segunda-feira, 5 de junho de 2017


Um oficial em Moçambique - 3
Salvo pela Monogamia

M’cuépêre-muno, senhor de Mihéhé, devia medir 1m, 90 e pezar na balança os seus 110 kilos.
Em 1904 andaria pelos 35 anos e cogno­minava-se a si próprio, alternadamente, de “Macua-muno” e de “Macuana-muno”, o que queria dizer rei dos macuas ou rei da Macuana. E, não exagerava muito porque de facto era o mais poderoso régulo de toda aquela vasta região, quase como Portugal in­teiro, exigindo e recebendo preito de vassa­lagem em larguíssimo círculo.
Nunca tinha visto brancos: há 5 anos* todo o sertão entre a Zambézia e os territó­rios de Cabo Delgado estava inteiramente por penetrar. Mas mandara enviados a Moçambique, um deles fora filado, alistado, e em três anos de serviço militar nada volun­tário, observara muito: de regresso à terra havia sido nomeado (como diremos?) almo­xarife-encarregado-do-depósito-de-material-de-guerra, e era o grande informador de M’cuépêre no tocante aos usos e costumes, especialmente militares, desses fenomenais homens brancos, dos Alungo, isto é, dos portugueses.
Ora começou chegando a M’cuépêre o boato de que em Angoche estava um Gavana (capitão-mor) que andava pelo mato, umas vezes com gente de guerra em expedições militares, mas as mais delas a passear assim mesmo e sozinho.
A princípio não queria crer, e com razão porque o caso não tinha precedentes conhecidos em recordação de velho ou sequer por tradição mais antiga. Mas como os boatos se acentuassem mandou verificar e certificou-se.
Tanto bastou para logo arder em desejos de ver o branco. E informado de que este se dava com o seu amigo Mussa-Piri, a quem mesmo reintegrara no xequado de Sangage, serviu-se do velho xeque como intermediário para expedir um convite de visita.
O emissário voltou logo com uma sur­preendente aceitação e com a notícia de que o Gavana não tardaria meia-lua a chegar. E foi uma azáfama de preparativos.
Na raia da linda terra de Mihéhê, logo ao desembocar da densíssima floresta de M’lay, o branco teve a surpresa de se ver esperado pelo chefe do estado maior do grande régulo a desejar-lhe as boas vindas e a pôr-se à sua dis­posição como uma espécie de oficial às ordens.
Chegados à povoação, o Gavana foi enca­minhado para uma grande palhota, nova em folha e retangular, com telhado de duas águas, construída de propósito, à imitação das casas de Moçambique*, única no seu gé­nero, dotada de quintal privativo e rodeada de palhotas redondas para a sua gente e montada.
M'cuépére-muno não estava presente. Mas o seu chefe do estado maior, renovando as boas vindas em nome do amo, explicou que o régulo presumia haver o branco chegado fatigado, após dez dias de marcha e seis horas na sela aquela manhã, pelo que não im­portunava logo ao apear; que comesse e descansasse em sossego, e o mandasse chamar quando lhe aprouvesse. (Andou entre 250 e 300 quilômetros para o interior!)
Luiz XV não teria procedido com maior requinte.
Juntando os atos ás palavras, o favorito do régulo fez um sinal: e logo começaram desfilando em frente do Gavana, grupos de escravos ajoujados com arroz, farinhas de milho e de mandioca, frutas, cabras, galinhas, ovos, peixe do rio, toda a ucharia local. Chegavam, ajoelhavam, arriavam os presentes, batiam as palmas três vezes seguidas, e seguiam ao seu destino.
O terreiro da povoação em cuja orla o branco fora alojado, devia andar pelo tamanho do Terreiro do Paço, em Lisboa (uns 20.000 m2 !). No meio uma pa­lhota circular enorme, erguendo a sua cúpula à altura de um segundo andar, era a do régulo; na periferia talvez meio-cento de outras palhotas pequenas, e por detrás des­tas, em toda a volta, aquela bem conhecida faixa de mato, densa, mas de pequena lar­gura e de terra remexida, cujo letreiro, se o tivesse, poderia limitar-se às simbólicas ini­ciais: W.C. Para lá desse mato as machambas (hortas) com mandioca de 4 metros de altura e milho capaz de esconder um lanceiro montado.
À primeira indicação do branco, M’cuépêre-muno compareceu logo, com imensa pompa, acompanhado por todos os seus di­gnitários e, também, por meia dúzia de moleques e outras tantas molecas já destina­dos, desde a mais tenra idade, a acompa­nhar para o outro mundo o seu senhor quan­do lhe findasse a preciosa vida.
Cumprimentos, apresentações, discursos, seguiram-se até, em plena Macuana, num pro­tocolo nada dissemelhante daquele que rege os encontros de chefes de estado na Eu­ropa.      
A salva de artilharia que o “almoxarife” muito recomendara a M’cuépêre-muno, pelas recordações do que observara na fortaleza de S. Sebastião em Moçambique, sofreu percalço e ficou limitada a um só tiro. Foi disparada por uma daquelas pequenas peças que ainda a esse tempo artilhavam os pangaios mujojos de Mascate; mas como o «almoxa­rife» a atacara de pólvora até à boca, o recuo excedeu a resistência do velho re­paro que todo se esbandalhou ao dar en­contro a um morro de muchém, formiga térmite.


