quarta-feira, 17 de maio de 2017

Memórias
O velho Rugby

Lisboa. 1956
No tempo em que oficiais do exército “mandavam” na polícia.
Nessa época tinha comprado um automóvel marca Rugby, de 1926. Rugby era a marca usada para exportação pela Durant Motors, americana, que teve vida efémera, entre 1922 e 1931. No mercado interno o mesmo carro era comercializado com as marcas Durant ou Star. Em 1923 nos Estados Unidos, o seu preço a público era de USD$ 443! Motor de 4 cilindros, 2.2 litros by Continental. E vendeu muito bem.
Apesar de ter o depósito de gasolina, atrás do motor, com um pequeno furo, por onde pingava gasolina, mesmo parado, era um carro econômico. O seu consumo era de trinta litros! Trinta litros quer andasse ou ficasse parado! Mas se andasse, com isso fazia duzentos ou mais quilômetros, o que, enquanto foi nosso nunca aconteceu! Pelo menos seguidos!
A gasolina custava menos de 4$00! Hoje, se fizermos as contas também em Escudos (1€ = 200 $ escudos) a gasolina custa 100 vezes mais! E ainda dizem que não eram “bons rempos”!
Mais de trinta anos de vida, e sobretudo já objeto de olhares saudosistas e de respeito, um vintage, na terminologia dos colecionadores. Foi descoberto numa loja de carros usados, numa rua onde eu costumava passar, sonhando que um dia ainda pudesse concretizar a vaga esperança de ver aparecer um carro de preço compatível com as minhas muito fracas posses. Como sempre gostei de coisas antigas, quando vi este velhinho sobressaindo em altura a todos os outros, logo fui atraído. Amor à primeira vista.


Igualzinho a este, mas cor cinza e sem aquela bela mala lá atrás! Lindão!
O nosso não estava assim tão bonito, mas era uma beleza.

