De
acordo com a Wikipédia, Santo (do termo latino sanctu, "estabelecido
segundo a lei", "que se tornou sagrado") é tudo aquilo que é
sagrado, ou seja, que está conforme com os preceitos
religiosos e a divindade. Para o cristianismo católico, "santo" é todo aquele que já está no céu, junto de
Deus, aguardando a parusia (segunda vinda de Cristo).
É aquele que “por obras valerosas se vai da lei da morte libertando”,
obras de valor fraterno, social, desinteressado, enfim, ético.
Vamos
falar um pouco de alguns destes homens, um dos quais se não foi santificado por
Roma, foi com certeza por centenas ou milhares de jovens de quem ele cuidou com
total dedicação, total doação de si mesmo, e um carinho de grande pai.
Mas a
verdade é que
eu conheci um Santo!
Já
escrevi várias vezes sobre tão grande amigo. Mas como estou sempre a
recordá-lo, “converso” um pouco mais com a escrita, mesmo sabendo que me estou,
com certeza, a repetir. Mas...
Conheci-o
em 1971, quando fui para Lourenço Marques. Já tinha estado, desde 1967 em
contato com a Casa dos Rapazes de Luanda, a quem dei um pouco do meu tempo e
alguma ajuda, que recebíamos em dobro porque os nossos filhos se habituaram a
compartilhar o que tinham com os mais de cem garotos que ali viviam.
Ao
chegarmos a Moçambique procurámos saber se havia alguma obra semelhante e,
mesmo que diferisse em muitos aspetos, lá estava já a Casa do Gaiato, Obra da
Rua, fundada pelo Padre Américo.
Na
primeira oportunidade fomos visitá-la, levando os filhos, e logo ficámos
atraídos por aquela Grande Obra.
Naquela
altura, partindo do zero em 1968 com um pedaço de terreno, tinha já magníficas
instalações para todos, oficinas, horta, etc.
Os
nossos filhos, os menores, não se cansavam das brincadeiras com aqueles meninos
moçambicanos, órfãos ou abandonados, e até custou a de lá sairmos.
Logo me
comprometi a fazer alguma coisa que estivesse ao meu alcance para ajudar na
construção e manutenção da Obra e uma amizade muito especial se criou com o seu
responsável, o meu muito querido e muito admirado amigo Padre José Maria
Ferreira Costa.
Um Homem
duma humildade que nos envergonhava, trabalhador incansável, uma figura Maior.
Foram
três anos de colaboração, pequena, porque nos dedicámos a diversas outras
coisas, mas que marcou profundamente uma amizade profunda.
Chegou a
independência, o marxismo, a intolerância, e acabaram com a obra, entregando
toda aquela infraestrutura ao comando da polícia. E assim os garotos foram
devolvidos às ruas!
Padre Zé
foi para Portugal. Não se adaptou. Foi para o Brasil onde voltámos a ter o
privilégio de, mesmo poucas vezes, o tornarmos a ter conosco. O Brasil foi a
mentira e corrupção que, endémica, teima em prevalecer, uma inflação monstruosa
e, já dedicado a jovens de rua, precisava de dinheiro para prosseguir. Surgiam
promessas de milhões, mas quando o dinheiro chegava à conta já não valia nada.
O
Presidente de Moçambique e o Arcebispo de Maputo lembraram-se então que a Obra
da Rua merecia todo o apoio possível, fazia muita falta e Padre Zé volta em
1991, para começar tudo de novo.
Em pouco
tempo a Casa já tinha mais de uma centena de jovens abandonados e logo
ultrapassou os cento e sessenta. Dormitórios, escola, oficinas, horta, pomar,
galinheiros e pocilgas, pivot de rega, consultório, e diversas creches fora do
terreno da Casa, construção de casas para velhinhos que haviam tudo perdido com
as cheias, mais creches e postos de saúde, a tudo o Padre Zé, com a sua
dedicação e uma humildade que só os Grandes alcançam, com o formidável apoio da
Irmã Quitéria, a tudo dava o seu saber.
