel Vinhas, caçador em Portugal, que ia com frequência a Angola, onde se sentia o dono único de uma companhia de cervejas, comprou nos Estados Unidos uma magnifica carabina Winchester .375 Magnum, arma de calibre pesado, muito versátil tanto para antílopes grandes, como para búfalo, elefante e rinoceronte.
Homem influente nos meios industriais, não faltava quem o quisesse convidar para ir à caça. Sentado no banco da frente de um jeep, carabina na mão, lá vai o importante senhor no meio de uma turma de malucos procurar emoções. O primeiro tiro, por cortesia era sempre reservado ao visitante. Chegados à zona da caça, deixa-se a estrada e segue-se por trilhos mais ou menos conhecidos, devagar, todos os olhos disponíveis perscrutando a savana, a orla das matas, o capim alto, à procura de sinais de caça, que podiam ser somente a ponta de um chifre, um daqueles pássaros companheiro inseparável de algumas espécies, e que denunciam a sua posição, um movimento estranho no capim, etc.
Se algo aparecia, o jeep começava a correr direto ao local indicado, e por muito plano que o terreno fosse o carro saltava quase sempre que nem corça. Todos agarrados com unhas e dentes para se segurarem, incluindo o único passageiro que seguia sentado. Quando a caça ficava ao alcance de tiro, e não havia tempo de parar o jeep porque os animais se esconderiam na mata, era então preciso atirar mesmo em andamento no meio daqueles tombos, o que requeria muita prática e perícia. O convidado era intimado a atirar de qualquer jeito para não deixar fugir a presa.
- Agora. Atira. Fogo. Depressa que estão a fugir. Atira. Atira!
Sob esta pressão de todo o grupo, o convidado tentava meter arma à cara, continuava pulando no assento e sem conseguir apontar acabava disparando de qualquer jeito. Desta feita o tiro seguia o seu destino na maioria das vezes ninguém sabia para onde. Outras vezes sabia-se: um desses tiros da 375 atravessou o capô do jeep e saiu por um dos faróis! Grande tiro! Não matou nada, mas no regresso da caçada foi muito comentado e comemorado! O Manuel Vinhas depois desta demonstração um tanto vexatória e pouco venatória, vendeu a arma!
Essa do "Agora. Atira. Já. Não deixes fugir", e outros gritos semelhantes era o que mais berravam os que iam a conduzir, agarrados ao volante, muito mais seguros do que qualquer outro! Os que iam em pé, no jeep ou nas caçambas das carrinhas tinham que se largar para meter a arma à cara, e isso era difícil e perigoso. Mais ainda em cima de uma carrinha Chevrolet aí dos anos cinquenta e tal, sem estrutura de tubos de proteção. Os que iam lá atrás, logo que se deixava a estrada e se começava a andar por picadas e atalhos que não foram feitos para carros, ou mesmo a corta mato, a procurar caça, tinham que se agarrar de qualquer jeito. Se fossem dois, um de cada lado, ainda tinham as janelas das portas, mas se havia um terceiro a segurança ficava complicada.
Daquela vez ia só o condutor, o Antonio Nuno, um conceituado condutor no mato como se verá pelas cenas seguintes, e em cima um caçador, com uma caçadeira de dois canos. Tinham ido dar um passeio e ver se caçavam qualquer coisa. Terra de imbondeiro, regra geral pobre, que um dito comum, em rima, dizia que em Angola não dava dinheiro, capim ralo e pouco mato. Um ou outro muxito. Mas por todo o lugar sempre aparecia o suficiente para não desiludir os tais passeios, e não tardou muito tempo a surgir um bando de Pintadas ou Galinhas de Angola (Numida meleagris). O carro pára o caçador dispara o primeiro e o segundo tiro, caiem duas galinhas e o resto do bando levanta vôo para pousar umas centenas de metros adiante e continuar a correr pelo chão. As duas galinhas abatidas ficaram imóveis em local visível havendo assim hipótese de tentar caçar mais uma ou duas. O caçador abre a arma para voltar a carregá-la e nesse instante, o Antonio Nuno, entusiasmado com a visão do bando a fugir, arranca com o carro, em curva, acelerando para não o perder de vista! O caçador, agarrado unicamente à arma, desprevenido, voa projetado pelo ar e com muita sorte, porque descontraído, cai e rola no chão sem uma beliscadura. O motorista seguiu em perseguição das galinhas! Novamente estas à vista e a boa distância para atirar. Sem parar, porque os animais alertados fugiam, Antonio vendo que não sai nenhum tiro grita de dentro da cabina:
- Atira. Agora. Atira. Depressa. Olha que vão fugir.

Tiro... nada. Antonio insistia, e como não ouvisse o estrondo da resposta olha pelo vidro traseiro e não vê o caçador. Pára o carro, sai para verificar onde este se tinha metido, e vê a caçamba vazia.
A uns centos de metros, sentado no chão, coberto de terra e pó, espingarda no colo, esperando paciente que o carro voltasse, lá estava o parceiro! Foi uma grande caçada!
Pelo menos cada um tinha uma bela "angola" para levar para casa. Ainda por ali andaram algum tempo sem ver mais nada, quando já no regresso, perto da estrada principal, dão de caras com uma Palanca Vermelha (Hippotragus equinus), um grande macho solitário, cerca de um metro e quarenta de altura, altura sempre medida na espádua, que devia pesar mais de duzentos e cinquenta quilos. Um tiro certeiro, cai o bicho. Espera-se para ver se está mesmo morto, ou se é necessário ainda um tiro de misericórdia, o que não aconteceu.
- Belo animal. Bom tiro.
