Memórias
O velho Rugby
Lisboa. 1956
No tempo em
que oficiais do exército “mandavam” na polícia.
Nessa época
tinha comprado um automóvel marca Rugby,
de 1926. Rugby era a marca usada para exportação pela Durant Motors, americana, que teve vida efémera, entre 1922 e 1931.
No mercado interno o mesmo carro era comercializado com as marcas Durant ou Star. Em 1923 nos Estados Unidos, o seu preço a público era de USD$
443! Motor de 4 cilindros, 2.2 litros by
Continental. E vendeu muito bem.
Apesar de
ter o depósito de gasolina, atrás do motor, com um pequeno furo, por onde pingava
gasolina, mesmo parado, era um carro econômico. O seu consumo era de trinta
litros! Trinta litros quer andasse ou ficasse parado! Mas se andasse, com isso
fazia duzentos ou mais quilômetros, o que, enquanto foi nosso nunca aconteceu!
Pelo menos seguidos!
A gasolina
custava menos de 4$00! Hoje, se fizermos as contas também em Escudos (1€ = 200
$ escudos) a gasolina custa SÓ 100 vezes mais! E ainda dizem que não
eram “bons rempos”!
Mais de
trinta anos de vida, e sobretudo já objeto de olhares saudosistas e de respeito,
um vintage, na terminologia dos
colecionadores. Foi descoberto numa loja de carros usados, numa rua onde eu
costumava passar, sonhando que um dia ainda pudesse concretizar a vaga
esperança de ver aparecer um carro de preço compatível com as minhas muito
fracas posses. Como sempre gostei de coisas antigas, quando vi este velhinho sobressaindo em altura a todos
os outros, logo fui atraído. Amor à primeira vista.
Igualzinho a este, mas cor cinza e sem
aquela bela mala lá atrás! Lindão!
O nosso não estava assim tão bonito, mas
era uma beleza.
Dei uma
volta ao seu redor, tudo parecia estar em perfeita ordem, sem batidas, nem ferrugem,
muito bem conservado. Até os pneus, que daquela medida já não eram fáceis de
encontrar, estavam em bom estado e os estofos também cinza, de origem, em
veludo tigrado!
Preço
afixado no pára-brisas: Esc. 2.500$00. O equivalente a cem dólares naquela
época!
Perguntei ao
vendedor:
- Isto anda?
- Anda sim.
- Pode pôr a trabalhar?
- Agora não, que está sem bateria, mas se
voltar aqui amanhã eu tenho o carro pronto para lho mostrar.
- Vende a prestações?
- Vendemos. Mil escudos de entrada e mais
seis parcelas de duzentos e cinquenta.
- Se trabalhar, e estiver tudo em ordem
fico com ele.
Fiquei
encantado. Aquele preço eu podia pagar, e mais ainda um carro antigo! Propus
sociedade a um amigo e colega de trabalho:
- Quinhentos “paus” a cada um de entrada e
depois um mês paga um a prestação, e no mês seguinte paga o outro.
- E com quem fica o carro?
- Simples. Para não haver confusões, uma
semana fica com um, outra semana com o outro. Entregamos o carro ao outro às
segundas feiras.
Feito. Fomos
ver o nosso carro novo! Estava a
funcionar. Até a buzina tinha um som estupendo. Negócio fechado. Pagámos a
entrada e podíamos ir buscá-lo no dia seguinte.
Voltámos
como previsto. Entretanto a buzina, que na véspera tocava alto e forte, quase
não se ouvia! Como era boa, e o carro muito velho, julgaram que podiam
guardá-la para outro mais novo, e tinham-na trocado por outra pior! Sempre uma
pilantradazinha pelo meio. Obrigámos a repor! Tudo tinha que sair em boa ordem.
Saímos da
loja, montados e encantados. Era um carro ótimo. Nunca deixou ninguém na
estrada, e quase todos os outros automobilistas respeitavam aquela relíquia.
Mandavam-nos até passar primeiro nos cruzamentos. Respeito pela velhice!
Um gozo
andar naquela maravilha. O banco trazeiro lá... bem atrás, as pessoas ali
podiam estender as pernas à vontade e sentiam-se comodissimas.