Lá
estive em 2001, e gostaria de repetir.
Para os
garotos da Casa era um grande Pai.
Com a
idade a saúde foi-se deteriorando, mas não baixou, nunca, os braços. Tinha uma
imensa Obra sobre as costas. Mas a passagem pela terra não dura para
sempre.
“Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos”.
Além da muita admiração e profundo respeito pela sua dedicação, aliás
doação total da sua vida, uma amizade muito profunda nos unia, certamente fruto
da minha pequenez face à grandeza da alma deste irmão.
Lembro com imensa saudade ver o Padre Zé, aos domingos, na linda capela
que ele projetou e lá está na Casa de Moçambique, fazer a homilia para aqueles
fiéis moçambicanos que mal falavam português. Padre Zé, sem nunca ter perdido o
seu sotaque do norte de Portugal, voz baixa, sem microfone, sempre um ar
humilíssimo, imensa simplicidade, falava àquele povo que o ouvia em profundo e
respeitoso silêncio, sem possivelmente entender o que ele dizia. Não precisavam
entender. Na frente deles estava um homem de Deus, que os amava, e daquela
alma, daquela boca, só podiam sair palavras que os abraçava a todos, no mesmo
abraço fraternal, no abraço do Cristo que os amava. A bondade em forma de
gente. Homem que deveria ser canonizado.
Não era franciscano, mas um outro Poverello.
Padre José Maria no Rio, em 2014
Para muitos, muitos, que o conheceram, já é um Santo, e um Santo Maior.
A vida segue. Mas o Padre Zé continua a fazer muita
falta.
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Em 1963
chegaram a Luanda os Cursos de Cristandade e pra os orientar um homem, na
altura com trinta e alguns anos, aquela energia e alergia contagiante dos
bascos, um carisma e uma simpatia, que lhe mereceu, como já contei, de um dos
maiores músicos da Guatemala, o nome de Trotamundo Vasco!
Correu,
atrás dos que queriam ser mais cristãos, daqueles que se entusiasmaram com a
tão simples palavra de Cristo, e com tudo isto ganhou milhares de novos amigos.
Guardo
com imensa gratidão e saudade a amizade que nos uniu tão profundamente.
Por duas
vezes fomos visitá-lo em sua casa em Vitoria-Gasteiz, Alava, Espanha, e de uma
das vezes fez questão de ficar em casa de uma irmã e dispensar-nos o seu
apartamento.
Quando
saíamos para almoçar ou jantar, fazia questão que nos fosse servido sempre um
vinho especial, não pelo preço, mas pela qualidade que ele conhecia.
Com o
seu amigo Antonio, levou-nos a visitar diversas localidades, entre elas Loyola,
terra de Santo Inácio.
Na
estrada rezávamos Dios te salve Maria... e, findo o terço, as conversas
eram sempre alegres. Aí por 1965, na primeira visita a Vitoria, apresentou-nos
o pai, um basco durão! Fora toda a vida construtor de cangas para bois,
e considerado o melhor. Fomos vê-lo em sua casa. Sentado numa cadeira em frente
da televisão, de costas para a porta, boina basca na cabeça, o filho diz-lhe:
Padre. Aquí son nuestros invitados. Resposta do senhor, sem voltar a
cabeça: Olá.
Muito
rimos.
Não era
um franciscano, mas o tipo de São Paulo, lutador incansável.
Já muito
escrevi sobre Don Vitoriano Arizti. Mas é dos amigos que jamais poderia
esquecer.
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Mais uma
figura que marcou as nossas vidas. Também sobre ela já escrevi, mas hoje decidi
juntar na mesma crónica, uma pequena lembrança daqueles que nos deixaram, e
marcaram as nossas vidas, através da Sua palavra e das suas atitudes
Há menos
de dois anos escrevi sobre este Homem que aguentou estoicamente o tempo
colonial e quando viu o seu país, Angola, aceder à independência, o seu
sofrimento aumentou muito.