Abre-se a barriga para retirar as vísceras, que além de melhor ajudar a conservar a carne, é menos lixo que se leva para casa e bem menos peso a carregar. Depois então é carregá-lo. Aí começou um problema complicado: os dois sozinhos iam ver-se aflitos para colocarem o animal em cima do carro. Além do peso, imenso para dois sujeitos que não eram nenhuns atletas, nessas ocasiões dá a sensação de que estes antílopes, pesados, têm vinte pernas, porque há sempre uma que empanca na carroceria, outra que em vez de subir fica por baixo ou presa no pára-choques, e quando ao fim de um esforço imenso se consegue já ter metade do animal em cima da caçamba, ele escorrega para fora como se estivesse untado de óleo, e cai de novo! Enfim, uma canseira. Mas não se pode desistir. Dessa vez foi uma luta titânica, que deixou os dois tão arruinados que poucas forças sobraram para conduzirem o carro de volta a casa! Mas levaram para eles e para os amigos um monte de carne principesca, que o Paulo, um empregado faz-tudo do Zé Neto, e também um grande pisteiro, foi ajudar a preparar. Esfolar o bicho e cortar a carne, não era para qualquer amador. Precisa de saber.
Noutro local, a Cela, hoje Waku Kungo, Antonio Nuno ao volante dum jeep Land Rover. Sentados no tejadilho, com os pés em cima do capô, dois caçarretas de primeira linha: Miguel Nuno e Manuel Teixeira de Abreu. Um com o farolim, outro com a arma. Dar uma voltinha para ver o que se apanha! Seguem devagar por uma picada na espera de aparecerem uns olhos brilhando na noite, sempre limpa naquela região. De repente o condutor vê, ninguém até hoje soube bem o quê, e estaca de repente. Os dois caçadores voam por cima do carro, estatelam-se no chão, sem ferimentos, e... acabou a caçada! Fica assim quase provado que o Antonio Nuno era um especialista em atirar com os caçadores pelo ar! Na caça era bom ter gente especializada em todas as áreas! Menos nisto.
Um dos mais suis generis dos tais inspetores de cacimbo, homem sereno, amável, companheiro ingénuo e alegre, magro e comprido, dois metros de altura, nariz suficiente, foi o Chico Manolete! Figura especial. Manolete foi a alcunha, apelido no Brasil, que lhe puseram quando ele um dia entrou numa garraiada. Já com alguns copos no buxo, enfrentou bravamente o valente garraio, e tanto sucesso fez que os aficionados que assistiam à corrida acharam que estava parecendo o grande matador espanhol, Manolo Rodriguez, El Manolete, e aplaudiram-no entusiasmados: Olé! Manolete! Ficou o Chico Manolete. Pois este chegou também a sentir o fogo de uma paixoneta por Angola, ao ponto de querer comprar uma fazenda para plantar café! Numa visita relâmpago que fez a esta região, tempo de chuva, o carro galgando subidas com dificuldade e descendo mesmo sem querer aquelas ladeiras barrentas, teve uma noite que dormir na mesma cama com o amigo que o levara. Não havia outra naquela casa simples, de madeira. Era a cama do dono da casa, que a dispensou aos visitantes e possível comprador da sua xitaca, mini fazenda de café. Chico, muito pudico, com medo que durante a noite o amigo tivesse alguma desagradável atitude sonambulista, em sua opinião sempre pouco aconselhável e nada cristã, colocou entre os dois o travesseiro! A cama já era estreita para um. Imagine-se com dois e mais um travesseiro pelo meio! Mas era o jeito!
Este Manolete também participou de algumas caçadas e começou a ficar animadissimo. Num dos fins de semana em que acompanhou uma das várias equipes de malucos da caça presenciou uma cena diferente: em vez de caçarem a tiro, atirando-se em vôo de cima do jeep em andamento, estes caçaram à mão dois filhotes de chacal (Canis adustus?), espécie rara na região onde foram encontrados! Rolaram pelo chão, sujaram-se todos, riram, divertiram-se, e acabaram por levar os filhotes para Luanda, de onde mais tarde foram enviados para um Zoológico em Nova Lisboa, hoje Huambo.
Como nesse dia ainda se caçou um belo javali, carne deliciosa, o nosso Chico Manolete, achou que cada vez que tivesse apetite de carne de caça, era só ir dar uma voltinha, de preferencia à noite quando era mais difícil encontrar fiscais de caça!
Caçar à noite era proibido, como é de calcular. Mas o entusiasmo por vezes é mais forte do que qualquer lei, ou lógica. O Chico tinha nesse tempo uma carrinha fechada, Austin, amarela, gema de ovo, talvez a única dessa cor em Luanda, o que a identificava a quilometros de distância. Talvez o tipo de carro menos indicado para ir à caça. Mas era o que ele tinha. De vez em quando passava em casa do Francisco, também Chico, seu xará, depois do jantar. Parava o carro na rua, tocava a buzina e sem sair do carro:
- Vamos num instante ali à estrada de Catete apanhar um javali!
- Chico, além de não serem mais horas para caçar, javali nem os olhos dá à noite!
- Então vamos caçar outra coisa!
A caça era muito mais do que um vicio. Era tão bom que mesmo não caçando nada ninguém voltava para casa aborrecido ou arrependido!
Outro visitante, o João Salgado, solteirão ainda, experiente caçador na Europa, como não era diretor ou dono de empresa teve que ficar inspecionando Angola durante seis meses. Tempo mais que suficiente para por ela fatalmente se apaixonar. Várias e profundas foram até as suas paixões, terrestres e aéreas. Angola é assim, todos tinham que se apaixonar por ela e por algo mais. Sobrava paixão naquela terra.
Numa das primeiras caçadas em que participou, equipado com caçadeira calibre 12, dois canos, porque os animais visados eram de pequeno porte, teve o seu momento de glória. Ninocas conduzindo o jeep que corria num terreno irregular, João em pé na traseira no meio de dois companheiros, todos ferozmente agarrados à estrutura tubular que sustenta a capota, sempre retirada e dobrada no fundo do carro, vê aparecerem no alto de uma pequena elevação dois veados! Nome genérico dado às diversas espécies de antílopes de porte médio, até pouco maiores do que uma cabra e mais concretamente aos Golungos (Tragelaphus scriptus) muito bonitos, com cerca de noventa centímetros de altura de espádua e uns sessenta quilos de peso.
