segunda-feira, 31 de maio de 2010

Três histórias de Moçambique


Escrito em 2001. Em Moçambique.

A Sudoeste de Maputo, Boane, e dali para o Sul mais uns 15 quilometros está a aldeia da Massaca. Mais um pouco e é a Casa do Gaiato.
Numa das deambulações pela Massaca, para captar em foto algumas imagens do povo, passei junto a uma casa onde estava uma mulher sentada à sombra a peneirar farinha. Ao lado um filhote de uns 2 anos. Disse-lhes adeus, sorriram e corresponderam, descontraídos, com muitos outros adeus! Segui em frente. O filhote levantou-se e veio até à esquina da casa sempre a olhar para mim. Parei, para ver por onde seguir, qual rua escolher, olhei para trás e lá estava ele, ali a uns escassos metros. Disse-lhe adeus de novo. Sorriu e saiu a correr para mim! Quando chegou ao meu lado agarrou logo na minha mão. A mãe levantou-se veio atrás e quando o viu ao meu lado chamou-o: Zé! O tal de Zé disse logo “Não” e não largava a minha mão, com uma cara muito bem disposta! Devia querer ir passear comigo! A mãe tirou para fora um recheado peitão a ver se ele se interessava pela comida. “Não”, sempre com uma cara divertida, mas com a certeza de saber que naquele momento não era esse o programa que o atraía. A mãe aproximou-se (peitão já recolhido dentro da blusa, como é óbvio), ele largou a minha mão e fugiu. Lá foi ela atrás, apanhou-o, deu-lhe a mão, e quando os dois voltavam da grande “fuga”, uns cinco ou seis metros, fotografei-os. Vai aqui a foto deles. Muito simpático “O Zé”!


O Zé!


* * *

O eclipse do sol

21 de Junho de 2001, o eclipse do sol, total nalguns lugares no centro de Moçambique, Zâmbia e Angola. Um eclipse do sol é sempre um espetáculo interessante, não só pela raridade, mas sobretudo quanto é total. A Zâmbia tirou grande proveito turístico do evento, Angola, a muito custo conseguiu reunir um pequeno número de cientistas, e Moçambique? Podia ter ficado quieto, mas...
Moçambique soltou um alarme de tal forma aterrorizante sobre os efeitos do eclipse, que o povo, não só o povo simples do interior, mas o “evoluído” da capital, ficou à espera de nova catástrofe! Habituado a catástrofes – secas, inundações, guerra, pragas de insetos, secas, inundações, ... – agora chegava mais este: o eclipse do sol.
Um dos jornais publica, página inteira, um artigo dedicado ao assunto com quase duas semanas de antecedência, e com a manchete: Cuidado com o eclipse, as pessoas podem ficar cegas! Entrevista aos Drº (sic) Rogério Utui, especialista em Física Nuclear e Cardoso Homem (do Aeroclube). Começa assim o artigo: “Isto é perigoso. As pessoas podem ficar cegas.” Outro jornal publicou que “mais cego é quem não quer ver e que existem dados segundo os quais no dia do eclipse será instalada uma barraca em Quelimane (?) para os curandeiros porem à prova dos turistas os seus dotes em matéria de medicina tradicional em trabalho a ser feito em conjunto com a AMETRAMO (Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique). Isto é ridículo. Mais adiante: “É bonito sim senhor. O fenómeno é espectacular mas as pessoas devem resistir à tentação. O País pode cegar. ... fica um bocadinho frio, os animais ficam baralhados, os galos cantam. Mas deixemo-nos de rodeios. O eclipse para as condições nossas é um risco à saúde pública. Com ele pode aparecer um “boom” de doenças de vista, o que logo à priori poderia significar ter alunos sem estudar, e por exemplo uma povoação cega.”
E seguiu por aí fora a quantidade de artigos nos jornais. Até a Administração de um Distrito distribuiu um Aviso: “Avisa-se à população em geral e as Direcções das Escolas, que no dia 21 de Junho do ano em curso haverá eclipse do sol durante algumas horas a observância da Luz solar nesse dia será perigoso. Se insistir poderá perder a vista ou ter problemas mais complicados com a vista ou desaparecimento total da retina. Apela-se a compreensão que será o bem da saúde.”(sic)
O governo chegou a antever a possibilidade de, ainda mais uma vez, pedir ajuda internacional, para atender aos flagelados do eclipse. O drama era a possibilidade de cegueira! “Se não se usarem óculos próprios é alto o risco de cegueira!”
Ninguém disse nem como, nem porquê se corria esse risco, que é muito maior sem eclipse, com o sol na sua plenitude! Em qualquer dia do ano olhar demoradamente para o sol pode causar danos, irreversíveis, aos olhos, é verdade. Mas quem aguenta abrir o olhão e encarar de frente o astro rei? Nem com óculos escuros que para pouco mais servem do que enfeitar a cabeça de meninas e meninos que se julgam assim mais... E partem, as rádios e Tvs a anunciar: “Cuidado com o eclipse. NESSE dia não olhe para o sol. Pode cegar!” “Não SAIA DE CASA sem óculos especiais!”, e outras barbaridades na mesma tónica!
O governo, face ao implacável e imparável avanço desta nova calamidade, decreta tolerância de ponto. (Atenção: foi tolerância de ponto só para os nacionais! Os estrangeiros, era lá com eles, e quem sabe se estariam equipados com alguma tecnologia de ponta que os preservasse da desgraça!) As mães avisam que nesse dia não poderão ir trabalhar porque têm que segurar os filhos dentro de casa, o pastor aflige-se porque o gado está no pasto e não tem como recolhê-lo e abrigá-lo dos apocalípticos efeitos do eclipse. O país aterroriza-se.
Houve até quem, recolhido com a família dentro da sua palhota, mas através do seu telefone celular consultasse a emissora de rádio sobre a capacidade de proteção do tecto de palha! Na capital, no Maputo, a partir do meio dia (o eclipse começava às 14h e 30m) as ruas desertificam-se, as pessoas recolhem a casa.
Se aqui estivesse o Astérix, ao ouvir todo este alarmismo, deveria pensar que desta vez é que o céu lhe ia cair em cima da cabeça!
Passou o eclipse. Foi interessante. Reportaram-se as autoridades administrativas: “Não aconteceu nem um só caso de cegueira. Nem nas pessoas nem nos bois!”
Moçambique perdeu a oportunidade de pedir nova ajuda internacional!

* * *

Quem são os corruptos ?

