PROLEGÓMENOS e AMIGOS - 1
Vi-me grego para descobrir uma palavra, já descoberta
pelos gregos, que significasse “o que dizer antes do que se vai dizer”. Aí
está. Complicado, mas é isto. Prolegómenos.
Tal como as “falas” complicadas que Cervantes põe na
boca de Dom Quixote, cavalheirescas ou cavalheirosas, ou como o complexo há
pouco descoberto de se não poder falar da descoberta do Brasil, porque já
estava descoberta pelos índios; achamento foi a palavra que Caminha achou que
ficava melhor. Encontro, também não parece ser o indicado, porque poderia
parecer algo pré-combinado com, sei lá, talvez um Caramuru qualquer, para que
um dia por aqui se encontrassem, daí que, para acabar com essas polêmicas semânticas,
sugiro que agora em diante se diga e se ensine que o Cabral, no seu trânsito
(palavra adequada, e hodierna, esta) para a Índia, se deparou com uma terra,
nova para ele, e não para quem lá vivia ou tinha estado antes e lhe deu as
dicas para que ali fosse meter água.
Passaria a ser o Deparamento
do Brasil!
Que isto de semântica tem muito a ver com o que se lhe
diga!
No meu tempo, apesar de ser eu ainda deste tempo de
hoje, mas deslocado, havia umas quantas palavras que não eram citadas, por
desnecessário. Faziam parte do nosso ser intrínseco como o foi mamar quando se
nasce, não dizer palavrões em frente de pessoas crescidas ou de meninas, logo
que se aprendem, cumprimentar respeitosamente os pais, avós, tios, professores,
etc., enfim, aquilo que se poderia chamar trivial. Trivial é hoje saber
cozinhar feijão, arroz e ovo frito, e coar café através duma meia. Suja de
preferência, para não ter que lavar duas vezes.
O que isto tem a ver com Prolegómenos? Aguentem,
nada de pressas, porque no que se vai falar depois do que aqui se diz antes, é
sobre algumas pessoas que conheci e conheço de quem pretendo fazer um rápido
retrato.
Porque algumas dessas palavras que então se não
usavam, hoje simplesmente se ignoram, tais como respeito, dignidade, humildade,
pobreza de espírito que não se deve confundir com atraso mental, e até amizade
verdadeira, uma vez que esta foi ultrapassada e estratificada por valores
contabilizáveis em bens, influência e poder político ou financeiro.
Alguns Mestres, e atenção que sempre distingo Mestres
de mestres, aqueles os autênticos, na sua personalidade, qualidade e exemplo,
doutores ou não; estes exatamente pelas mesmas qualidades, só que por míngua
delas, doutores de canudo, que exibem ex-cátedra ciência falsa, imodesta e
demagógica, que muito babaca, ignorante e não no termo de candomblé, aceita
como verdadeiro.
Um dos Mestres
dizia que “tinha amigos e não amigos, sem que estes fossem
inimigos; só que ainda não eram amigos”. Outro “tenho amigos que
não sabem o quanto são meus amigos”, e este mesmo dizia ainda que “enlouqueceria
se morressem todos os meus amigos”.
Quanto
pensamento bonito sobre o amigo, como este: “Nosso verdadeiro amigo é
aquele que nada nos desculpa e tudo nos perdoa”. Até Camões se “atreveu” a
dizer “Do certo e fido amigo é não temer nenhum perigo”.
Só há uma
maneira de manter os amigos: vivos. É lembrá-los, estejam eles longe, já lá no
mais longe, que o passar dos tempos vai aproximando, quer só afastados em
espaço geográfico, ou mesmo os que estão por perto.
Quanto mais
falamos neles, mais cimentamos essa amizade. Nenhum deles necessitaria de mais
cimento, mas é sempre melhor pecar por excesso que por defeito.
Tudo isto parece brincadeira, mas falar de amigos é coisa que
não pode ser feita com tristeza. Mesmo dos que já nos deixaram, porque o que
ficou deles não foi tristeza, mas a muita alegria da amizade.
Um pequeno flash” de uns quantos. Nada de biografias.
***
Em Luanda morava
num prédio de esquina em frente da nossa casa. Num terceiro andar, com janelas
viradas para a nossa rua. Ele, a mulher e os filhos, que continuam, quase meio
século passado e já muitas décadas afastados, a sentirem-se irmãos. Os pais
nossos irmãos e os filhos sobrinhos do fundo do coração.