Os dois veados recortando-se imóveis numa posição quase desafiante, João sem se largar para não cair, instinto treinado, aponta, sai o primeiro tiro, um veado cai, segundo tiro e o segundo veado cai também.
- Hurraaah! Um duplo aos veados!
Mal tinha acabado de pronunciar este grito de justificada satisfação e glória, chegou a vez do jeep por sua vez cair num buraco e tombar de lado! João, como todos os outros cai também, e fica com os canos da arma, felizmente já descarregada, pressionando-lhe a barriga. Um parceiro por baixo, outro por cima, uma pequena confusão que logo se acalma, todos a quererem levantar-se o mais rápido possível. Num instante estão de pé, cada qual procurando certificar-se que nada mais que uma ou outra pancada ou esfoladela, coisa comum, os tinha atingido. Todos, exceto o João, que continua deitado, a gemer!
- O que foi? Onde te dói? Dá cá a mão que a gente te ajuda a levantar.
Os companheiros preocupados. João levanta-se bem devagar, confere com a mesma lentidão a completa integridade do físico e quando se certifica que nada lhe tinha acontecido, respira fundo.
- Estás ferido?
- Não. Não. Graças a Deus.
- Então porque estavas a gemer?
- Eu estava à rasca naquela posição, os canos da arma enfiados na barriga, sem saber se tinha quebrado alguma coisa, achei melhor começar logo a gemer, para o que desse e viesse!...
Gargalhada geral. Eram uma animação aqueles incidentes!
Foram procurar os dois veados que deveriam estar caídos a vinte ou trinta metros dali. A elevação onde foram vistos dava para uma profunda barreira em desnível, talvez com cinquenta metros de altura, onde por sorte o jeep não caiu porque o tal buraco o segurou primeiro! E os dois veados abatidos num brilhante duplo de mestre? Onde estão? Bem que os procuraram, mas é de crer que eles se assustaram com os tiros, fugiram barreira abaixo, talvez sãos e salvos, e até hoje não consta que tivessem sido encontrados! Um duplo aos veados!
Mais uma aventura de caça que dava muita luta, muito boa disposição no regresso a casa, ao fim do dia, quase sempre com aquela paradinha obrigatória no mesmo bar que ficava a uns dez quilometros de Luanda, no Cacuaco, uma pequena enseada de pescadores. Esse bar, misto de casa comercial, restaurante, etc. era paragem obrigatória para matar a sede e fome, e fechar o dia comentando com tremenda animação aquela e outras caçadas. Os petiscos habituais eram as gambas, um camarão grande de Angola, uma delicia, choquinhos en su tinta, e outras pequenas maravilhas que permitiam que a cerveja ainda melhor corresse pelas gargantas ressequidas.
A cerveja de Angola, naqueles tempos era a Cuca. E, para quem voltasse daquela zona de caça era quase obrigado a ir beber Cuca no Cacuaco. A cacafonia ajudava a divertir os bebedores, atraídos sobretudo pelos petiscos, sem duvida. Quantas vezes se chegava ali ainda de dia, só para lavar a garganta, cheia de pó do mato, e saia-se já noite adentro, bem petiscado e bem bebido. As tais paradinhas! Mas ao chegar a casa ainda havia muito a fazer: dividir e preparar a carne que se trazia, limpar e arrumar as espingardas, e por fim tomar um belo banho!
Como tudo aquilo era bom...
São inúmeras as histórias de caça com os tais visitantes, alegres e caricatas, e não só com estes como com angolanos, mais ou menos devotos uns de Santo Uberto e outros talvez da deusa Samba, a protetora dos caçadores angolanos. E até com caçadores experientes.
A Pacassa (Synceros caffer nanus), um búfalo de relativamente pequeno porte, que deve atingir trezentos quilos de peso, é um animal com uma vitalidade incrível, que defende ferozmente o seu território e a sua vida. Aquilo é o que se chama de um bicho bravo. Em Angola sempre foi considerado o animal que mais acidentes de caça causava, tanto a caçadores como à população rural. Perseguir uma pacassa depois de ferida, sendo obrigação do caçador não abandonar um animal que não possa restabelecer-se rapidamente do ferimento causado pelo tiro, é deveras perigoso. Ela esconde-se, espera o caçador e investe, sobretudo se essa perseguição não começar imediatamente após o tiro. Isso pode acontecer se a caçada se fez ao final da tarde e o animal se refugiou dentro da mata, onde não há possibilidade de entrar sem luz. Então deixa-se para o dia seguinte, o que nenhum caçador nem pisteiro gosta de fazer, mas que se impunha como obrigação.
Horas depois de ferida, se a pacassa não consegue acompanhar a manada, e se isola, o cuidado tem de ser total. O ferimento começou a infeccionar, e o animal sentindo que a vida lhe está a faltar, em vez de fugir do caçador ou de qualquer homem, enfrenta-o bravamente, e com os seus chifres fortes e aguçados pode causar muito dano. E é sempre pior dentro da mata onde o homem quase não tem defesa e o animal lhe pode surgir de repente a meia dúzia de metros correndo direito a ele!
Assim mesmo com um ou outro visitante alguma vez houve que seguir este procedimento.
Ao fim da tarde de um sábado atingiu-se uma pacassa, e ela fugiu para a mata onde procurava proteção. Matas de espinheiras, com espinhos enormes, retos uns e outros talvez piores, curtos mas tipo unha de onça, o que dificulta terrivelmente o andar lá por dentro. Na madrugada seguinte, logo que a luz permitiu a entrada na mata, andando quase de gatas, olhos e ouvidos no alerta máximo, seguindo o rasto deixado pelo animal, lá vão quatro homens, o pisteiro, dois caçadores e o convidado, também com uma arma na mão, mas em segundo plano porque o momento era perigoso, requeria muita loucura e seria covardia expor a isso um novato. A deslocação muito lenta e temerosa, o pisteiro encontrando cada vez mais frescas manchas de sangue a indicar a proximidade do animal ferido. A tensão dos caçadores no máximo, a respiração lenta e silenciosa, o pisteiro atento ao menor indício que o orientasse, passando essas informações, por sinais, ao caçador.