Quando a fome se repete, dia após dia, com a mesma regularidade com que o sol nasce e se esconde, também todos os dias, ininterruptamente, não parece redundância falar em corrupção.
No Brasil já nem adianta. Mesmo quando aparece num Editorial de um jornal, não de bairro, mas larga tiragem, que um empresa contratada para avaliar o volume de roubo que se pratica no país aos cofres públicos conclui que ultrapassa R$ 100 bilhões de reais, mais de quatrocentos milhões de dólares, e tudo acaba ficando por isso mesmo. Pobre Brasil rico!
Afinal o que é, mesmo, corrupção? Qualquer dicionário responderá a esta pergunta com ato ou efeito de corromper, estragar, infectar, desnaturar, tornar podre, perverter, etc. Quem não sabe o que isto é ou não conhece, pelo menos de nome, um corrupto? Quem não hesitou já sobre o seu próprio preço, a sua fronteira entre honestidade e podridão? Isto por aqui, por Moçambique, é, no mínimo, curioso. Moçambique, por muitos fatores é um país pobre, arrasado pela política, pela guerra e pelas intempéries naturais, que teimam em se alternar entre secas e inundações e pragas. Algumas de violência incrível. Afluem ajudas de todos os cantos do mundo, inclusive de países que estão por sua vez a ser ajudados. É assim a solidariedade humana. Quando se tem pouco parece mais fácil dividir com quem nada tem.
Mas quem conhece África já sabe que quando um animal agoniza, os abutres, os chamados urubus no Brasil, ficam voando, lá no alto, em círculos, sobre a preposta refeição. E, muitas vezes, ainda o moribundo tem uma réstia de vida, já os carniceiros começam a devorá-lo. Não é só em África, não. Abutres, urubus, há-os em toda a parte do mundo. Como neste país tudo, ou quase tudo, está por fazer, o que tem de urubu espreitando é inacreditável.
Amavelmente aparecem propostas de ofertas, doações, para ajudar à reconstrução. Vagueiam pelo país personagens de ar tétrico, quase diria shakesperiano não fosse o receio de ofender o grande dramaturgo, à caça de projetos. Desembarcam de muitos países, e vêem oferecer projetos, dádivas. Uns oferecem voluntários, normalmente desempregados nas suas terras, recebendo seguro de desemprego e voluntariando-se para em África ganhar uns milhares de dólares, ainda com a vantagem de depois poderem propor-se para uma tese de mestrado! Outros oferecem equipamentos agrícolas, industriais, de transporte, o que for. Vendedores. Ferozes vendedores, porque nem é o comprador último que paga! Estranho isto.
A estrutura judiciária do país, pobre, repetir não faz mal nem desonra, necessitava de cinco mil dólares para custear um seminário, duração de cinco dias, para atualização de conhecimentos e normas para juízes. Logo surgiu um desses urubus que se prontificou a ajudar. Voou para o alto, foi fazer o seu estudo e voltou com a proposta: oferta de cem mil dólares! O responsável, moçambicano, mentalidade de justiça, antes de responder ou aceitar, quis saber para que seriam os noventa e cinco mil remanescentes. Controle do projeto, técnicos estrangeiros para acompanhar o mesmo, viagens Europa-Moçambique e volta, hospedagem, viatura às ordens, etc.! Havia que satisfazer os urubus do controle! Não aceitou, o juiz. Ele sabe que há corrupção no país. Mas não aceitou a amável oferta nem o paternalismo do controle.
Outra proposta simpática. Um outro país europeu fez saber que queria fazer um donativo. Uma entidade, de intocável honestidade e capacidade, fez um estudo, detalhado, sério, e pediu, para desenvolvimento na área rural, USD$ 120.000. Os ofertantes, retiraram, voaram alto e para longe (olha os urubus!), estudaram e refizeram o projeto, e alguns meses depois de “exaustivo trabalho”, a refazer o feito, voltaram, pelo ar, em 1ª classe (urubu não viaja em classe económica), com a proposta da oferta definitiva. Era só assinar o contrato: valor USD$ 500.000, para se gastarem, na ajuda real, USD$ 120.000.
Incluía agora o projeto dois técnicos europeus, impunha o regresso de dois ex expatriados, casa mobiliada para cada um, carro novo, idem, salário de alguns milhares de dólares, idem, ajudas de custo, idem, viagens ao país de origem a cada seis meses (cegonha, prima do urubu, só viaja uma vez por ano!), e etc., e etc., e etc.
Resultado: o projeto não se executou porque a entidade, que todos os dias, há uma dezena de anos, está ao lado do povo a trabalhar, de graça, não aceitou participar no festim dos carniceiros!
É assim, em Moçambique. Fica no ar a pergunta: Afinal, quem são os corruptos?

sexta-feira, 28 de maio de 2010

VISITA AOS CONGOS - 2-

(continuação)


Já de volta a Brazzaville, onde reinava a tranqüilidade, a seguir ao jantar no hotel, noite escura, decidi ir dar uma volta a pé. Depois de atravessar aquele pedaço de estrada ou caminho deserto em que me cruzei somente com meia dúzia de pessoas que me ignoraram, cheguei a um cruzamento onde havia uma espécie de boate, bar, clube. Povo. Aproximo-me, o que espanta aquela gente, talvez porque ali nunca tivesse entrado europeu algum, e pergunto se posso entrar e tomar uma cerveja.

- Bien sur! Porquois pas?

Lá dentro, muita conversa e muita dança. Dizer que a dança estava animada seria pleonasmo porque em África dança e música são a vida daquela gente. Em pé, no bar, sob o olhar curioso dos presentes, fui apreciando o ambiente e bebendo devagar a minha cerveja. Não tardou que me viessem perguntar o que eu fazia ali naquele lugar, parecendo perdido.

- Nada.

De fato tudo quanto fazia era passear um pouco. E ver. Ver o que se passava à minha volta. Acabei por dizer quem era, onde vivia, o que estava a fazer no Congo, como era a vida em Angola, e não tardou que tivesse razoável auditório à minha volta. Eu era, naquele meio, a avis rara. Conversámos, bebemos mais uma ou outra cerveja e quando achei que era hora de me ir deitar, a conta estava paga!

Esta era a África que eu conheci e amei.

Como a viagem ainda teve algumas peripécias mais, vamos seguir. Domingo, dez horas da manhã no aeroporto para apanhar o vôo para Pointe Noire.

- O vôo está atrasado, porque só sai depois que chegar o vôo de Paris.

- Quanto tempo de atraso?

Não sabiam. Comprei um livro qualquer e sentei-me ali, a ler e olhar para um pequeno avião de vôo à vela, que descia daqueles céus com uma calma impressionante. Sempre me atraiu o vôo à vela. E nunca fiz!

Encurtando a história, o vôo de Paris chegou com seis horas de atraso! Seis. Deu para ler o livro todo e ainda tive tempo de o oferecer à moça da companhia aérea a quem entretanto perguntei cem vezes se ainda faltava muito para sair!

Finalmente em Pointe Noire a estadia prevista era de dois dias. O suficiente para contatar os possíveis clientes, e a saída de regresso a Luanda prevista para quarta feira seguinte às nove e meia da manhã. O aeroporto era a cinco minutos do hotel, e bastava lá estar com meia hora de antecedência porque normalmente não embarcava vivalma! No dia do regresso saí cedo do hotel para ir comprar alguma recordação para os filhos, já que em Pointe Noire os artigos de importação, sobretudo franceses quase não pagavam direitos alfandegários, e quando voltei bem antes das nove horas o gerente do hotel, aflito:

- Telefonaram do aeroporto a dizer que mudou o horário do vôo e vai sair uma hora mais cedo!

- Meu Deus! Está na hora.

Peguei nas malas e corri para um taxi. Quando este começa a andar, por cima de nós passou o avião! Perdido! Depois de ter esperado seis horas em Luanda e mais seis em Brazzaville, agora perdia o vôo, único semanal, porque adiantaram, sem me dar conhecimento, o horário! Fiquei com uma raiva...

Esperar uma semana em Pointe Noire, terra de mais ou menos nada... não era programa que me interessasse. Fui procurar saber como sair dali.

- Há sempre carros tanques de gasoil (óleo diesel) a sair daqui para Cabinda. Procure informar-se ali na Mobil.

Por sorte ia sair um, que se prontificou a levar-me, avisando que parecendo ser perto, em linha reta talvez menos de cinquenta quilómetros, até à fronteira de Cabinda, a estrada daí para a frente seguia pelo interior, pela floresta, e naquela época, Abril, de muita chuva, o tempo de viagem seria o que fosse! Antes um dia de viagem de caminhão do que uma semana em Pointe Noire.

Lá fomos. Dia seguinte, de manhã, bem cedo, já muitas horas de viagem no lombo, estrada esburacada e conforto de caminhão, a uns escassos trinta quilómetros de Lândana, a que houve pretensões de chamar Vila Guilherme Capelo em homenagem ao oficial da marinha portuguesa que assinou pelo rei de Portugal o Tratado de Simulambuco, e que já se chamou Cacongo, as chuvas tinham cortado a passagem no meio da floresta.

Carros querendo seguir para o interior, atravessar o lago que se formara, e nós na nossa “margem” sem podermos passar para a costa.