Amigo desde toda
a vida, era mais novo do que eu, dois dias!
No dia dos meus
anos, ele esperava à janela para me ver sair de casa – trabalhava-se bem nesse
tempo! – e gritava lá do alto:
- Eh! Pá! Ó
Chico! Tás muito velho!
Muitos anos esta
graça! E sempre este carinho.
Nesse dia
costumava haver ou um jantar ou uma fadistice lá em nossa casa. Dois dias
depois uma jantarada na casa dele.
Era muita
canseira, praticamente os mesmos convidados e encontrámos uma ótima solução:
fazer uma festa só, no dia do meio.
1969, lá em nossa
casa, fez-se uma bela farra, com fados e cerveja a correr, que durou até o sol
obrigar os últimos a irem embora, a pôr óculos de sol!
E um fadista se
destacou. Igual ao Marceneiro. Sempre com uma ótima disposição, um amigo para
todas as horas. Um grande parceiro.
1968
O grande Zé
Perestrelo. O Perestrelão. Saudades. Um abraço, forte, lá para cima!
***
1961 – No último
dia do ano, último dia de caça, que a seguir entrava o defeso, com o grande Zé
Neto, fomos dar uma volta pelos arredores de Luanda. Caçámos um belo e velho
antílope, macho solitário, sempre com carne saborosíssima.
Dia 4 de
Janeiro, batizado de um dos nossos filhos. Uns quantos amigos se juntaram e
ficaram para à noite comermos uma das pernas do dito antílope, cozinhado pelo grande cozinheiro Miguel – que um dia
teve que ser dispensado porque, por vezes bebia o vinho que sempre estava
arrumado na cozinha, para eu beber e para os cozinhados, e “esquecia-se” de
fazer o almoço para as crianças (e já eram de meia dúzia) – grande Miguel, do alto do seu metro e
cinquenta, e no máximo uns quarenta quilos de peso, sob orientação técnica dum
belo livrinho de receitas que até hoje a dona da casa religiosamente guarda,
esmerava-se no fogão.
A cena era
simples. Miguel ar compenetrado e atento, perfilava-se para ouvir a dona da
casa, que abria o livrinho, discursava a receita, uma vez só, e no fim
perguntava:
- Miguel! Você
ficou a saber? Não esqueceu nada?
- Sim, senhora.
Não esqueceu.
E partia para a
lide.
Pois a perna do
bicho ficou uma delícia.
No fim do
jantar, num lado da sala, uma mesa de canasta para as senhoras e na varanda
outra de bridge para os homens. Esta teve nesse dia a personagem que operou o
batismo. O padre António... (?), bom vivant, frequentador da alta sociedade,
e... metido a esperto.
Seu parceiro
numa das mãos um tio, sempre alegre,
ótimo companheiro. Não era nenhum campeão de bridge, mesmo sendo muito melhor
do que eu.
Começaram a
perder, porque a dupla Zé Neto e Fernando Fezas jogavam a sério.
Padre António,
irritado por estar a perder, começa a dar sentenças: “em vez de jogar a Dama devia ter jogado o Valete.” Pouco depois ao
darem as vozes de marcação: “Em vez de
três ouros devia ter marcado Três Sem Trunfo”, e outras semelhantes.
E continuou a
encher o saco do parceiro que de repente, já saturado, vira-se para ele e diz:
- Ó padre
António, vá “berdamerda!” E logo a
seguir solta uma daquelas suas gargalhadas, contagiosas, que só ele dava,
deixando todo o mundo à gargalhada!
O padre António
engoliu.
2006
Um copo à tua
saúde de quase 95 anos.
Medalhista
Olímpico de vela em Helsínquia, 1952.
Grande Francisco
Rebelo de Andrade. O Xico d’Água!
***
O mestre do cavalheirismo! Gostava de jogar às cartas,
mas sempre o fazia junto com as senhoras. Nunca jogava com os homens, porque,
dizia ele, alguém tem que acompanhar as
senhoras! Nunca se devem deixar sozinhas, o que é uma falta de educação!
Muito simpático, amável, simples, todas as jogadoras “adoravam” tê-lo a jogar
nas suas mesas. Não reclamava, era um parceiro ideal.