De repente um barulho de galope, ali, a dois passos dos que vão na frente. Adrenalina a mil! Armas à cara, mas pacassa... nada.
Não foi a pacassa. No profundo silêncio da madrugada o levantar vôo duma perdiz a três metros de distância acaba fazendo um barulho tal que os caçadores pensaram e temeram que fosse a pacassa a investir. Passou o susto. Respirou-se fundo. Com um sorriso meio amarelo entreolharam-se, abanando a cabeça com ar de quem diz safámo-nos desta!
Mas faltava um elemento do grupo.
- Onde está o convidado?
Tal foi o susto que largou a arma e subiu na primeira árvore. Um espinheira! Lá estava ele a pouco mais de um metro e meio do chão, verde! Subiu num ápice, mas com tanto espinho, acabou sendo difícil tirá-lo dali! E depois ainda deu trabalho arrancarem-se-lhe os espinhos e passar mercurocromo nos arranhões que sangravam! Acabou a perseguição a pé à pacassa ferida. Foi depois encontrada à saída da mata no lado oposto por onde tinham entrado, e somente a uns dez metros onde a tal perdiz levantara! Sem que alguém a tivesse visto, a pacassa esteve ali mesmo à frente deles, e de certeza a observá-los. Se tivessem avançado um pouco mais a situação poderia ter sido feia.
Um tiro quase de misericórdia, e uma imensa quantidade de carne, deliciosa, a dividir pelo pisteiro e pelos caçadores.
O susto quase sempre vale a pena. Se não termina em tragédia, como muitos, são lições que se tiram e recordações que se levam pela vida fora.
Ninocas trabalhava como vendedor de adubos para uma grande companhia. Um dia recebeu, vindo da metrópole, um novo diretor financeiro, o dr. José Marques. Baixinho, óculos, caçador de coelhos e galinholas e outras miudezas lá na terrinha, assim que chegou a Luanda quis logo ir ver como era uma caçada a sério! O pessoal da companhia, como não podia deixar de ser, recomendou-lhe o Ninocas, como o melhor parceiro que se podia encontrar. E era.
Lá vão os dois, sós, no jeep do Ninocas, este a conduzir, para deixar ao novo diretor a honra e o prazer de matar a sua primeira peça de caça grossa!
Carro no meio do mato, deslocando-se lentamente à procura de algum animal, o dr. Marques em pé agarrado com unhas e dentes à armação do carro e o Ninocas vasculhando toda a área com o seu olhar experiente.
De repente lá estava uma manada. De pacassas, é claro. O Ninocas habituado a meter o pé na tábua assim que avistasse alguma coisa, acelera, o jeep começa a correr, saltando que nem pipoca, com o dr. diretor financeiro apavorado para não cair, procurando arranjar mais mãos e braços para se segurar, sem poder largar a arma que levava.
As pacassas alertadas começam a correr em direção à mata. Ninocas sempre acelerando, grita:
- Ali, na frente, doutor. Ali. Ali.
O jeep corria, saltava, e o dr. não queria nem saber de ver coisa alguma. Ele não era equilibrista de circo e chacoalhava e batia com o peito e braços nos ferros do carro, mas largar-se é que nada.
Ninocas, quando viu que os animais estavam ao alcance de tiro, grita mais ainda:
- Agora, doutor. Atire. Atire, agora.
Qual atira. Segura, só.
- Atire depressa que elas vão fugir. Atire. Agora. Depressa.
Nada. Ultimo apelo desesperado:
- Atira que elas vão fugir.
Nada. Fugiram.
- FILHO DA PUTA, doutor. Perdemos as pacassas!
Pára o jeep, cai em si e dá-se conta da terrível ofensa que acabara de fazer ao seu novo diretor, e quando olha para trás para lhe pedir desculpa vê o homem lívido, grudado à armação do carro. Nem falava. Apavorado.
Sem mais uma palavra voltaram para Luanda.
No dia seguinte, quando se encontraram no trabalho, o doutor já descansado, esqueceram o insulto, riram descontraídos e marcaram nova experiência, mas um pouco mais devagar! E sem palavrões!
in "Contos Peregrinos a Preto e Branco" , 1998, de Francisco G. de Amorim

domingo, 26 de julho de 2009

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A CAÇA E OS CAÇADORES
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"Oryx gazella" - O Guelengue do deserto do Namibe

Quem não viveu em África até aos anos cinquenta ou sessenta deste século, não pode imaginar o que era caçar. Nada ou pouco se falava em ecologia, meio ambiente, extinção de espécies, destruição de florestas, poluição, etc. Havia consciência de que algumas espécies estavam a caminho da extinção, e os governos faziam quanto podiam para evitar, ou retardar esses desastres. Os caçadores também, apesar de sempre ter havido gente inescrupulosa e que continua a destruir tudo, e todos, que lhe surja pela frente. Aliás o animal homem também está incluído nas espécies em extinção, basta ver os genocídios na Croácia, na Somália, Ruanda, Sudão, Afeganistão, o turismo-tráfego-de prostituição infantil que os humanos de países ricos compram dos pobres, e muitas outras aberrações, para se imaginar que a nossa espécie está longe de se querer manter na face da terra. O bicho homem é um ser miserável.
Mas enfim, naquele tempo caçava-se, e de um modo geral o caçador tinha uma profunda consciência do que fazia. Não era um matador de animais. Ele sempre procurava escolher o maior macho do grupo, não só porque atraído pelo troféu, como pelo mesmo orgulho do pescador, que sempre amplia o tamanho do peixe apanhado, dando assim hipótese a que um outro macho, mais jovem, levasse sangue novo e passasse a chefiar a manada. Evitava abater fêmeas, o que em algumas espécies era muito difícil de distinguir, por serem machos e fêmeas quase iguais, respeitava a época do defeso e sobretudo respeitava e amava todo aquele maravilhoso ambiente, vivendo intensamente cada momento do imenso sertão, do "mato".
