Um oficial em Moçambique - 3
Salvo pela Monogamia
M’cuépêre-muno, senhor de Mihéhé, devia medir 1m,
90 e pezar na balança os seus 110 kilos.
Em
1904 andaria pelos 35 anos e cognominava-se a si próprio, alternadamente, de
“Macua-muno” e de “Macuana-muno”, o que queria dizer rei dos macuas ou rei da
Macuana. E, não
exagerava muito porque de facto era o mais poderoso régulo de toda aquela vasta
região, quase como Portugal inteiro, exigindo e recebendo preito de vassalagem
em larguíssimo círculo.
Nunca
tinha visto brancos: há 5 anos* todo o sertão entre a Zambézia e os territórios
de Cabo Delgado estava inteiramente por penetrar. Mas mandara enviados a
Moçambique, um deles fora filado, alistado, e em três anos de serviço militar
nada voluntário, observara muito: de regresso à terra havia sido nomeado (como
diremos?) almoxarife-encarregado-do-depósito-de-material-de-guerra, e era o
grande informador de M’cuépêre no tocante aos usos e costumes, especialmente
militares, desses fenomenais homens brancos, dos Alungo, isto é, dos
portugueses.
Ora
começou chegando a M’cuépêre o boato de que em Angoche estava um Gavana (capitão-mor) que andava pelo
mato, umas vezes com gente de guerra em expedições militares, mas as mais delas
a passear assim mesmo e sozinho.
A
princípio não queria crer, e com razão porque o caso não tinha precedentes
conhecidos em recordação de velho ou sequer por tradição mais antiga. Mas como
os boatos se acentuassem mandou verificar e certificou-se.
Tanto
bastou para logo arder em desejos de ver o branco. E informado de que este se
dava com o seu amigo Mussa-Piri, a quem mesmo reintegrara no xequado de
Sangage, serviu-se do velho xeque como intermediário para expedir um convite de
visita.
O
emissário voltou logo com uma surpreendente aceitação e com a notícia de que o
Gavana não tardaria meia-lua a chegar. E foi uma azáfama de preparativos.
Na
raia da linda terra de Mihéhê, logo ao desembocar da densíssima floresta de
M’lay, o branco teve a surpresa de se ver esperado pelo chefe do estado maior
do grande régulo a desejar-lhe as boas vindas e a pôr-se à sua disposição como
uma espécie de oficial às ordens.
Chegados
à povoação, o Gavana foi encaminhado para uma grande palhota, nova em folha e
retangular, com telhado de duas águas, construída de propósito, à imitação das
casas de Moçambique*, única no
seu género, dotada de quintal privativo e rodeada de palhotas redondas para a
sua gente e montada.
M'cuépére-muno
não estava presente. Mas o seu chefe do estado maior, renovando as boas vindas
em nome do amo, explicou que o régulo presumia haver o branco chegado fatigado,
após dez dias de marcha e seis horas na sela aquela manhã, pelo que não importunava
logo ao apear; que comesse e descansasse em sossego, e o mandasse chamar quando
lhe aprouvesse. (Andou entre 250 e 300 quilômetros para o interior!)
Luiz
XV não teria procedido com maior requinte.
Juntando
os atos ás palavras, o favorito do régulo fez um sinal: e logo começaram
desfilando em frente do Gavana, grupos de escravos ajoujados com arroz,
farinhas de milho e de mandioca, frutas, cabras, galinhas, ovos, peixe do rio,
toda a ucharia local. Chegavam, ajoelhavam, arriavam os presentes, batiam as
palmas três vezes seguidas, e seguiam ao seu destino.
O
terreiro da povoação em cuja orla o branco fora alojado, devia andar pelo
tamanho do Terreiro do Paço, em Lisboa (uns 20.000 m2 !). No meio uma palhota
circular enorme, erguendo a sua cúpula à altura de um segundo andar, era a do
régulo; na periferia talvez meio-cento de outras palhotas pequenas, e por
detrás destas, em toda a volta, aquela bem conhecida faixa de mato, densa, mas
de pequena largura e de terra remexida, cujo letreiro, se o tivesse, poderia
limitar-se às simbólicas iniciais: W.C. Para lá desse mato as machambas
(hortas) com mandioca de 4 metros de altura e milho capaz de esconder um
lanceiro montado.
À
primeira indicação do branco, M’cuépêre-muno compareceu logo, com imensa pompa,
acompanhado por todos os seus dignitários e, também, por meia dúzia de
moleques e outras tantas molecas já destinados, desde a mais tenra idade, a
acompanhar para o outro mundo o seu senhor quando lhe findasse a preciosa
vida.