Dei uma volta ao seu redor, tudo parecia estar em perfeita ordem, sem batidas, nem ferrugem, muito bem conservado. Até os pneus, que daquela medida já não eram fáceis de encontrar, estavam em bom estado e os estofos também cinza, de origem, em veludo tigrado!
Preço afixado no pára-brisas: Esc. 2.500$00. O equivalente a cem dólares naquela época!
Perguntei ao vendedor:
- Isto anda?
- Anda sim.
- Pode pôr a trabalhar?
- Agora não, que está sem bateria, mas se voltar aqui amanhã eu tenho o carro pronto para lho mostrar.
- Vende a prestações?
- Vendemos. Mil escudos de entrada e mais seis parcelas de duzentos e cinquenta.
- Se trabalhar, e estiver tudo em ordem fico com ele.
Fiquei encantado. Aquele preço eu podia pagar, e mais ainda um carro antigo! Propus sociedade a um amigo e colega de trabalho:
- Quinhentos “paus” a cada um de entrada e depois um mês paga um a prestação, e no mês seguinte paga o outro.
- E com quem fica o carro?
- Simples. Para não haver confusões, uma semana fica com um, outra semana com o outro. Entregamos o carro ao outro às segundas feiras.
Feito. Fomos ver o nosso carro novo! Estava a funcionar. Até a buzina tinha um som estupendo. Negócio fechado. Pagámos a entrada e podíamos ir buscá-lo no dia seguinte.
Voltámos como previsto. Entretanto a buzina, que na véspera tocava alto e forte, quase não se ouvia! Como era boa, e o carro muito velho, julgaram que podiam guardá-la para outro mais novo, e tinham-na trocado por outra pior! Sempre uma pilantradazinha pelo meio. Obrigámos a repor! Tudo tinha que sair em boa ordem.
Saímos da loja, montados e encantados. Era um carro ótimo. Nunca deixou ninguém na estrada, e quase todos os outros automobilistas respeitavam aquela relíquia. Mandavam-nos até passar primeiro nos cruzamentos. Respeito pela velhice!
Um gozo andar naquela maravilha. O banco trazeiro lá... bem atrás, as pessoas ali podiam estender as pernas à vontade e sentiam-se comodissimas.
Uma segunda feira o meu sócio chega ao trabalho furioso. Fora multado. Por falta da pala quebra-sol! Duzentos escudos. Quase o valor duma prestação!
- Por esse valor devias ter oferecido o carro ao polícia!
Estupidez de autoridade, claro. Podia muito bem ter advertido. Resolveu-se esse assunto pendurando no forro do tejadilho, com dois alfinetes, uma tampa de caixa de sapatos. Por esse lado não deu mais problema!
Uma noite fui ao cinema com a minha mulher, nesse saudoso carro. De volta a casa, perto da meia noite, Lisboa quase sem trânsito. Avenida da Liberdade, uma das mais largas de Lisboa, duas faixas de cada lado, parado num sinal vermelho um carro, novo, comum, bem no meio das duas faixas.
Chego com o velho e alto Rugby e consigo entrar num lugarzinho, bem justo, do lado direito do dono da avenida, o que este não gostou. Deve ter-se sentido apertado.
Apesar do Rugby ser um velhote, quando a luz verde apareceu consegui arrancar na frente, os primeiros metros segui adiante, o que mais ainda irritou o outro motorista, que logo de seguida nos ultrapassa dando uma guinada para cima de nós. Moleque. Novo sinal vermelho. A cena repete-se e desta vez sou eu que ao arrancar me coloco bem na frente dele. Outra molequice, mas minha. O sujeito fica bravo, corre, ultrapassa mais uma vez e atravessa o carro na avenida para me fazer parar. Parei, mas só depois de ter desviado e passado por ele! O cara estava bravo, queria discutir o que não era passível de discussão: não houve acidente, nem insultos, nem crime. Nada. Mas estava disposto a fazer valer a sua importância, talvez por ter um carro mais novo e mais caro do que o meu que só custara dois contos e quinhentos. E andava!
- Vamos à esquadra. (No Brasil seria a Delegacia!)
- Vamos. Ainda não tenho sono e não tenho nada mais para fazer!
Lá vamos nós para a tal esquadra de polícia, o zangado na frente temendo que eu não o seguisse. Parou em frente da tal esquadra e eu logo atrás. Entrámos, ele avança por ali dentro, vai direito ao subchefe de serviço e diz com ar de comandante geral das forças da NATO, ignorando que chefe de esquadra é normalmente um homem com muito calo em discussões válidas e inválidas:
- Boa noite. Eu sou tenente.
Atrás, entro eu.
- Boa noite. Senhor chefe, eu não sou tenente.
- Qual é o problema? pergunta o chefe, com ar chateado, prevendo que o problema não seria mais do que trovoada em copo de água.
- Quem sabe é o tenente. Ele é que me convidou para vir à Esquadra - e apontei para o outro.
A coisa ficou complicada para o idiota do tal tenente, porque não sabia do que se queixar. Depois de meter os pés pelas mãos, dizer que eu o tinha ultrapassado, o que era a única coisa que podia afirmar, acabou por cair no ridículo. Mais ainda quando os polícias vêm ali parados, bem na frente da esquadra os dois carros, sem poderem imaginar como teria sido possível uma corrida entre um velhinho e um carro novo.
- Mas o senhor quer apresentar alguma queixa?
-!
Finalmente o chefe, que fazia os possíveis para não rir, sugere:
- Como não há motivo para queixa, porque os senhores não vão para casa descansar? Já passa da meia noite!
Ótima sugestão. Fomos. O tenente deve ter descansado mal. Perdeu uma batalha que não houve.
Eu dormi como um justo... a rir!

Entretanto um dia o carrão não quis pegar de jeito maneira! Desci uma rua, comprida, com ele, tossiu, engasgou-se, mas... nada.
No dia seguinte tive que ir para Angola, dar uma mão a um cunhado.
O Rugby, triste, ficou a dormir no fim da rua. O meu sócio tinha saído de Lisboa para ir trabalhar numa obra já nem sei onde.
Faltavam pagar umas três prestações. Propus à loja onde o comprámos devolver a belezura e não pagar o restante.
Negócio aceite!
Mas o Rugby ficou na memória.

De “Contos Peregrinos a Preto e Branco” – Francisco G. de Amorim, 1998


15/04/2017

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