Mas valeu a pena atravessar, mais uma vez a floresta do Maiombe! É uma beleza, imponente.

Agradeci muito a boleia que me deram, arregacei as calças, mala e sapatos na mão, atravessei o lamacento lago e convenci um outro caminhão a regressar a Lândana, onde apanhei um taxi que, voando me levou a Cabinda. No último minuto, já o avião a fechar as portas, consegui entrar no vôo da DTA para casa. Foi uma odisséia e tanto.

Mas África tinha destas coisas (e muitas outras) que são páginas inesquecíveis da nossa história, e muitas delas, apesar da idade, gostaria de repetir.

Do livro “Loisas da Arca do Velho”, inédito, 2001

terça-feira, 25 de maio de 2010

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VISITA AOS CONGOS - 1-

 

Em 1963, por sugestão do distribuidor da cerveja Cuca em Cabinda, foi decidido fazer um rápido estudo de mercado para a eventual exportação de cerveja para o Congo, ex-francês, hoje Zaire, e da decisão de gabinete à ação foi um instante.
A viagem revestiu-se de algumas situações caricatas hoje, mas cansativas. Começa com a saída de Luanda, num vôo da Air Congo, uma subsidiária da Air France, num avião quadrimotor. Dois passageiros para embarcarem para Brazzaville. O avião, quase o único ali estacionado em frente ao edifício do aeroporto, horário de saída de acordo com o previsto, tudo aparentemente em ordem, vou aguardar na esplanada, onde havia um pequeno bar. Só outra mesa ocupada, com o outro passageiro. Chegada a hora vêm avisar que o vôo ia sair um pouco atrasado. Uns trinta minutos. Depois destes trinta, mais trinta.
Da esplanada via-se algum movimento em volta do avião. Um ou dois mecânicos e mais uns tripulantes, o que pressupunha problema técnico.
- Afinal o que se passa? Já estamos com três horas de atraso e nada?
- É o motor de arranque que não funciona, mas já estão a terminar.
Mais uma hora.
- Então?
- Quebrou-se a corda.
- Essa agora! Quebrou-se a corda? Qual corda? Não me diga que aquilo é como os motores “outboard” que pegam com uma corda?
- Não sei. Mas foi o que me informaram.
Nessa altura os dois únicos passageiros para aquele vôo, e também únicos clientes no bar esplanada do aeroporto, já conversavam e dividiam cervejas que iam bebendo em conjunto, e quando olham para o avião, vêem, com espanto q.b. um pequeno trator a ser engatado a uma corda, por sua vez enrolada à volta do motor do avião!
- Querem ver que é verdade! Que aquilo pega mesmo como os motores dos barcos!
Azar o nosso porque o tratorista não era marinheiro, e arrancando de repente, voltou a quebrar a tal corda. Matámos a charada, continuámos esperando, já se fazia noite e no aeroporto não havia mais cordas! Decidi intervir.
- Se vocês continuarem a usar o trator de esticão, não há corda que aguente!
Expliquei a complexa tecnologia da corda! Passado um bocado chegou outra corda, e eu gritava do alto da esplanada:
- Cuidado. Devagar. Devagar.
Duvido que tenham ouvido alguma coisa mas assim mesmo procederam e o motor pegou. Não foi necessário que nos chamassem. Corremos os dois, passámos o controle (só havia dois a controlar e já tínhamos sido convenientemente controlados), e levando um monte de vento e poeira no nariz, porque o motor ficou ligado, e era o que ficava do lado da porta do avião, lá nos acomodámos.
O vôo fazia escala em Pointe Noire, na costa, um pouco ao norte de Cabinda, onde aí sim, entrou um bom número de passageiros, sem que o motor fosse desligado. Chegámos, só com seis horas de atraso a Brazzaville!
O hotel, reminiscência do savoir vivre francês nos trópicos, era uma delícia. Fora da cidade, no topo de um morro, uma maravilhosa vista sobre o rio Congo, enorme, larguíssimo, caudaloso, vendo-se em baixo a cidade e na outra margem a capital do ex Congo Belga, Leopoldville, hoje Kinshasa. Quartos amplos, confortáveis, muito bom gosto, bela sala de jantar, larga varanda em toda a frente sobre o rio... Muito bom.
Sair dali só de taxi. A pé até à cidade não era nenhuma viagem, atravessava-se uma parte de estrada sem casas, só mata, depois a área suburbana e finalmente o centro onde habitualmente se encontram, ou encontravam, os lugares de decisão económica, e além disso, África é quente! A nossa pele, segundo os especialistas e nós mesmo constatamos, aguenta mal o calor, pior ainda quando se tem que aparecer vestido minimamente decente para tratar de negócios. Não necessariamente de casaco e gravata, mas pelo menos que não se esteja coberto de poeira e suor!
Nas andanças pela cidade cruzei-me com um angolano, de Benguela, que eu conhecera no meu primeiro ano de Angola. Espanto mútuo, o que faz você aqui, quando chegou, etc. Ele vivia ali refugiado. Perseguido pela famigerada Pide, trabalhava como locutor da Rádio Brazzaville nas suas emissões em língua portuguesa dirigidas aos povos de Angola, mentalizando-os, incitando-os à luta contra o colonialismo. Já não me lembro, nem um pouco, do seu nome. Só tenho idéia que era bem mais velho do que eu, (uns dez ou quinze anos?) baixinho, entristecido por viver longe da terra de que tanto gostava, apesar de não ter, que me lembre, quase cor alguma nas veias. Tinha, sim, amor à terra. Mas...
Ficou entusiasmado com a minha presença e com a idéia de Angola, a sua terra, ter já uma indústria capaz de exportar. Bebemos umas cervejas e pediu-me para me entrevistar lá na Rádio.
- Com uma condição. Nada de políticas.
- Só quero falar da nossa terra, e mostrar aos angolanos que até temos uma companhia que pode exportar cerveja para aqui. Se eu sinto orgulho disso, penso que todos os angolanos gostarão de saber.
Combinámos os tópicos da conversa e no outro dia lá fui. Meia hora de conversa radio fundida, sobre Angola. Verdade, verdadinha, fiquei com receio de após o meu regresso ser chamado à Pide. Não fui, mas os gajos não devem ter deixado de vasculhar a minha vida!
Perguntei-lhe se correria algum perigo em atravessar o rio e visitar Leopoldville. Eu era português, vivia em Angola, e do Zaire saíam muitos guerrilheiros para ali combaterem. Podia ir descansado.
Dia seguinte, sábado, cauteloso, desconfiado, e porque não?, receoso, lá fui. Atravessei aquele imenso e caudaloso rio e, uma vez na outra banda achei que a melhor maneira de visitar a cidade seria de taxi. Foi. O motorista era um sujeito novo, simpático p’ra caramba, muito prestável.
- Onde o senhor quer ir?
- Eu não conheço nada, nada, de Kinshasa. É a primeira vez que aqui venho, estou de passagem em Brazzaville, e vim fazer um pouco de turismo. Você vai ser o meu cicerone. Leva-me onde quiser, demora o tempo que quiser, e vai-me explicando o que achar que vale a pena.
Olhou para mim com ar de espanto e lá vamos nós beirando o rio, acompanhando a corrente. Via-se na outra margem, altaneiro, o hotel onde eu estava hospedado e, agora do nosso lado, numa imensa fortaleza em posição igualmente altaneira, fortemente guardada por soldados, a residência de sua majestade o dono do Zaire, Joseph Kasavubu.
Muito mal dele falou o motorista! Como todos, tinha esperado que a independência trouxesse uma melhoria generalizada para o povo! Coitado.
Seguimos um pouco por fora da cidade, que como qualquer cidade, em qualquer parte do mundo, pouco tem para mostrar! No regresso, numa praceta no meio dum cruzamento de duas ruas, ou avenidas, dois carros chocados e uma meia dúzia de homens todos discutindo.
Fomo-nos aproximando e já em cima diz-me o eficiente cicerone:
- Isto é normal. Esta gente conduz de qualquer modo e depois de chocarem saem dos carros e esmurram-se. Mas este acidente é melhor! Um dos carros é de um ministro que está apanhando porrada do outro que não quer saber se ele é ministro!
Deixámos a caricata refrega acesa! No meio dum cruzamento um ministro sai do carro, depois de chocar com um cidadão comum, para reclamar sem razão, só porque se investia na dignidade de ministro, e apanha uns chapadões no focinho! Quem dera que essa moda chegue ao Brasil! Ou a Portugal. Vamos em frente. Voltámos ao ponto de partida. Paguei a corrida, e dei uma boa gratificação ao simpático motorista, africano puro, mas gente boa. Gente simples.
Faltava ainda meia hora para o ferry sair de volta a Brazza. Numa praceta perto do cais um vigarista sacava dinheiro aos simplórios que se atreviam a apostar adivinhando onde estava estaria uma moeda escondida debaixo de um de três copos invertidos. Conhecem aquele jogo, não é? O famoso jogo da Laranjinha. O sujeito coloca a moeda debaixo de um dos copos, troca a sua posição com bastante velocidade de um lado para o outro, a gente segue com a vista o copo debaixo do qual ele colocou a moeda, aposta que está lá, mas não está. Não está nunca em lugar nenhum porque aquilo é um truque de mãos e a moeda fica sempre escondida na mão do habilidoso vigarista, que assim, ganha sempre. Rouba sempre. Uns dez ou quinze de volta do vigaristazito, largando algumas notas que eram perdidas, sempre acompanhadas dum Oohh! de espanto, porque de fato a moeda nunca estava onde todos tinham a certeza que devia estar!
Aproximei-me, já conhecia o truque, e fiquei um pouco a ver e divertir-me a ver aquelas caras quando perdiam! O vigarista quando me viu achou que tinha ali pato mais rico, o único claro no meio de tantos escuros, e insistia para que eu apostasse também. Não. Só ver. Quase a hora da saída do barco, achei então que para despedida, e retribuir um pouco pelo espetáculo que me tinha ocupado os últimos momentos naquela cidade e país, decidi também pagar uma nota para ver. Ainda nem tinha perdido, como todos os outros, quando surge a polícia para prender o vigarista e mais os que estavam jogando! O meu coração bateu com força, tanto mais que não era fácil disfarçar-me sendo o único facilmente diferençável! Aquela gente foi sensacional. Rodearam-me, procurando interpor-se entre mim e os polícias que corriam na nossa direção, e diziam-me:
- Foge, foge depressa!
A uns vinte metros dali havia um café, bar. Eu não podia correr porque ainda mais nas vistas daria. Rabo entre as pernas virei costas e consegui entrar no café, de onde através das janelas conseguia podia acompanhar o que se passava. O vigarista apanhado, discutia com a polícia que acabou por levá-lo. Os apostadores e meus protetores mostravam-se satisfeitos por me verem a salvo, e faziam-se sinal para que me mantivesse ali escondido ainda um bocado. Pedi uma cerveja que bebi com a mão trémula e deixei-me ali ficar até que a vida naquela praça e os batimentos do meu coração voltassem ao normal. Logo que pôde fui para o cais e no primeiro barco voltei para Brazzaville, para o hotel! O susto foi forte!
Ficou-me de Kinshasa a saudade daquela atitude do povo que, parecendo impossível, protegeu o único branco que por ali se tinha arriscado a “jogar” com eles!