Quem naquela época, mesmo que só tivesse ido a África por alguns dias, teve oportunidade de participar de uma caçada, pode viver mais cem anos que não vai nunca esquecer essa experiência. Foi a emoção, por vezes o medo, mas sobretudo o espaço, a grandiosidade das matas, das savanas, do deserto, o silêncio, o piar ou cantar de uma ou outra ave, o restolhar de um animal ou mesmo de uma manada inteira correndo dentro da mata, quantas vezes sem que alguém conseguisse enxergá-la, a travessia de um rio em cima de jangadas que Deus sabe como não viravam, e tanto mais. Tudo aquilo não se esquece como ninguém esquece o primeiro ou o maior amor da sua vida.
Os atrativos da caça eram, além do óbvio, a possibilidade de caçar um animal qualquer que proporcionasse um bom troféu, ou uma bela carne, ou só o passeio, mas sempre umas horas ou dias com boa companhia, alegre e em contato com a natureza selvagem, primitiva, quantas vezes quase intocada. Havia algo que se sobrepunha a tudo o mais, que faz parte da genética do homem, caçador desde todos os tempos: a espera, a perseguição, o seguir um rasto, o adivinhar através do menor sinal ou ruído onde se encontra a presa que se persegue. Tudo isso. Eram momentos, quantas vezes horas e horas, de grande tensão, e de profunda, total comunhão com a natureza.
Tanto fazia ser uma caçada aos elefantes como somente às rolas ou perdizes, que o entusiasmo era o mesmo. O que variavam eram os preparativos, o tempo que teria que se dispor para uma ou outra, com acampamento ou não, as armas a levar, a distância a percorrer para alcançar as áreas de caça, já que elefantes e outra caça grossa só bem longe das cidades, enquanto que perdizes e rolas, na época certa havia-as por quase todo o lado.
Caçar, ninguém conseguiu definir se é vicio, se paixão. E uma pessoa ou se apaixona ou é indiferente. Em África era assim. O caçador era um apaixonado pela caça, e como esta é inseparável da própria África, o caçador era um apaixonado por África.
Pode ter sido obrigado por falta de visão de futuro e erros políticos cometidos pelos países colonizadores a abandoná-la, mas com certeza que os anos que depois viveu fora dali sempre estiveram impregnados de uma saudade imensa, presa, entre outras, às recordações de tão grandes momentos.
De uma forma genérica dividia-se a caça em: caça grossa quando se tratava de animais grandes, a começar pelos elefantes, rinocerontes, búfalos, pacassas - uma variedade de búfalo menor, mas mais agressiva e talvez mais perigosa do que aquele - onças, etc. e caça ligeira a pequenos antílopes, lebres, rolas, patos, perdizes, e outros.
A caça às rolas era um tipo de caça especial. Própria. Elas dormem em árvores junto às lagoas e de manhã bem cedo saem, aos milhares, para se irem alimentar nas matas, percorrendo praticamente sempre o mesmo trajeto. Os caçadores colocavam-se sob a linha de vôo e atiravam de passagem. Parece, dito assim com esta simplicidade, coisa fácil, mas só para quem nunca caçou! A trajetória ziguezagueante e a velocidade incrível do seu vôo que o vento de favor ajudava, dificultava o tiro que tinha que ser muito rápido. Assim, enquanto um grande atirador como era o Zé Neto, chegava a matar uma centena, um mediano não passava de dez ou vinte, dando o mesmo ou até maior numero de tiros! Mas ambos gozavam do mesmo modo. Para ir às rolas saía-se de Luanda bem cedo, ainda noite escura, para estar no local de caça ao nascer do dia, antes das aves começarem a sua faina. Pelas nove ou dez horas da manhã estava a festa acabada.
Quando era uma caçada familiar, em que a família participava do passeio, levava-se farnel que se comia debaixo de boas sombras, e por vezes até a sesta ali se dormia estendido no chão ou nos bancos dos carros, e duas horas antes do pôr do sol voltava a caçar-se novamente, com o regresso das rolas ao local de pernoita. Por fim dividiam-se as peças abatidas entre todos e regressava-se a casa com a agradável sensação de se haver passado um dia soberbo.
O horário para toda a caça é sempre o mesmo, iniciando logo que o dia começa a despontar, parando assim que o calor impede a permanência sob o sol escaldante, cerca de duas a três horas depois do seu levante quando os animais se vão abrigar. Ficam quase sempre imóveis à sombra, escondidos dentro das matas, para voltarem a locais mais abertos, duas a três horas também antes do pôr do sol para de novo se alimentarem.
As perdizes eram caçadas de salto, com cães, que não só as obrigam a levantar como sobretudo não as perdem no meio do capim ou do mato, depois de feridas ou mortas. Todo o caçador sabe que uma das principais características de qualquer animal selvagem é a sua capacidade mimética. As perdizes com a coloração das suas penas matizadas de castanhos e beges, se ficarem imóveis no chão quase sempre passam desapercebidas. Ao caçador europeu. Ao africano é difícil que escapem, de tal modo ele está integrado ao seu ambiente!
Em muitas das áreas desta caça, o capim chega a atingir a altura de um homem, dificultando ou até impossibilitando a caçada, quantas vezes com arbustos espinhosos escondidos pelo meio, que obrigavam o caçador a vestir-se com roupas de tecido forte, apesar do muito calor tropical, se não queria ficar com as pernas arranhadas ou até rasgadas! Isto ainda era muito bom quando comparado a outras áreas de caça, donde se saía carregado de minúsculas carraças, carrapatos, os causadores da febre da carraça. Se andasse por estas áreas, ao chegar a casa era aconselhável tomar um bom banho de imersão misturando um pouco de amoníaco na água e pedir a alguém que o inspecionasse em todos os cantos, sobretudo nas áreas traseiras onde nem com espelho se enxerga! Isto para evitar deixar ficar um desses miseráveis bichinhos que poucas horas depois já se estaria alimentando do seu sangue. Eram as condições do jogo que todos de bom grado aceitavam. Nunca alguém se lamentou por isso! O amor é assim!