Verdadeiro sucesso de novidade, para o régulo e para todo o seu povo, tiveram três cousas: a montada (velhíssimo macho que fizera parte de uma expedição enviada da metrópole 3 anos antes), a Browning, que despejava 8 tiros com um só puxar de gati­lho, e os garfos com que o branco segurava os alimentos sem precisar tocar-lhe com os dedos.
A própria pessoa do branco impres­sionou aquela gente, como não podia deixar de ser, que nunca tal vira. Mas as damas não se agradaram e bem lho fizeram sentir com remoques—“olha como ele é feio, que cor de pele, parece uma galinha depenada” - quando, escondidas, o examinaram da outra margem, na ocasião em que ele, despreve­nido, tomava banho no rio, com agua só pelo joelho não aparecesse algum jacaré.
Os motivos do convite de M’cuépêre-muno tinham sido múltiplos e complexos, como sempre acontece com as determinantes da ação humana, na Europa como na África adusta. Os objetivos políticos, comerciais e militares, transpareceram logo às primeiras palavras e foram tratados adequadamente, primeiro em conferências secretas e depois em assembleias magnas, durante os quatro dias da visita. Mas o branco pressentia que no espírito de M’cuépêre-muno ainda havia mais um propósito que até então não fora desvendado: e maravilhava-se de qual seria.
A revelação veio na última tarde, à hora do cocktail que foi substituído por uma ópti­ma cerveja de milho fino (pôbe) tomada na grande palhota do régulo, e importou na confidência dos grandes apuros em que vivia aquele homenzarrão, senhor incontestado de toda a Macuana.
O caso, realmente, apresentava-se tão difícil que era insolúvel. M’cuépêre-muno tinha 39 mulheres, e este batalhão de beldades tor­nava-lhe a vida um inferno. Não fora por sua culpa nem gosto que tanto bigamara. Obrigações do cargo. Para melhor firmarem com ele tratados de paz e amizade, todos os outros régulos das redondezas o haviam que­rido para genro, e o dilema havia-lhe sido posto diplomaticamente numerosíssimas ve­zes: ou paz para o seu povo e mais uma mulher às costas, ou a sua independência conjugal e o país a ferro e a fogo. Como bom pai da sua gente submetera-se, sucessivamente: eram já 39 - e tinha motivos para recear que ainda viessem a ser mais...
“Não poderia o branco valer-lhe? Levar-lhas quase todas, deixando-lhe só duas ou três? Podiam combinar aquilo particular­mente entre eles e anunciar depois pelo ser­tão inteiro que era “ordem do Rei” - à qual todos tinham de submeter-se, a começar pelo Gavana e por ele próprio M’cuépêre-muno”. 
“Anda, dize que sim. Pois não és tu muana-a-rey o filho do Rei? Podes falar em nome de teu pai.”
Ao Gavana valeu naquela conjuntura o “almoxarife” de M’cuépêre-muno, o tal que durante três anos serviu como soldado em Moçambique. Fê-lo vir, e sem lhe dizer por­quê obrigou-o a responder à pergunta clara e categórica – “se vira na fortaleza algum branco casado com mais de uma mulher”. O “almoxarife”, que chegara a impedido do coronel-comandante da praça de S. Sebastião, na Ilha de Moçambique, e que por isso observara de perto o viver conjugal dos brancos, disse a ver­dade, afirmou e jurou a monogamia euro­peia.
assim aquela primeira visita não con­cluiu por um desaguisado.


* Refere-se a 1899.
** Da Ilha de Moçambique, de duas águas. As do interior, Norte, de Moçambique eram circulares.

Fonte: “Escola de Mouzinho” – Eduardo Lupi, Lisboa - 1929

21/05/2017


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