terça-feira, 1 de maio de 2018


 

PROLEGÓMENOS e AMIGOS - 1



Vi-me grego para descobrir uma palavra, já descoberta pelos gregos, que significasse “o que dizer antes do que se vai dizer”. Aí está. Complicado, mas é isto. Prolegómenos.
Tal como as “falas” complicadas que Cervantes põe na boca de Dom Quixote, cavalheirescas ou cavalheirosas, ou como o complexo há pouco descoberto de se não poder falar da descoberta do Brasil, porque já estava descoberta pelos índios; achamento foi a palavra que Caminha achou que ficava melhor. Encontro, também não parece ser o indicado, porque poderia parecer algo pré-combinado com, sei lá, talvez um Caramuru qualquer, para que um dia por aqui se encontrassem, daí que, para acabar com essas polêmicas semânticas, sugiro que agora em diante se diga e se ensine que o Cabral, no seu trânsito (palavra adequada, e hodierna, esta) para a Índia, se deparou com uma terra, nova para ele, e não para quem lá vivia ou tinha estado antes e lhe deu as dicas para que ali fosse meter água.
Passaria a ser o Deparamento do Brasil!
Que isto de semântica tem muito a ver com o que se lhe diga!
No meu tempo, apesar de ser eu ainda deste tempo de hoje, mas deslocado, havia umas quantas palavras que não eram citadas, por desnecessário. Faziam parte do nosso ser intrínseco como o foi mamar quando se nasce, não dizer palavrões em frente de pessoas crescidas ou de meninas, logo que se aprendem, cumprimentar respeitosamente os pais, avós, tios, professores, etc., enfim, aquilo que se poderia chamar trivial. Trivial é hoje saber cozinhar feijão, arroz e ovo frito, e coar café através duma meia. Suja de preferência, para não ter que lavar duas vezes.
O que isto tem a ver com Prolegómenos? Aguentem, nada de pressas, porque no que se vai falar depois do que aqui se diz antes, é sobre algumas pessoas que conheci e conheço de quem pretendo fazer um rápido retrato.
Porque algumas dessas palavras que então se não usavam, hoje simplesmente se ignoram, tais como respeito, dignidade, humildade, pobreza de espírito que não se deve confundir com atraso mental, e até amizade verdadeira, uma vez que esta foi ultrapassada e estratificada por valores contabilizáveis em bens, influência e poder político ou financeiro.
Alguns Mestres, e atenção que sempre distingo Mestres de mestres, aqueles os autênticos, na sua personalidade, qualidade e exemplo, doutores ou não; estes exatamente pelas mesmas qualidades, só que por míngua delas, doutores de canudo, que exibem ex-cátedra ciência falsa, imodesta e demagógica, que muito babaca, ignorante e não no termo de candomblé, aceita como verdadeiro.
Um dos Mestres dizia que tinha amigos e não amigos, sem que estes fossem inimigos; só que ainda não eram amigos”. Outro tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos, e este mesmo dizia ainda que enlouqueceria se morressem todos os meus amigos”.
Quanto pensamento bonito sobre o amigo, como este: “Nosso verdadeiro amigo é aquele que nada nos desculpa e tudo nos perdoa”. Até Camões se “atreveu” a dizer “Do certo e fido amigo é não temer nenhum perigo”.
Só há uma maneira de manter os amigos: vivos. É lembrá-los, estejam eles longe, já lá no mais longe, que o passar dos tempos vai aproximando, quer só afastados em espaço geográfico, ou mesmo os que estão por perto.
Quanto mais falamos neles, mais cimentamos essa amizade. Nenhum deles necessitaria de mais cimento, mas é sempre melhor pecar por excesso que por defeito.
Tudo isto parece brincadeira, mas falar de amigos é coisa que não pode ser feita com tristeza. Mesmo dos que já nos deixaram, porque o que ficou deles não foi tristeza, mas a muita alegria da amizade.
Um pequeno flash” de uns quantos.  Nada de biografias.
***
Em Luanda morava num prédio de esquina em frente da nossa casa. Num terceiro andar, com janelas viradas para a nossa rua. Ele, a mulher e os filhos, que continuam, quase meio século passado e já muitas décadas afastados, a sentirem-se irmãos. Os pais nossos irmãos e os filhos sobrinhos do fundo do coração.
Amigo desde toda a vida, era mais novo do que eu, dois dias!
No dia dos meus anos, ele esperava à janela para me ver sair de casa – trabalhava-se bem nesse tempo! – e gritava lá do alto:
- Eh! Pá! Ó Chico! Tás muito velho!
Muitos anos esta graça! E sempre este carinho.
Nesse dia costumava haver ou um jantar ou uma fadistice lá em nossa casa. Dois dias depois uma jantarada na casa dele.
Era muita canseira, praticamente os mesmos convidados e encontrámos uma ótima solução: fazer uma festa só, no dia do meio.
1969, lá em nossa casa, fez-se uma bela farra, com fados e cerveja a correr, que durou até o sol obrigar os últimos a irem embora, a pôr óculos de sol!
E um fadista se destacou. Igual ao Marceneiro. Sempre com uma ótima disposição, um amigo para todas as horas. Um grande parceiro.