do livro "Loisas da Arca do Velho", inédito, 2001

terça-feira, 18 de maio de 2010

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Chuva ?




“Contínua goteira faz sinal na pedra”.
Provérbio popular.



Aquele dia estava teimando em não chover. Umas nuvens falsas, alimentando a ilusão da terra sofrida e seca há muito tempo. Dali, a única vantagem que se podia tirar era a proteção do sol escaldante que, semiescondido, perdia parte da sua força de agressão. As nuvens, mesmo falsas, desiludindo a secura, mendigavam assim um pouco do nosso perdão, interpondo-se, a custo, aos raios da estrela quente. Ali estava eu, sentado num degrau em frente da porta da casa, olhando aquela tarde como muitas vezes fazia, a vista alongando-se pelo vale, algum casario ao longe, o mar ainda mais, só se mostrando em dias de céu limpo, vendo o tempo e as plantas caídas, sem o vigor da água que as torna belas, pensando. Pensando como era injusto deixar criar plantas e flores bonitas e depois faltar-lhes com a água. Porquê?
As reflexões sobre tudo isto sucediam-se lentas, monótonas como a própria tarde e a incerteza do amanhã. Devo ter adormecido. Não sei por quanto tempo, porque quando despertei os ponteiros do relógio quase não se haviam movido, as nuvens permaneciam no mesmo lugar e o sol não se escondera lá, onde tem o seu esconderijo, atrás das serranias. Era uma tarde insípida. Talvez até triste. Nem as montanhas desenhavam os seus habituais contornos nítidos, irregulares, fortes, nem o céu avermelhava para anunciar a hora do descanso. Mas a verdade é que nesse espaço de tempo que não existiu, a nossa conversa foi longa.

De repente ali estava ele ao meu lado, e apesar de nunca nos termos encontrado fisicamente, deste modo, nenhum de nós se surpreendeu.
- Sabes quem eu sou?
A voz não me era familiar e no entanto tudo se passava de modo tão natural que me atrevi a dizer que sim. Não disse exatamente que sim, mas dei a entender que não me era estranho. O físico e a cara eram simplesmente de um homem. Eu conhecia muitos homens e quando olhei melhor vi naquela cara a cara de tantos, que acabei confirmando que sim.

- Sim, sei muito bem quem és.

- Vamo-nos tratar sem cerimónias, quando não a conversa perde o interesse. Estamos aqui como dois amigos, nesta tarde que julgas insípida e da qual reclamas.

- É evidente que reclamo. Olha para estas plantas à míngua. Acabam por morrer. E depois levam mais três ou quatro anos para se recomporem.

- Que sabes tu da natureza para reclamares?

- Posso não saber muito, de fato, mas isso não me impede de reclamar. As chuvas podiam cair com um pouco mais de regularidade. Nunca entendi porque de vez em quando há uns anos de seca miserável enquanto noutros lugares há inundações catastróficas.
- Sempre foi assim desde que o mundo é mundo! Pode parecer-te um equilíbrio desequilibrado, talvez até injusto, mas tudo isto faz parte da evolução da vida na terra. Lembra-te que há alguns milhões de anos grande parte da flora e fauna que agora te rodeia e que tu dizes tanto apreciar, não existiam. Foi a evolução natural, com todo esse aparente desequilíbrio.
- Pode ser que assim seja. Aceito essa argumentação, mas não posso deixar de lamentar ao ver esta secura que me rodeia. Mesmo admitindo como boa a tese da evolução natural. Mas essa evolução leva milhões de anos e eu só por aqui vou ficar mais alguns! Até sou capaz de imaginar que daqui a outros tantos milhões isto tudo se torne um jardim paradisíaco.
- Sabes que poderia vir a ser, mas hoje em dia não há mais evolução natural! Hoje são os homens que estão a comandar não uma evolução no sentido que temos assistido até hoje, mas uma revolução antinatural!

- É verdade. Infelizmente é verdade, e todos nós sabemos disso, incluindo aqueles que são os responsáveis diretos, mas que não estão minimamente interessados em fazer reverter a situação. Muito tenho pensado nisso e até me pergunto porque o homem é o único ser vivo que só pensa no dia de hoje!