Aos patos a caçada era bem diferente, porque estes vivem nas lagoas. Quem morava em Luanda podia optar pela lagoa de Catete, que pertence ao sistema fluvial do rio Quanza, a uns sessenta quilometros da capital, ou do Panguila a metade da distância, no rio Bengo, que é o fornecedor de água a Luanda. Catete por ser mais longe e a lagoa bem maior, proporcionava sempre melhores hipóteses. Nas margens de ambas havia algumas sanzalas de pescadores que ali e dali viviam. Tinham os seus dongos, pequenas canoas, que levavam o caçador, e eram eles quem sempre sabiam onde se encontravam os patos!
Essas lagoas com muita vegetação, nenúfares rasteiros e caniços altos, que tanto protegem as aves da vista dos caçadores como estes daquelas, tinham o inconveniente de abrigarem miriades de mosquitos que compartilhavam o mesmo horário para caçarem o homem, às primeiras e ultimas horas do dia! O único jeito de que os caçadores se serviam para não serem caçados pelos hámua, era o de se equiparem convenientemente, usando chapéu colonial com rede, luvas, botas altas de pescador, e camisa forte porque os insaciáveis mordiam até por cima da roupa. Logo que o sol ia um pouco mais alto, como por encanto os mosquitos sumiam, e podia-se então gozar por completo aquela quietude. As águas serenas e frescas, um bando de marrecos ao longe, o aproximar do dongo com o pescador e guia a não fazer o mínimo ruído com o remo, ambos, pescador e caçador encolhidos para evitarem serem vistos de mais longe. O dongo avançava silenciosamente, impulsionado pelo remo ou por uma vara, o pescador ximbicando, muitas vezes sob densa neblina que se levantava da superfície das águas, dando a todo aquele quadro um aspecto de sonho e de mistério. A neblina, se mantinha os mosquitos mais tranquilos, também deixava poucas hipóteses de se verem os patos. Tudo isso era inalianável. Como um ritual. Apaixonante.
Uma das espécies que habitavam também as lagoas eram, como se pode imaginar, os jacarés, ciosos da sua propriedade e sempre prontos a enfiar aquela enorme dentuça em todo o petisco que aparecesse. Ao meter a mão na água para pegar um pato que se tivesse abatido, havia que o fazer com cuidado, porque o bichão podia se precipitar para apanhar o pato mais rápido do que o caçador, e por acréscimo levar a mão deste! Alguns pescadores foram vitimas de acidentes deste tipo, e com o Antonio Mariano, isso quase aconteceu. O pato caído na água depois de ter sido abatido, no momento em que lhe vai a deitar a mão para o apanhar, um daqueles jacarés quis a mesma refeição. Por muita sorte chegou ligeiramente atrasado e só conseguiu pegar a cabeça do pato, mas o susto foi de tal ordem que o caçador não só largou o pato como a arma e quase cai de costas para fora do dongo! O jacaré apanhou outro susto e o pato, sem cabeça, ficou boiando na água! Por pouco tempo.
O disfarce dos animais e a defesa das suas vidas tem cenas incríveis. Todo o pato abatido sem que o tiro seja mortal, procura sempre fugir e se esconder, muitas vezes mergulhando nas águas para só aparecer bem longe onde já se imagina longe do perigo. Outras vezes enganavam-se a si próprios, fazendo como a avestruz que, segundo versão popular, enfia a cabeça num buraco para não ver o que se passa à sua volta, escondendo só a cabeça debaixo de um nenúfar, certamente convencidos que estavam suficientemente camuflados, mas deixando o corpo todo de fora! Esses normalmente acabavam assados com laranja, uma ótima receita!
A caça grossa era outra coisa, mais complexa e emocionante, como é fácil imaginar.
(continua... para voltarmos a sonhar!)

in "Contos Peregrinos a Preto e Branco", 1998, de Francisco G. de Amorim

26 jul.09

quarta-feira, 15 de julho de 2009


ESBOÇO DE ALGUÉM

“Aqueles que por obras valerosas,
Se vão da lei da morte libertando!”

Quando no final do século XVI, Yermak Timofievitch entregou ao Duque de Moscovo, Ivan Vasilieivitch, o famigerado Ivan o Terrível, toda a Sibéria que havia finalmente conquistado e submetido por seu esforço e mérito, a alguns dos seus mais diretos colaboradores foram concedidas mercês e regalias como prova de agradecimento do primeiro governante russo que se intitulou o Grande Tsar das Rússias.
Entre essas mercês estava o direito ao uso, para si e seus descendentes, do patronal vitch, que significa filho de. Assim foram nobilitados alguns homens que ajudaram a engrandecer a Rússia, e seus filhos passaram a poder acrescentar ao seu nome próprio o nome de seu pai. Não eram mais simples comerciantes ou guerreiros, mas membros da nobreza.
Nos primórdios da nação portuguesa as gentes dividiam-se por bem definidas camadas sociais, tendo no topo os ricos homens, os grandes senhores de terras, de castelos e de gente, que ocupavam os principais cargos públicos, e assim detinham o poder e a autoridade, e a seguir os infanções, os nascidos e criados entre os mais poderosos senhores. Só estes pertenciam à nobreza, classe fechada, quando não endogâmica, que mais tarde começou a ser representada por outros membros, a que talvez se pudesse chamar nobreza de 2ª, como os cavaleiros.
Talvez com o receio de permitir que um qualquer penetrasse nesse meio de nobres, estes juntaram à sua classe mais uma designação: filhos de algo. A nobreza mais antiga, que vinha de pais para filhos, tinha que se distinguir dos que entravam nessa classe pela porta do serviço. Por muito que se tivessem destacado e merecessem o reconhecimento real, não tinham ancestrais, pais ou avoengos nobilitados que lhes permitissem ser filhos de algo, de alguém.
A esses um dia os reis tiveram que se agarrar para conter a força imensa dos grandes senhores, que com seu poderio económico, estratégico e até de gente que podiam recrutar para batalhas, desafiavam e ameaçavam o poder central.