Cumprimentos,
apresentações, discursos, seguiram-se até, em plena Macuana, num protocolo
nada dissemelhante daquele que rege os encontros de chefes de estado na Europa.
A
salva de artilharia que o “almoxarife” muito recomendara a M’cuépêre-muno,
pelas recordações do que observara na fortaleza de S. Sebastião em Moçambique,
sofreu percalço e ficou limitada a um só tiro. Foi disparada por uma daquelas
pequenas peças que ainda a esse tempo artilhavam os pangaios
mujojos de Mascate; mas como o «almoxarife» a atacara de pólvora até à
boca, o recuo excedeu a resistência do velho reparo que todo se esbandalhou ao
dar encontro a um morro de
muchém, formiga térmite.
Verdadeiro
sucesso de novidade, para o régulo e para todo o seu povo, tiveram três cousas:
a montada (velhíssimo macho que fizera parte de uma expedição enviada da
metrópole 3 anos antes), a Browning, que despejava 8 tiros com um só puxar de
gatilho, e os garfos com que o branco segurava os alimentos sem precisar
tocar-lhe com os dedos.
A
própria pessoa do branco impressionou aquela gente, como não podia deixar de
ser, que nunca tal vira. Mas as damas não se agradaram e bem lho fizeram sentir
com remoques—“olha como ele é feio, que cor de pele, parece uma galinha
depenada” - quando, escondidas, o examinaram da outra margem, na ocasião em que
ele, desprevenido, tomava banho no rio, com agua só pelo joelho não aparecesse
algum jacaré.
Os
motivos do convite de M’cuépêre-muno tinham sido múltiplos e complexos, como
sempre acontece com as determinantes da ação humana, na Europa como na África
adusta. Os objetivos políticos, comerciais e militares, transpareceram logo às
primeiras palavras e foram tratados adequadamente, primeiro em conferências
secretas e depois em assembleias magnas, durante os quatro dias da visita. Mas
o branco pressentia que no espírito de M’cuépêre-muno ainda havia mais um
propósito que até então não fora desvendado: e maravilhava-se de qual seria.
A
revelação veio na última tarde, à hora do cocktail que foi substituído
por uma óptima cerveja de milho fino (pôbe) tomada na grande palhota do
régulo, e importou na confidência dos grandes apuros em que vivia aquele
homenzarrão, senhor incontestado de toda a Macuana.
O
caso, realmente, apresentava-se tão difícil que era insolúvel. M’cuépêre-muno
tinha 39 mulheres, e este batalhão de beldades tornava-lhe a vida um inferno.
Não fora por sua culpa nem gosto que tanto bigamara. Obrigações do cargo. Para
melhor firmarem com ele tratados de paz e amizade, todos os outros régulos das
redondezas o haviam querido para genro, e o dilema havia-lhe sido posto
diplomaticamente numerosíssimas vezes: ou paz para o seu povo e mais uma
mulher às costas, ou a sua independência conjugal e o país a ferro e a fogo.
Como bom pai da sua gente submetera-se, sucessivamente: eram já 39 - e
tinha motivos para recear que ainda viessem a ser mais...
“Não poderia o branco
valer-lhe? Levar-lhas quase todas, deixando-lhe só duas ou três? Podiam
combinar aquilo particularmente entre eles
e anunciar depois pelo sertão inteiro que era “ordem do Rei” - à qual todos
tinham de submeter-se, a começar pelo Gavana e por ele próprio M’cuépêre-muno”.
“Anda, dize que sim. Pois
não és tu muana-a-rey o filho
do Rei? Podes falar em nome de teu pai.”
Ao
Gavana valeu naquela conjuntura
o “almoxarife” de M’cuépêre-muno, o tal que durante três anos serviu como
soldado em Moçambique. Fê-lo vir, e sem lhe dizer porquê obrigou-o a responder
à pergunta clara e categórica – “se vira na fortaleza algum branco casado com
mais de uma mulher”. O “almoxarife”, que chegara a impedido do coronel-comandante
da praça de S. Sebastião, na Ilha de Moçambique, e que por isso observara de
perto o viver conjugal dos brancos, disse a verdade, afirmou e jurou a
monogamia europeia.
Só assim aquela primeira visita não concluiu por um
desaguisado.
* Refere-se a 1899.
** Da Ilha de Moçambique, de duas águas. As do interior, Norte, de
Moçambique eram circulares.
Fonte: “Escola de Mouzinho” – Eduardo Lupi,
Lisboa - 1929
21/05/2017
Assistir a 39 devia ser obra...!
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