1968

O grande Zé Perestrelo. O Perestrelão. Saudades. Um abraço, forte, lá para cima!

***

1961 – No último dia do ano, último dia de caça, que a seguir entrava o defeso, com o grande Zé Neto, fomos dar uma volta pelos arredores de Luanda. Caçámos um belo e velho antílope, macho solitário, sempre com carne saborosíssima.
Dia 4 de Janeiro, batizado de um dos nossos filhos. Uns quantos amigos se juntaram e ficaram para à noite comermos uma das pernas do dito antílope, cozinhado pelo grande cozinheiro Miguel – que um dia teve que ser dispensado porque, por vezes bebia o vinho que sempre estava arrumado na cozinha, para eu beber e para os cozinhados, e “esquecia-se” de fazer o almoço para as crianças (e já eram de meia dúzia) – grande Miguel, do alto do seu metro e cinquenta, e no máximo uns quarenta quilos de peso, sob orientação técnica dum belo livrinho de receitas que até hoje a dona da casa religiosamente guarda, esmerava-se no fogão.
A cena era simples. Miguel ar compenetrado e atento, perfilava-se para ouvir a dona da casa, que abria o livrinho, discursava a receita, uma vez só, e no fim perguntava:
- Miguel! Você ficou a saber? Não esqueceu nada?
- Sim, senhora. Não esqueceu.
E partia para a lide.
Pois a perna do bicho ficou uma delícia.
No fim do jantar, num lado da sala, uma mesa de canasta para as senhoras e na varanda outra de bridge para os homens. Esta teve nesse dia a personagem que operou o batismo. O padre António... (?), bom vivant, frequentador da alta sociedade, e... metido a esperto.
Seu parceiro numa das mãos um tio, sempre alegre, ótimo companheiro. Não era nenhum campeão de bridge, mesmo sendo muito melhor do que eu.
Começaram a perder, porque a dupla Zé Neto e Fernando Fezas jogavam a sério.
Padre António, irritado por estar a perder, começa a dar sentenças: “em vez de jogar a Dama devia ter jogado o Valete.” Pouco depois ao darem as vozes de marcação: “Em vez de três ouros devia ter marcado Três Sem Trunfo”, e outras semelhantes.
E continuou a encher o saco do parceiro que de repente, já saturado, vira-se para ele e diz:
- Ó padre António, vá “berdamerda!” E logo a seguir solta uma daquelas suas gargalhadas, contagiosas, que só ele dava, deixando todo o mundo à gargalhada!
O padre António engoliu.
2006

Um copo à tua saúde de quase 95 anos.
Medalhista Olímpico de vela em Helsínquia, 1952.
Grande Francisco Rebelo de Andrade. O Xico d’Água!
***

O mestre do cavalheirismo! Gostava de jogar às cartas, mas sempre o fazia junto com as senhoras. Nunca jogava com os homens, porque, dizia ele, alguém tem que acompanhar as senhoras! Nunca se devem deixar sozinhas, o que é uma falta de educação! Muito simpático, amável, simples, todas as jogadoras “adoravam” tê-lo a jogar nas suas mesas. Não reclamava, era um parceiro ideal.
E tinha mais. A única pessoa que eu conheci que, no meio duma conversa entre amigos, todos numa roda, em pé, copo de whisky, cheio, na mão, encostava-se a uma janela, braço no parapeito e, devagarinho, ia fechando olhos até adormecer. E dormia bem, profundamente. De pé!
Mas o copo não caía da mão, nem entornava. Os amigos chegaram a pregar-lhe um susto, para ver como ele acordava. Serenamente abria os olhos e entrava na conversa como se tivesse estado sempre atento.