Neste momento desviei os olhos do poente e olhei para o meu companheiro. Olhei-o bem de frente, e ali estava afinal o velho amigo angolano, boa praça, inteligente, amigo do seu amigo e do seu copo. Um sereno sorriso. Há mais de trinta anos não nos víamos. Desde os velhos tempos de Angola. E diz-me:

- Lembras-te quando te mandei dizer que lá no Caracul se tratavam melhor os carneiros do que os homens? Em que pensavam os governantes naquele tempo? E como pensam hoje? Olha que faz tempo que te escrevi isso e nada mudou. Mudam os governos e mantêm-se os interesses, a ganância. É triste constatar tudo isso, apesar de saber que há muitos homens, e mulheres também, extraordinários, e é por isso que eu não perco a esperança de ver chegar a harmonia a esta terra.

Não podia ser aquele amigo de Angola a dizer-me isto. Ele foi sempre um homem generoso, mas nunca me apercebi desta sua capacidade de esperança, e volvi:

- Pode ser. Mas só com um milagre, e em milagres, daqueles que nós estamos habituados a ouvir aos pregadores, eu não acredito. Já vivi o suficiente para ter concluído que o único milagre possível é aquele que se opera nas nossas mentes. E então começamos a falar em vários bilhões de milagres! Um por cada habitante do planeta!

- Porquê descrês em milagres?

Ou a sua voz mudara, ou a entoação, o que é certo é que não me pareceu mais ser o Ernesto que falava, mas tive receio de olhar de novo e não ver a sua cara. Estava a gostar de falar com ele. Decidi responder e tentar reconhecer de novo a mesma voz.

- Os milagres que eu conheço são os que vêm descritos na Bíblia, e depois disso todos aqueles que os inúmeros profetas que apareceram até aos nossos dias dizem que fizeram. O que ganhámos nós com isso? Transformar água em vinho para agradar aos convivas de uma boda? Ressuscitar um pobre Lázaro? Ou antes disso fazer como o Moisés que largava um cajado no chão e virava cobra? Hoje na TV e nas salas de espetáculo vêem-se, todos os dias, outros “milagres” muito mais espetaculares, como cortar um sujeito às fatias e depois repô-lo de novo numa caixa, fazer desaparecer um avião e no seu lugar aparecer uma garota lindona. Imagina o que os escribas que escreveram a Bíblia diriam se tivessem visto o que hoje se faz?

- Nunca te supus tão incrédulo! Olha que o milagre está na nossa capacidade de enxergar o lado positivo ou negativo de cada problema. Crer ou descrer. Confiar ou desconfiar. Receber ou dar. Odiar, ser indiferente ou amar. Se tu com todas as tuas forças fores capaz de acreditar, confiar, dar, amar, tens todos os milagres na tua mão. Quando a Bíblia diz que podes remover montanhas com a tua Fé, é evidente que não te está a dizer que podes ir ali tirar aquela serra, linda, e levá-la para outro lugar. Mas que podes ajudar a melhorar, e muito, este mundo e assim torná-lo no tal jardim paradisíaco que há pouco falavas.
- Ora isso sei eu. Esse é o meu conceito de milagre. Mas mesmo que eu tivesse todas essas qualidades era necessário que o mesmo acontecesse com os tais outros bilhões! A Bíblia também diz que o Diabo oferece todas as riquezas deste mundo a quem o adorar, e aí é que reside, a meu ver, o problema. É muito mais lógico aproveitar as riquezas deste mundo, adorando ao Diabo, roubando, espoliando, corrompendo, matando, do que acreditar, dar, confiar.
Olhei novamente, de soslaio, e era agora outro velho amigo de infância, colega, parceiro nas horas boas e difíceis, que olhava para mim. O mesmo sorriso e olhar, serenos, chamando-me ao diálogo.

- Ao homem foi dada a liberdade de escolha, que a voz do povo resumiu muito bem, com a clareza da frase: “a Deus ou ao Diabo”. Há muitos que dizem não acreditar em Deus e são um exemplo de vida, assim como o contrário. Nisso reside a beleza da Criação. Os homens não são como galinhas que se confinam numa cerca de arame, a quem se dá milho e logo que engordam vão para a panela. O homem tem liberdade de escolha. Custa muito ver que grande parte dos que detém o poder parece continuarem a insistir em optar pelo caminho errado. Não falo no poder político, mas no verdadeiro, na força do dinheiro. Mas isso não vai durar para sempre.

- Espero bem que não, mas já não é para os meus dias! Nem dos filhos e netos.

- O que esperavas? Ver o mundo endireitar-se num lapso de tempo? Ver acontecer um dos tais milagres em que não acreditas? Não é assim fácil. Se fosse já teria sido feito! Há quantos anos apareceu o homem na Terra? E há quantos anos existia o planeta? Se pensares por este lado, verás que é longo, muito longo ainda, o caminho a percorrer para chegar à perfeição.

- Olha que eu bem quero acreditar nisso, mas quando a gente se vê rodeada de ganância, atropelos e mentiras...

- Mentiras? Tu que pareces ser bem intencionado, nunca mentiste?

- Olha, mentiras daquelas que são mesmo para enganar e tirar vantagem do próximo, pode até ter acontecido durante a minha vida, mas confesso que não me recordo que alguma vez o tivesse feito, porque estaria até hoje com esse remorso, e não carrego remorso algum. Aquelas mentirinhas bobas, que mais se podem chamar de desculpas, todos nós, todos, dizemos. Até tu. Ou... é mentira?

- Tu achas que eu alguma vez menti ? ? ?

- Acho sim. Queres ver...

Aqui voltei bem olhos nos olhos dele. Queria ver se pestanejava. Se um simples músculo da face o traía! Face um pouco enrugada, dos muitos anos, mas continuando a exalar uma profunda tranquilidade, que não me permitia sequer desconfiar da Verdade ali presente. Prossegui.

- Vou-te dizer onde eu acho que mentiste. Essa história do batismo, por exemplo. Lá porque um sujeito leva com uma mão cheia de água pela cabeça fica logo bonzinho! Isso é balela. Não fica nada. O máximo que lhe acontece é ficar molhado!

- Já cá faltavam os teus sarcasmos! Eu até estava a pensar que tinhas mudado a tua maneira de ser! É bom que sejas sarcástico, porque quanto mais incisivo, mais obrigas as pessoas a pensar. Mas vamos ao batismo. Eu jamais disse isso. Quando me batizaram, porque eu assim o quis, foi para cumprir um rito praticado pelo meu povo que procurava mostrar que um indivíduo se estava a lavar dos erros do passado. O batismo é uma cerimónia simbólica, e quando alguém, em plena consciência, aceita esse simbolismo, está a comprometer-se perante si mesmo das obrigações que lhe advêm de se ter libertado de um passado de ignorância e aceitar um futuro de luta pelo bem.

- É! Lá isso é verdade. Tens razão. Eu não vou muito pelos tais simbolismos, mas vá lá aceito essa argumentação. Eu não acho que seja necessário entrar em rio algum, quer seja o Jordão ou o Ganges para que um sujeito se comprometa com o futuro. Ele tem é que se comprometer com ele próprio, com a sua consciência.

- Parece até que tu não conheces os homens! São uns fracos. Apaixonam-se hoje por uma causa nobre e amanhã tropeçam num obstáculo e abandonam-nas. É bom que façam um ato público, como por exemplo o tal batismo em que tu não acreditas, ou o juramento para assumir um lugar numa assembléia, porque isso os deixa mais comprometidos.

- Talvez deixe. Mas a minha fé nesses atos, depois de tudo quanto tenho visto, levam-me a pensar que tanto faz fez, como fez faz!

- Estás muito descrente!

E senti uma mão suave e pesada ao mesmo tempo, pousar-me num ombro. Apeteceu-me agarrá-la e apertá-la porque um fluxo de paz parecia penetrar na minha mente através daquela mão. Desta vez tive medo de voltar a encarar aquela face. Eu queria ter a certeza que seria de quem eu calculava, mas temi. Se fosse, eu não iria aguentar. Não sentia uma mão assim desde que era garoto, muito novo e essas mãos foram embora de repente! Acovardei-me. Como tantas outras vezes durante a vida.