No entanto os filhos de algo, os fidalgos, meta que todos almejavam atingir, de modo mais submisso ou arrogante, sempre dominaram as cortes.
Na verdade nobreza é algo que não está no sangue, nos livros de linhagens, nos brasões, nem nos avós, mas no comportamento e sentimentos. Onde está a nobreza de alguns membros da família real inglesa que só dá escândalos sujos? E das meninas de Mônaco? Que respeito merecem?
Nobreza está no caráter. De muita gente simples se ouve dizer que tem uma grande nobreza de alma, de caráter. São simples por não terem antepassados importantes, e são grandes porque assim são as almas simples.
Almeida Garrett, em atenção à sua grande obra artística e política foi nobilitado com o título de visconde e Par do Reino. Um dia, em que por doença não pôde comparecer ao Parlamento, foi alvo de uma critica desagradável feita por um membro da velha fidalguia, que por sarcasmo insinuou a sua recém entrada na nobreza. Na sessão seguinte, Garrett, começou a sua réplica: - A nobreza que em mim começa talvez termine em Vossa Excelência! Eu fui nobilitado por meus serviços ao país, enquanto Vossa Excelência simplesmente nasceu assim.

Esta introdução não pretende ser uma incursão na história, mas uma muito singela homenagem a Alguém, porque parece no fim de tudo isto, o que vale é ser-se alguém. É bem verdade porque o que todos querem é ser alguém na vida.
Neste caso o Alguém, que de acordo com o dicionário significa pessoa de relevo, foi além disto.
Não só pela sua obra artística, de que se evidenciam a pintura, o desenho, a poesia, os profundos conhecimentos etnográficos, os científicos. O maior destaque da sua vida foi a sua personalidade. Foi ele todo.
Alegre, brincalhão, divertido, a sua companhia não dava lugar a tristezas. Ao seu lado tanto se aprendia sobre Angola e seus costumes.
Angola que foi a maior paixão da sua vida. Percorreu-a de lés a lés, conviveu com suas gentes, e desde menino a sua máquina fotográfica foi o lápis e o papel. Retratava com mais realismo o seu desenho do que qualquer fotografia ótica.
Ele via e fixava os detalhes das gentes, seus requebros, sorrisos e tristezas, sombras e cores, trajes e adornos, suas conversas mudas que se ouvem nas expressões dos rostos, suas danças e costumes, suas vidas.
Os animais e seus habitats, as plantas, a mata, as casas, os céus, o cacimbo das manhãs, a névoa úmida das regiões de café, as nesgas de sol atravessando de mansinho as copas das árvores no Maiombe, nada lhe escapava, nem do traço nem da mente, continuando por muitos anos a reproduzir com fidelidade inigualável a cor de cada céu, de cada região que tão intensamente percorreu e viveu.
Não necessitava cantar em poesia aquilo que os seus pincéis reproduziam, como o Tocador de Quissange, onde a cor, a posição e a expressão do musico parecem por si próprios transmitir a dolência do instrumento. Observado com cuidado pode até escutar-se a sua música.
Dos Quintalões de Benguela que não mostram mais do que um muro, uma porta e uma árvore lá dentro, emana toda a dengosidade daquela cidade mulata, e ao fim de poucos momentos consegue-se até sentir a brisa que sopra, constante, da Praia Morena.
Quem atravessou as plantações de café do Uige, de manhã cedo, toda a área escondida na neblina a manter a umidade necessária para que Angola fosse o terceiro produtor mundial desse frutinho que faz uma bebida deliciosa, e vê uma pintura dessa região, sente os pés a derraparem em cima daqueles caminhos de barro escorregadio. E se o café estiver em flor fica enebriado. Os olhos presos naquele ambiente de sonho, sente nos ossos a umidade, e o cheiro a sair da tela, vivo, profundo, até entontecer.
A seguir um Imbondeiro, triste, grotesco, enorme, sem folhas, seu aspeto mais comum, passando a seu lado uma mulher com uma bilha de água na cabeça. Quem não sente o calor sufocante daquela região? Quem não se extasia perante aquela grandeza pobre, mas altiva, imponente?
Depois o Maiombe. Aqueles verdes!... Da tela sai a pujança do equador que nos faz sentirmo-nos menores do que os pigmeus, que estão por perto. O calor invade-nos, começa-se a suar e a louvar a Deus pela imponência daquelas obras da Criação. As duas, a de Deus e a da tela.
Esfumadas noutra neblina da madrugada, vem-se agora, perto mas ao longe, algumas gazelas esguias, elegantes, descontraídas, a pastarem. É um crime atirar em animais tão bonitos, mas... qual foi o caçador que resistiu?
Num Mercado no Luena qualquer um pode discutir preços e comprar panos, peixe seco, jinguba, sentir vertigens à beira da Fenda da Tunda Vala, encolher-se para atravessar a Floresta nos Dembos, ou refrescar-se debaixo das águas das Quedas do Duque.
Encanta-se com uma doce e altiva Bessangana de Luto, seu coração altera o compasso ao ver uma Moça de Massabi, Cabinda, ou da Gabela, acelera ainda mais a pulsação ao desejar aberta ou intimamente uma das Mulatas de Luanda e a reverenciar-se perante a beleza dum penteado Muíla.
Quem não sacode a anca ao ver a Marrabenta de Moçambique, ou a Rebita de Benguela e não dá uma umbigada com a Massemba de Luanda? Naqueles requebros vêm-se e ouvem-se os ritmos da dança.
Os desenhos, as aguarelas, as telas sucedem-se e de repente entramos pela Bahia do Salvador de Todos os Santos. Mesmo quem nunca foi à Bahia, a um candomblé, e pára em frente duma destas telas, começa a sentir o cheiro do caruru e o sotaque carinhoso e quente dos nossos irmãos do Brasil.
E muito mais do que só isto.
As suas poesias têm que ser lidas. Só lidas. Comentar poesias só por descaramento ou presunção se pode fazer, sobretudo quando elas tocam fundo na alma de quem viveu Angola. E é difícil encontrar quem tenha vivido em Angola, que não tenha vivido Angola.