Uma segunda
feira o meu sócio chega ao trabalho furioso. Fora multado. Por falta da pala
quebra-sol! Duzentos escudos. Quase o valor duma prestação!
- Por esse valor devias ter oferecido o
carro ao polícia!
Estupidez de
autoridade, claro. Podia muito bem
ter advertido. Resolveu-se esse assunto pendurando no forro do tejadilho, com
dois alfinetes, uma tampa de caixa de sapatos. Por esse lado não deu mais
problema!
Uma noite
fui ao cinema com a minha mulher, nesse saudoso carro. De volta a casa, perto
da meia noite, Lisboa quase sem trânsito. Avenida da Liberdade, uma das mais
largas de Lisboa, duas faixas de cada lado, parado num sinal vermelho um carro,
novo, comum, bem no meio das duas faixas.
Chego com o
velho e alto Rugby e consigo entrar num lugarzinho, bem justo, do lado direito
do dono da avenida, o que este não
gostou. Deve ter-se sentido apertado.
Apesar do
Rugby ser um velhote, quando a luz verde apareceu consegui arrancar na frente,
os primeiros metros segui adiante, o que mais ainda irritou o outro motorista,
que logo de seguida nos ultrapassa dando uma guinada para cima de nós. Moleque.
Novo sinal vermelho. A cena repete-se e desta vez sou eu que ao arrancar me
coloco bem na frente dele. Outra molequice, mas minha. O sujeito fica bravo,
corre, ultrapassa mais uma vez e atravessa o carro na avenida para me fazer
parar. Parei, mas só depois de ter desviado e passado por ele! O cara estava
bravo, queria discutir o que não era passível de discussão: não houve acidente,
nem insultos, nem crime. Nada. Mas estava disposto a fazer valer a sua
importância, talvez por ter um carro mais novo e mais caro do que o meu que só
custara dois contos e quinhentos. E andava!
- Vamos à esquadra. (No Brasil seria a Delegacia!)
- Vamos. Ainda não tenho sono e não tenho
nada mais para fazer!
Lá vamos nós
para a tal esquadra de polícia, o zangado
na frente temendo que eu não o seguisse. Parou em frente da tal esquadra e eu
logo atrás. Entrámos, ele avança por ali dentro, vai direito ao subchefe de
serviço e diz com ar de comandante geral das forças da NATO, ignorando que
chefe de esquadra é normalmente um homem com muito calo em discussões válidas e
inválidas:
- Boa noite. Eu sou tenente.
Atrás, entro
eu.
- Boa noite. Senhor chefe, eu não sou
tenente.
- Qual é o problema? pergunta o chefe, com ar chateado,
prevendo que o problema não seria mais do que trovoada em copo de água.
- Quem sabe é o tenente. Ele
é que me convidou para vir à Esquadra - e apontei para o outro.
A coisa
ficou complicada para o idiota do tal tenente, porque não sabia do que se
queixar. Depois de meter os pés pelas mãos, dizer que eu o tinha ultrapassado,
o que era a única coisa que podia afirmar, acabou por cair no ridículo. Mais
ainda quando os polícias vêm ali parados, bem na frente da esquadra os dois
carros, sem poderem imaginar como teria sido possível uma corrida entre um velhinho e um carro novo.
- Mas o senhor quer apresentar alguma
queixa?
-!
Finalmente o
chefe, que fazia os possíveis para não rir, sugere:
- Como não há motivo para queixa, porque os
senhores não vão para casa descansar? Já passa da meia noite!
Ótima
sugestão. Fomos. O tenente deve ter descansado mal. Perdeu uma batalha que não
houve.
Eu dormi
como um justo... a rir!
Entretanto
um dia o carrão não quis pegar de jeito maneira! Desci uma rua, comprida, com
ele, tossiu, engasgou-se, mas... nada.
No dia
seguinte tive que ir para Angola, dar uma mão a um cunhado.
O Rugby,
triste, ficou a dormir no fim da rua. O meu sócio tinha saído de Lisboa para ir
trabalhar numa obra já nem sei onde.
Faltavam
pagar umas três prestações. Propus à loja onde o comprámos devolver a belezura
e não pagar o restante.
Negócio
aceite!
Mas o Rugby
ficou na memória.
De “Contos
Peregrinos a Preto e Branco” – Francisco G. de Amorim, 1998
15/04/2017
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