Um ótimo e alegre companheiro, que deixou saudade imensa. Lutou muito e foi vencido.
Grande Armando Avillez. A falta que faz.

***
Dois metros de altura! Dois metros de gente boa. Nem gordo, nem magro, mesmo já quando velhote.
Teria uns quarenta e poucos anos foi passar um ou dois meses em Angola, sócio da empresa representante das calculadoras Burroughs e, como acontecia com quase todos os que chegavam aquela terra, em breve estava apaixonado por ela (país!). Chegou a cogitar comprar uma pequena fazenda de café, para o que, após algumas consultas, nos deslocámos lá para os interiores do Uige! Havia um intermediário interessado em ganhar uns cobres, um pseudo vendedor de terrenos e o proprietário à nossa espera.

O intermediário, o proprietário, o pseudo vendedor e os dois metros de “cliente”

Ninguém sabia qual a área da fazenda, documentação era abaixo de provisória, o que significava que nada valia, acesso difícil, todo o mato para limpar, mas nada disso impediu que por lá déssemos uma volta.
Fez-se noite. O dono (?) do terreno tinha uma cabana de madeira, menos que tosca, e não tinha mais do que uma cama que, gentilmente, cedeu aos visitantes. Cama de corpo e meio, estreita, colchão de palha, enfim, comodidades de hotel de 5 estrelas... negativas!
O hipotético comprador disse logo que não dormia com outro homem! Eu. Mas não havia mais onde repousar o corpo. Decidiu-se então colocar as almofadas entre os dois e assim nos deitámos. O que sobrava era tão estreito que nem um de nós dormiu bem! E ele com os pés e um pouco das pernas que sobravam... para fora!
Não comprou a “fazenda”.
Caçador de perdizes e coelhos em Portugal, a caça em África era toda outra coisa, e logo o vício aflorou com força. Não lhe chegavam um ou outro fim de semana. Mesmo durante a semana queria ir fazer o gosto ao dedo.
A empresa tinha um pequeno furgão, pintado de amarelo agressivo, o que mais dava nas vistas.
Caça à noite com farolim era proibido, o que não impedia que muitos, ou quase todos, o fizessem.
Pois o nosso amigo mais do que uma vez, vinha até nossa casa, aí pelos nove da noite, rua sossegada, ninguém à vista, tocava ao de leve a buzina e sem sair do carro:
- Chico! Vamos ali à estrada de Catete matar um javali!
- Olha: primeiro é proibido caçar de noite, pior numa estrada principal e terceiro os javalis não dão os olhos, não refletem a luz. Se queres podemos ir amanhã ao fim da tarde, eu saio um pouco mais cedo, mas só caçaremos até o sol se pôr.
Deixava o carro, entrava, conversámos um pouco e ele voltava para o hotel... desiludido!
Quando jovem chegou a estudar no Instituto de Agronomia, onde, no fim do ano letivo, sempre era organizada uma garraiada para os alunos demonstrarem as suas qualidades tauromáquicas.
Logo inscrito e convocado com “espada” ou “bandarilheiro”, entrou na arena, em Vila Franca de Xira, e fez uns passes que mereceram aplausos.
Não tardou a que os espectadores vissem nele a figura do mais famoso “matador” daquele tempo: o espanhol Manolete, e animados, começaram a aplaudir e chamar-lhe “Manolete”.
Ficou famoso! E até ao fim da longa vida, ficou sendo chamado de Xico Manolete.
Grande (mesmo) Xico Manolete. Francisco Andrade e Sousa.
Um companheiro sempre tranquilamente alegre, dois metros de simpatia. 

13/04/2018


3 comentários:

  1. Que tal o Tio compilar os textos e mais tarde publicar?
    Abraço

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  2. Me lembro tão bem da sua casa em Luanda vista da nossa janela e o pai a contar do gracejo que fazia consigo nos seus anos.

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