- Além de te mostrares tão descrente, descrença falada e pouco sentida, pelo que se percebe das tuas palavras, vê-se bem que lá no fundo algo te preocupa muito mais do que esses tais atos simbólicos que não aceitas de boa vontade. Afinal o que te inquieta?

- Tens razão. Eu vivo com uma inquietação permanente. Não consigo explicar, nem para mim próprio, o que isto é. Chego a querer que seja somente cansaço, mas sei que não é só isso. Nem gostaria de te dar qualquer idéia porque me acharias presunçoso. Por isso, por ser difícil compartilhar com alguém, e muito menos lhe dar satisfação, é que estou mastigando esta inquietude, há anos. Talvez um dia desembuche. Como, ainda não sei!

- Eu imagino. Mas como o problema é teu, íntimo, não pretendo desvendar o que te vai lá por dentro, e sei que um dia vais encontrar o caminho que te sossegue. Não podes é amargurar-te, nem ficar aí sentado criticando a natureza!

- Eu não estou a amargurar-me. Mas quem tem um espinho num pé e não consegue tirá-lo, não tem outro remédio senão aguentar. É um pouco assim. E as críticas à natureza... nem críticas são, mas uma espécie de desabafo do final do dia quando, além da cabeça, o físico também pede repouso!

- E ainda te vou dizer mais.

A mesma voz. Tão igual e ao mesmo tempo tão diferente que eu sabia que se olhasse uma vez mais, a cara não seria a mesma. Voz firme, jovem, cheia de entusiasmo, e duas lágrimas vieram turvar-me a vista. Não virei a cara. Novamente me acovardei.

- Tens batalhado toda a tua vida, tens feito as opções que entendes, e com esse teu feitio de intransigência, teimoso, já levaste muita pancada. Sofres, eu sei, mas continuas muitas vezes a pensar como um dom Quixote, a querer endireitar o mundo! Já não tens mais idade para isso! Não te quero ver agora a abdicar dos teus princípios, se os achas corretos, mas também sabes que não é com vinagre que se apanham moscas, como vocês dizem!

- Queres dizer que tenho que ser mais político?
- Porque não?

- Eu, que em princípio, e tu sabes bem, detesto políticos, porque exatamente pactuam com tudo e com todos para levar a água ao seu moinho? Não, essa não!

- Então achas que vale mais quebrar que torcer?

- É por essas e outras que as minhas idéias se baralham, a inquietação aumenta e a cabeça gira como um cata-vento sem encontrar o tal caminho!

- Cabeça de cata-vento não terás, mas não podes é ser sempre tão inflexível. Assim não irás a lugar algum. A primeira coisa que tens que fazer é aceitar um pouco melhor os erros e defeitos dos outros. Experimenta dar um primeiro passo nessa direção. Estou certo que te irá ajudar.

- Achas que temos que aceitar os erros dos outros e... pronto?

- Olha! Eu aceitei-os, mas sem o teu “e... pronto”!

- E vê o que te aconteceu! Qual o proveito prático que daí se tirou?

- Agora quem diz “Meu Deus” sou eu! Então tu achas que ninguém jamais ganhou em aceitar, e perdoar, os erros dos outros? Olha bem à tua volta. Não vês muitos milhares a fazer isso todos os dias, a darem as suas vidas em troco de um sorriso, aceitando os seres humanos com todos os seus defeitos sabendo que só a aceitação desses erros e defeitos os levam a melhorar o mundo? Creio que já não te estou a conhecer!

- Tens razão. Estou a falar sem pensar! É a tua vez de me aceitares como sou, cheio de defeitos, presunção, arrogância, fazendo-me de mártir por não conseguir endireitar o mundo! Tenho que me olhar melhor no espelho! Quem sabe consiga descortinar o que está dificultando que me torne mais humilde.

- Boa idéia essa. Olha-te bem no espelho. No espelho do teu interior. Procura bem que vais encontrar, porque o problema é sempre o mesmo: se não quiseres procurar, de certeza que não encontras.

- Vou fazer isso ainda agora, olhando este triste pôr do sol. E como sempre me aceitaste como sou... tens ainda que me perdoar.

- Então não havia de perdoar?

Agora sim, ganhei coragem e olhei para o lado. Queria ver bem expresso na sua cara esse perdão. Era importante para mim, meio incrédulo.

Não havia ninguém!

De repente um forte trovão quebrou a quietude daquela tarde. E a chuva começou a cair.

No dia seguinte pela manhã as plantas sorriam agradecidas, e as poucas folhas sobreviventes da longa estiagem, tanto tempo tristes e caídas, apontavam agora para o alto em modesta atitude de agradecimento.

Ao sair de casa o dia despontava, senti no ar aquela alegria da terra úmida e olhei de soslaio, desconfiando e confuso para o lugar onde na véspera tinha estado sentado.

Quanto tempo ali estive? Nunca chegarei a sabê-lo. Nem sei mesmo se algo aconteceu ou se as idéias, ainda confusas, que me assaltavam, não seriam fruto de um sonho. Sonhador, deixei-me ir arrastando e fui pensando nelas.



À noite... pus-me a caminho de Moçambique para seis meses de voluntariado!



Maio de 2001

do livro "Loisa da Arca do Velho", inédito, 2001

sábado, 15 de maio de 2010


Duas recomendações de
. 
leitura


Para quem gosta de África, especificamente de Angola, foi agora publicado um livro magnífico do fotógrafo baiano Sergio Garcia, sobre os Hereros. O livro - Hereros - é magnificamente ilustrado com belissimas fotografias, farta informação recebida diretamente deste povo e ainda uma recolha de música.

Diz a editora: "O fotógrafo Sérgio Guerra aprofunda seu olhar sobre a cultura angolana com ‘Hereros – Angola’, luxuosa edição bilíngue (português-inglês) em formato 30 cm x 30 cm (Editora Maianga, 260 páginas, R$ 190,00) que traça um amplo painel do modo de vida e das tradições dos pastores da etnia Herero. Acompanha o livro um cd de 18 faixas com cantos cotidianos – gravações realizadas em julho e agosto de 2009, sem qualquer intervenção posterior que pudesse alterar a autenticidade dos registros."
Podem procurar na Internet, e como é um livro grande e em papel couché, o custo do seu envio postal para a Europa ou Angola não será muito barato.


Mas vale a pena. Uma delícia para os olhos, ouvidos e conhecimento.

Outro livro, de assunto diferente, sem ser uma edição de luxo, mas com bastante interêsse histórico, na só da cidade de Cuiabá, mas de todo o Brasil. Um tema raramente abordado, e que pode também retratar o que se passava em quase todas as cidades do mundo, "pouco tempo atrás".

Água de Beber no Espaço Urbano de Cuiabá (1790-1886)



A professora Neila Maria Souza Barreto convida-nos a caminhar pelo espaço urbano de Cuiabá de outrora para observarmos como os rios, os córregos, as fontes, os chafarizes, indistintamente saciavam a sede dos escravos, dos pobres livres urbanos e dos homens e mulheres da elite, apontando-nos os instrumentos que eram utilizados para o transporte e posterior uso da água, como as carroças, as pipas e os bois. Leva-nos também aos espaços aos quais a autora denominou de Espaços Privilegiados de Água Potável Urbana, onde as primeiras penas d’água finalmente foram instaladas em Cuiabá, já no final do século XIX, especificamente no ano de 1886.

Porque me interessou o livro, alguns perguntarão? Porque quem finalmente, em 1882, acabou resolvendo o abastecimento de água, através de caixas de água, túneis e encamentos de ferro, etc. um trabalho de bela engenharia, foi o Eng. João Driesel Frick, de quem já aqui falei.



Edição de Carlini & Caniato; Caniato Editorial, de Cuiabá. Também na Internet.