E tinha mais. A única pessoa que eu conheci que, no
meio duma conversa entre amigos, todos numa roda, em pé, copo de whisky, cheio,
na mão, encostava-se a uma janela, braço no parapeito e, devagarinho, ia
fechando olhos até adormecer. E dormia bem, profundamente. De pé!
Mas o copo não caía da mão, nem entornava. Os amigos
chegaram a pregar-lhe um susto, para ver como ele acordava. Serenamente abria
os olhos e entrava na conversa como se tivesse estado sempre atento.
Um ótimo e alegre companheiro, que deixou saudade
imensa. Lutou muito e foi vencido.
Grande Armando Avillez. A falta que faz.
***
Dois metros de altura! Dois metros de gente boa. Nem gordo,
nem magro, mesmo já quando velhote.
Teria uns quarenta e poucos anos foi passar um ou dois
meses em Angola, sócio da empresa representante das calculadoras Burroughs e, como
acontecia com quase todos os que chegavam aquela terra, em breve estava apaixonado
por ela (país!). Chegou a cogitar comprar uma pequena fazenda de café, para o
que, após algumas consultas, nos deslocámos lá para os interiores do Uige!
Havia um intermediário interessado em ganhar uns cobres, um pseudo vendedor de
terrenos e o proprietário à nossa espera.
O intermediário, o
proprietário, o pseudo vendedor e os dois metros de “cliente”
Ninguém sabia qual a área da fazenda, documentação era
abaixo de provisória, o que significava que nada valia, acesso difícil, todo o
mato para limpar, mas nada disso impediu que por lá déssemos uma volta.
Fez-se noite. O dono (?) do terreno tinha uma cabana
de madeira, menos que tosca, e não tinha mais do que uma cama que, gentilmente,
cedeu aos visitantes. Cama de corpo e meio, estreita, colchão de palha, enfim,
comodidades de hotel de 5 estrelas... negativas!
O hipotético comprador disse logo que não dormia com
outro homem! Eu. Mas não havia mais onde repousar o corpo. Decidiu-se então
colocar as almofadas entre os dois e assim nos deitámos. O que sobrava era tão
estreito que nem um de nós dormiu bem! E ele com os pés e um pouco das pernas
que sobravam... para fora!
Não comprou a “fazenda”.
Caçador de perdizes e coelhos em Portugal, a caça em
África era toda outra coisa, e logo o vício aflorou com força. Não lhe chegavam
um ou outro fim de semana. Mesmo durante a semana queria ir fazer o gosto ao
dedo.
A empresa tinha um pequeno furgão, pintado de amarelo
agressivo, o que mais dava nas vistas.
Caça à noite com farolim era proibido, o que não
impedia que muitos, ou quase todos, o fizessem.
Pois o nosso amigo mais do que uma vez, vinha até
nossa casa, aí pelos nove da noite, rua sossegada, ninguém à vista, tocava ao
de leve a buzina e sem sair do carro:
- Chico! Vamos ali à estrada de Catete matar um
javali!
- Olha: primeiro é proibido caçar de noite, pior numa
estrada principal e terceiro os javalis não dão os olhos, não refletem a luz.
Se queres podemos ir amanhã ao fim da tarde, eu saio um pouco mais cedo, mas só
caçaremos até o sol se pôr.
Deixava o carro, entrava, conversámos um pouco e ele
voltava para o hotel... desiludido!
Quando jovem chegou a estudar no Instituto de
Agronomia, onde, no fim do ano letivo, sempre era organizada uma garraiada para
os alunos demonstrarem as suas qualidades tauromáquicas.
Logo inscrito e convocado com “espada” ou
“bandarilheiro”, entrou na arena, em Vila Franca de Xira, e fez uns passes que
mereceram aplausos.
Não tardou a que os espectadores vissem nele a figura do
mais famoso “matador” daquele tempo: o espanhol Manolete, e animados, começaram
a aplaudir e chamar-lhe “Manolete”.
Ficou famoso! E até ao fim da longa vida, ficou sendo
chamado de Xico Manolete.
Grande (mesmo) Xico Manolete. Francisco Andrade e
Sousa.
Um companheiro sempre tranquilamente alegre, dois
metros de simpatia.
13/04/2018
Que tal o Tio compilar os textos e mais tarde publicar?
ResponderExcluirAbraço
Linda homenagem...grande ensinamento!
ResponderExcluirMe lembro tão bem da sua casa em Luanda vista da nossa janela e o pai a contar do gracejo que fazia consigo nos seus anos.
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