Ler os seus poemas - Macuta e Meia de Nada - que escreveu pré e pós 1975, data em tivémos todos que sair de Angola, retrata bem o que isto significa. É impossível, ainda hoje, e sempre, ficar insensível a tão triste mágoa.
Este pequeno esboço de Alguém é uma muito simples, talvez até mesmo atrevida, maneira de recordar um Amigo. Um Amigo que teve muitos amigos e em cada um destes um grande admirador.
Se a sua obra foi mais do que suficiente para o distinguir e fazer dele Alguém, a sua personalidade sempre ultrapassou a obra. Sem aquela não teria existido esta!
Brincalhão, alegre, uma das graças que gostava de fazer era desenhar a sua caricatura em pratos ou copos e oferecê-los aos amigos. Mas os pratos e os copos não eram dele! Eram dos bares, dos restaurantes, das boites, que se orgulhavam da sua presença, mesmo conscientes do prejuízo que tal brincadeira lhes acarretava!
Em Luanda no Hotel Universo, do Trigo, um galego forreta, como todos, mas simpático, havia uma boite, que durante muito tempo foi o lugar da capital de Angola mais agradável para se passar parte da noite.
A boite era feia, não tinha decoração, e um dia o Trigo propôs-lhe a medo:
- Se você me fizesse uns painéis para aqui... Mas custam muito caro, com certeza, e não vou poder pagar muito por isso.
- Eu faço. Não se preocupe. Você vai pagando em bebida, que eu venho aqui beber.
Dito e feito. A boite ficou com uns painéis sensacionais, linda.
Só mais tarde, quando a mulher lhe perguntou porque fez o trabalho de graça é que ele explicou:
- Quando fiz a minha primeira exposição para angariar algum dinheiro, o Trigo comprou-me uma grande quantidade de aguarelas que foi o que me permitiu ir estudar para Portugal. Agora é altura de retribuir.
Trigo nunca soube a razão deste gesto. E lá foi servindo as bebidas que ele, com garbo e sempre bastante sede ia bebendo, não só enquanto foi pintando, como depois nas muitas vezes que ali ia.
Um dia descobriu que lá num canto da boite havia um pequeno móvel onde os criados guardavam os pratos. Foi ao lado desse móvel que escolheu a sua mesa habitual: tinha sempre à mão quantidade suficiente de pratos para ir desenhando a sua caricatura e oferecer aos amigos!
O senhor Oppenheimer, senhor porque arquimilionário, dono de algumas das mais importantes minas de diamantes na África do Sul, e de um dos maiores comércios de pedras preciosas em todo o mundo, foi um dia a Angola, e lá tomou conhecimento do grande mestre pintor.
Foi a sua casa, montado em cima dos milhões que todo o mundo reverenciava. Todo o mundo não!
Depois de ver dois ou três quadros, o ultimo dos quais o busto espetacular duma mulata, fez um comentário racista, apartheidiano sobre o fato do pintor se dedicar sobretudo aos africanos.
Este senta-se, tranquilo, acende o seu cachimbo, e fica sorrindo para sua excelência.
- Então, não tem mais quadros?
- Não. Só os que lhe mostrei, e estes mesmo estão já vendidos.
- Mas o senhor tem uma grande quantidade deles ali atrás.
- Tenho, mas uns não estão terminados e os outros foram encomendados. Não são meus.
Continuava sentado impávido, perna traçada, sorrindo e puxando fumaça do cachimbo.
- Mas como é possível? Tantos quadros aqui e o senhor diz que não nem um para vender?
- É isso.
O milionário saiu porta fora puto da vida. Foi-se queixar ao Governo Geral. Daqui lhe telefonam como que a pedir explicações para o caso!
- De quem são os quadros? Quem os pintou? Quem pagou as telas e as tintas? Quem me deu algum subsídio para pintar? São todos meus, e eu faço o que bem me apetece com eles.
Fim de papo.
Passado algum tempo expôs em Windhoek, capital do Sudoeste Africano, hoje Namíbia. A exposição foi mais um sucesso. Um ou dois meses mais tarde outro sul africano se apresenta em sua casa.
Tinha sabido da exposição em Windhoek, que infelizmente não tinha podido ver e pedia-lhe muito que lhe mostrasse algumas obras.
Viu, muitas, e comprou uma meia dúzia de quadros, que levou com ele.
Mais algum tempo depois veio a saber-se que fora a tal excelência quem mandara um emissário comprar os quadros, mas proibido de mencionar onde quer que estivesse o nome Oppenheimer!
O nosso artista ficou furioso, mas...
Já exilado em Salvador, na Bahia, onde viveu os primeiros tempos muito entristecido com a desgraça das terras que tanto amou e com a ingratidão dos seus governantes, um dia disse à mulher:
- Estou com falta de verde.
- Compra.
- O verdadeiro.
Foi para a Amazônia. Talvez uns quinze dias.
Três semanas depois a mulher telefona para o hotel onde supunha poder encontrá-lo, e nada! Pôs em campo a telefonista das informações de Manaus, que à boa e tradicional moda brasileira se prontificou em pesquisar por sua conta em todos os hotéis da cidade.
Uma hora depois liga de volta e diz que a última notícia dele é que tinha estado no hotel X.
A mulher liga para lá e informam-na:
- Esteve aqui sim, mas saiu há uns oito dias. Deixou a mala com a roupa, que pegaria quando regressasse.
- Para onde ele foi?
- Foi com uma turma que ia cortar madeira lá para o interior, para uns igarapés.
Estava localizado, mas só de lá voltou, com a graça de Deus e muito verde, quase um mês depois!
Este ALGUÉM chamou-se Albano Neves e Sousa, e a melhor maneira de fechar este pequeno abraço de muita saudade é com um traço dele mesmo.

A "assinatura" de quem estava já com o coração a falhar e proibido de fumar, em 1991.

Texto de "Contos Peregrinos a Preto e Branco", 1998 de Francisco G. de Amorim