Podem ler os dois que eu recomendo!

quinta-feira, 13 de maio de 2010


Mais um pouco de história de Angola. Esta é a carta que deve ter dado origem à de 1619, que se transcreveu antes.

Do Padre Francisco de Gouveia para o Padre Diogo Mirão (i)

1564



Depois de partida a outra gente no batel que se fêz em Pambalungo, ficámos aqui quatro pessoas cristãs das que viemos, s. o senhor Paulo Dias e eu e dois moços, e passámos muitos trabalhos, porque, além de nos não darem muitas vezes nada, nos espancam muitas vezes, pelo que a gente nos foge e deixa sós, e dizer isto a el-rei não muda nada, pelo que nós sofremos acomodando-nos com vender secretamente esta pobreza que temos, farrapos, coisas velhas, a fidalgos da terra a troco de mantimento. — Na cristandade se não faz nada.

Os reis grandes que são nomeados em Angola são Manicongo e Cutange e têm seus reis negros. Os fidalgos e pessoas nobres com que falamos não dão pelas coisas de Deus e o rei vemos mui poucas vezes e, quando lhe falamos nas coisas da fé, faz que não entende e, depois de importunado, diz que êle vira a aprender, e isto cheio de riso e zombando de nós.

Nosso amo, que se chama Gongacinza, me diz que el-rei ainda há pouco que começou a reinar e que por isso não dá ainda pelo que lhe dizemos, mas que tempo virá em que êle me mande chamar para o ensinar. Isto faz para nos deter, parecendo-lhe que enquanto aqui estivermos virão navios de portugueses aos portos com fazenda de que tirará proveito. — Outro dia diz que somos escravos de el-rei e que vamos fazer seu serviço, como algumas vezes fazemos, como de coser-lhe capas e outros vestidos de Portugal e brear almadias em que el-rei se lava e outras coisas semelhantes; e nisto passamos a vida.

Neste ano de sessenta e quatro se queimou a cidade de Angoleme, onde el-rei então residia e dez vezes se pôs o fogo em diversas vezes, fazendo sempre grande estrago em casas, fazenda e gente, mas da ultima ardeu sem ficar casa, de maneira que foi necessário levantar-se el-rei para daí a duas léguas a outra sua povoação, e daí a poucos dias se veio a Cabaça, metrópole de seus reinos, onde agora reside e nos com êle, fazendo aqui nova cidade e em novo sitio; foi a coisa mais espantosa o fogo de Angoleme, que eu nunca vi nem os negros se acordam de tal, porque uma cêrca tamanha como os muros da cidade de Évora, com cinco ou seis mil casas de palha e madeira muito grossa e muros de paus altos e grossos, tecidos de palha e canas, assim por todas as ruas da cidade ateado tudo em um estranho e vivo fogo por todas as partes com mui tempestuoso vento, era o mais medonho estrondo que se podia imaginar. — Começou com uma hora da noite e acabou uma ou duas horas ante-manhã pouco mais ou menos, deixando tudo arrazado e feito em cinza e carvão; e, conquanto as gentes que acudiam a êste fogo serem perto de mil pessoas, que logo se ajuntaram ao tanger dos seus chocalhos para arrecadar a fazenda de el-rei, se queimou infinidade, assim da terra como da de Portugal. — Era tão bravo êste fogo, que, nas mui altas palmeiras de que a cidade estava toda cheia, andavam tão fortes as línguas dêle, que com serem verdes ardiam como tochas e, como eram altas e cheias de rama, tomavam maior vento, pelo que faziam maior estrondo, e toda a terra que descobríamos com a vista estava tão clara como se fora ao meio-dia, sendo tão alta noite. Neste fogo morreu muita gente queimada que se não pode salvar, outra que se mandou queimar e lançar ao mesmo fogo para o aplacarem, que bem pouco lhe aproveitou, porque o Diabo assim o costuma com êles e com todos os seus servos, que é obrigá-los a fazer-lhe muitos serviços e maldades que lhes ordena, sem fazer por êles nenhuma coisa das que lhe pedem, antes tudo ao contrário. — Fêz, como digo, muito espanto êste novo fogo em toda a gente da terra e o que mais espanto fêz foi estarem as nossas casas pegadas com os muros de el-rei, não lhes fazendo nenhuma das vezes o fogo nada, antes vinha sempre morrer na nossa testada como milagrosa, e que ninguém o vira que o não atribuísse a grande milagre.

E outra coisa que nao fêz pouco espanto foi verem nosso fato na rua sem guarda e não se furtar coisa alguma e o seu com muitas guardas se roubou quasi todo, coisa que nêles causou mui grande admiração, e falava toda a terra nisto. Nós atribuímos a especial providência e misericórdia de Deus.

Todos nos diziam que a igreja e coisas que de Deus nela tínhamos nos guardavam e por isso folgavam muitos de nos ter por vizinhos, por se verem livres do fogo e crer que por isso foram livres, como êles também crêem, por estarem a par da igreja, principalmente um gentio fidalgo, parente de el-rei, bem valoroso e capitão-mór dêste reino.


—Ao primeiro de Novembro de mil quinhentos e sessenta e quatro.


- - - * - - -

A dureza do cativeiro aumenta. Os portugueses são espancados com frequência e, para não morrerem de fome, sujeitam-se a “vender secretamante esta pobreza que temos, farrapos, coisas velhas»!
Na propagação da fé cristã não havia também quaisquer progressos: o rei, ou fazia que não os entendia ou francamente zombava das crenças dos cativos, caídos sob as garras do feiticeiro-mor Gongacinza, que os ia enganando conforme lhe convinha.

Todavia os portugueses já tinham igreja em Angoleme, como se vê da parte final do documento.

A carta dá a indicação dos reinos limítrofes de Angola: Manicongo e Cutange (Cassange?), mas fá-lo tão incompletamente e duma forma tão cortada tão cortada, que fica a suspeita de ter a carta sido truncada neste ponto.

Em face do grande incêndio que quasi por completo destruiu Angoleme, residência do rei, êste mudou para outra povoação, a duas léguas de distancia. Daí deslocou-se para Cabaça(ii), metrópole de seus reinos «onde agora reside e nós com êle, fazendo aqui nova cidade e em novo sítio».

A igreja portuguesa de Angoleme escapara do incêndio. (iii)


(i) Provisão de 10 de setembro de i555 expedida a Diogo de Teive, mandava entregar ao Provincial i da Companhia nestes reinos, que era Diogo de Mirão, o Colégio das Artes, para que os Padres dirigissem e lessem as Artes e tudo o mais que lessem os mestres franceses».—Historia da Literatura Portuguesa, de Mendes dos Remédios, pag. 328 (5ª edição).


(ii) Nbanza-a-Cabaga, segunda côrte ou segunda banza — Da Mina ao Cabo Negro, L. Cordeiro, pag. 10, nota. Ver outra derivaçao em Lopes de Lima, intr., pag. ix, nota 4ª.

(iii) do livro Relações de Angola (Primórdios da Ocupação Portuguesa) – Pertencentes ao Colégio dos Padres da Companhia, de Luanda, e transcritas no Códice existente na Biblioteca Nacional de Paris. Prefaciadas, comentadas e anotadas por Gastão de Sousa Dias. Coimbra, Imprensa da Universidade. 1934.

quarta-feira, 5 de maio de 2010


2ª parte – continuação da







Copia da relação dos costumes, Ritos e usos do Reino do Congo, que o Bspo deu a vmgde. e pecados que nelle se cometem.

(da Biblioteca Nacional de Lisboa. Secção Ultramarina. Caixa 145 Angola)


 
Snor.

EIRey dom Alvaro segundo, foi bem quisto, e muy melhor obedecido que os que lhe suçederão, ainda que da mesma vida, chamousse magestade por assy lho meterem em cabeça algús Religiosos, e outras pessoas, tomando para isso motivo de entenderem mal hua carta q o sumo pontifiçe lhe escreveo, e por Eu lhe estranhar a magestade, e lha impedir por vertude de huá carta de V. M.de que para isso tive, e por prender e embarcar o padre deão diogo Roiz pestana, que era muy seu valido por V. M.de assy mo ordenar por outra, recebeo contra my grande odeo, e impedio o effeito desta prizão muitas vezes, de maneira que para a poder fazer, uzei de escomunhões, e interdictos, como V. M.de me mandou que o fizesse, E estas çenssuras, se levantavão huás vezes, e se tornavão a por outras, porque por muitas, mostrou elRey que obedecia a ellas, tornando logo a desobedesser, e cõ esta sua preçeguissão, e odeo que durou em quanto elle viveo, receby Eu notavel perda, na quietação, Jurisdição, e fazenda, sem me apartar hum ponto do q V. M.de me mandou, como constara de muitos papeis q tenho em meu poder ./.
EIRey dom Bernardo que lhe sucedeo, e que durou pouco por ser morto por EIRey dom Alvaro terceiro seu sobrinho como he dito, e que Eu não vy por no seu tempo estar em loanda, no principio, correo bem comigo em cartas, e eu cõ eIle, quis tambem chamarsse magestade, e pediome que fosse a Congo para..lhe lançar o habito de Christo, ou lhe mandasse licença para lá o receber, respondendo lhe Eu, segundo o q V. M.de me tinha mandado, que nenhuá daqla. cousas, podia, nem devia fazer, representandoselhe, que Eu lhas negava plo molestar,e não por não poder, tambem se indinou muito contra my, e durou nisso em quanto viveo, que foi pouco, e numqua tomou o abito de Christo, nem tambem apertou muito sobre o titulo de magestade ./.
Tem a gente do Congo, e de Angola muitos ritos gentilicos de que assy uzão, os que o são, como os bautisados, e a Christandade pla maior parte he só de nome, porque quando os curas vão correr os districtos de suas capellas, he mais para receber as colheitas, que para ensinar, e assy bautisão a todos os q se lhe offerecem, sem diferença de pessoa, e sem os catequisar, e posto que por este modo ficão bautisados, he o bautismo informe, e tantos sacrilegios cometem, quantos bautismos fazem, e dando Eu distintamente a ordem que isto se devia ter, nem isso foi bastante para tirar este abuso (posto que em parte se melhorou) e para sever qual he a christandade daquellas partes, e como ellas se administra bautismo, digo o q me aconteçeo, indo visitar os presidios, a onde numqua foi outro prelado; e he que achando entre os sovas da obediencia de V. M.de no presidio de Cambambe, sete bautisados, e perguntandolhes publicamente pla doutrina, nem essa, nem o sinal da Cruz sabião, nem se tinhão confessado numqua, nem entrado em Igreja, afirmando que nenhuá destas cousas se lhe diçera, quando forão bautisados, e perguntandolhes, se deixarão as mancebas, ou quantas tinhão, o principal respondeo que çento e vinte, outro que çento, outro q sessenta, outro que çincoenta, outro q trinta, outro que vinte, e outro que quinze, e sendo esta a christandade assy querem os governadores que os padres bautisem; entendendo que nisso acertão e poderão alegar que converterão muitas almas, e tambem se não fas este officio cõ a perfeição devida, quando em 1oanda se bautisão os escravos q se embarcão para fora, porque ha aly, só hum Vigario a que pertence, e que alem de não saber a lingua, trata mais de receber o premio, que de acertar em seu officio ./.
Naquelle Bispado não achey constituições, nem cousa por onde me ouvesse de governar, e por isso as fis com muito trabalho, e he magoa grande que sendo a gente tanta, as terras tão fertis, e tão largas, se perca tudo, por falta de ministros Eclesiasticos, o Porto de loanda he excelente, mas o territorio cõ seus arredores, sequo, e infrutuoso, e passão dous, tres e mais annos que não chove, sendo muito ao contrario pla terra dentro, os Reys do Congo trasem todos o habito de Christo cá sua seta de são Sebastião, e o mesmo os duques, de batta, e bamba, e os manilouros, tendolhes V. M.de por veses mandado declarar, q não pode ser, por ser cousa Eclesiastica e de grande escrupulo e só concedida a V. M.de, como mestre da ordem, e não ha podelos tirar deste abuso, por q crem firmemente que o q hua ves se lhe deu, he para dos os q lhe suçederem, sendo assy, que o que eIles dão, tirão cada ves que querem, e trasem ao pescoso muitas cadeas de ouro, alquime, e aço, cõ muitos habitos, tendo o por grandesa, e loucainha. São os Rey do Congo, univerçaes erdeiros de todos seus vassaIlos, e tomando para ssy, o que querem do q lhes fiqua, o mais dão livremente a quem querem, e os que oge são duques amanhã os tirão, e ficão servindo a fidalgos ordinarios ./.
Esteve o Rno do Congo despois de sair deste o capitão mor Anº Glz pita, sem capitão, nem Angola ouvidor de V. M.de algus annos, e despois fis Eu cõ muito trabalho reçeber hum que mandou o governador luis mendes de Vasconcelos, a q se tem muy pouco respeito, porque ElRey se mete em tudo, e trata muy mal os vassallos de V.Mde, levando os consigo a força descarapusados, e o mesmo fazia aos saçerdotes, e ainda os obrigua a que o acompanhe as guerras e a outros caminhos que fas, sem lhes dar o neçessrio para isso, aos paçageiros desbalijão, e empendenlhe os caminhos, levanlhe extraordinarios tributos, e peitas, q acressentão, cada dia, e postas e outras, extorções, ha grandes desgostos, queixas, e perdas. pedem Sol, e chuva aos prelados, e aos sacerdotes, como a pedem aos seus feitiçeiros, e queixãosse de lha não darem, como se isso fora em sua mão ./.
V.M.de manda que nenhuás fazendas prohibidas plos. Reys de Congo, levem os portugueses, a seus Rnos e q se lhos tomem por perdidas, todas as que não registarem, e porque isto se não guarda ha cada dia, grandes inquietações, tem EIRey de Congo prohibido cõ grandes penas, que não levem os Vassalos de V. M.de a seus Rnos, Zimbo do brazil, e de outras partes, porque como essa he moeda que nelles corre, esta cõ a grande cantidade q vay de fora; tão abatido o seu, que perde nelle as duas partes de suas rendas, e o mesmo aconteçe aos Eclesiásticos porque nelle lhe fazem o pagamto de algús disimos q lâ ha, e por este respeito a petição do mesmo Rey, o prohiby Eu por escomunhão, E nem cõ ella, nem cõ as penas q EIRey tem posto, deixa de entrar, em tanta quantidade, que vay deitando aquele Rno a perder, e se EIRey para o atalhar dá algum castiguo alevantãolhe que presegue os vassalos de V. Mde. E não respeitão que elles são os que o perçeguem a elle, levando lã muitas mercadorias falças, e vendendoas por finas, em muy grande perjuiso de suas consçiençias e desacato de hum Rey christão, que V.M.de ampara, e manda amparar sempre ./.
Todas as materias de Justiça, se Julgão por audiencias verbaes, e co muy pouca prova confiscão as fazendas, degredão, matão, empenão, e apedrejão, e se logo se não executão suas resoluções verbaes, por qualquer roguo e peita se perdoão- dilictos gravissimos, e plos. Liviçemos e mal provados, morrem e padeçem os dos favorecidos, e estão tão entregues a este modo de proceder gentilico que não avera força umana que cõ elles introdusa outro christão, deixãosse entrar de qualquer sospeita, e são façelissimos em levantar testemunhos falços, e em se desdiser delles, e sendo arguidos dos vicios em que caem de maravilha os negão, os principais tenho aprontado, e para os q ficão serião neççsarios livros inteiros ./.

Ds, guarde a Catholica pessoa de V. Mde ./.
De lisboa a 7 de setembro de 1619.