D. Eduardo André Muaca, nasceu em Cabinda em 1924. Em
1970, o Papa Paulo VI nomeou-o bispo auxiliar de Luanda, sendo o primeiro padre
oriundo de Angola a ser ordenado bispo, depois arcebispo de Luanda, quando
padeceu nas mãos da ortodoxia soviética angolana.
Ele mesmo me contou o quanto foi difícil a perseguição
à Igreja Católica.
Presidiu à Conferência Episcopal de Angola durante uma
década e em 1985 pediu ao Papa João Paulo II a renúncia do cargo por motivos de
saúde. Ainda o procurei em Portugal, mas tinha saído não lembro já para onde, e
quando fui a Luanda, em 1991 por um quarto de hora também não o consegui ver.
Tinha acabado de sair para Cabinda. Dois abraços que ficaram por dar. E perder
o abraço dum amigo que se estima muito e admira... custa.
Dom Eduardo Muaca, ainda cónego, 1967, 43 anos, cara
de jovem!
"Figura de grandioso relevo da Igreja em
Angola", é como o definiu na altura o bispo auxiliar de Luanda. Uma
inteligência profunda e serena. Um africano autêntico com uma roupa
branca.
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Em 1946,
por bom e tranquilo comportamento, fui convidado a sair do Liceu
Pedro Nunes, costuma dizer-se, expulso! Em Lisboa. Estava no 4º ano (hoje a 8ª
série?).
Tinha
perdido o meu Pai nos finais de 43, a família decidiu espalhar-nos por colégios
diferentes – costumamos chamar-lhe “a diápora dos Amorins” – o ano de letivo
44/45 passei-o em Santo Tirso, e me dei muito mal com aquela gente, saindo de
lá mais bravo do que entrara, voltei ao Liceu, e em Fevereiro de 46 perdi o meu
irmão mais velho, o Luis, que era quase o único com quem conversava, sensato,
tranquilo, que eu, muitas vezes ouvia.
Fiquei
sem “porto de abrigo” e comecei a ser um rebelde. Não estudava, faltava às
aulas e ia jogar bilhar (sou péssimo no bilhar), dava uns tapas nuns meninos
metidos a gostosos, também não perdia uma brigazinha com estudantes de outros
estabelecimentos e quando se fez a fotografia da minha classe com os
professores, tudo muito bonitinho, eu, na frente fiquei ostensivamente a fazer
um grande manguito.
Parece
que os professores não gostaram, nem o reitor do Liceu que fez bem em afastar este
“perigoso” elemento!
Meio
perdido, apresentaram-me a um padre, Diogo Crespo, excelente pessoa, creio que
franciscano, chefe de redação da revista FLAMA, revista da Juventude Escola
Católica.
O
exemplar mais antigo que encontrei na Internet – 21-Maio-1951
São
passados 72 anos mas recordo-o com alguma precisão, com hábito de frade menor.
Alto (eu ainda era bem cambuta), simpático, decidiu “tomar conta de mim”
durante algum tempo. Lembro bem de ir visitar a gráfica onde se imprimia a
revista, onde eu ficava um bom tempo entusiasmado a ver tudo aquilo, grandes
máquinas pelo agora um tanto obsoleto sistema de heliogravura em chapas de
cobre!
Depois
saíamos e andávamos um bocado pela cidade... conversando, já não sei sobre o
que.
A
verdade é que baixou a minha “reguilice” e voltei a ser uma pessoa... quase
normal.
Saudade,
padre Crespo.
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Já no
Brasil, e sobretudo no Rio de Janeiro foi difícil envolver-me com algum grupo
católico que se deixasse de lamúrias e partisse para a ação. Tentei várias
hipóteses, mas não estava disposto, nem estou, para perder tempo com conversa
mole.
Mesmo a
igreja onde costumava ir à Missa decidiu arranjar uma banda de música, tipo
rock-and-roll para tocar em algumas partes da Missa. Uma barulheira horrível
que ecoava no amplo recinto da igreja, aquilo configurou no meu espírito, talvez
um pouco, ou muito, arcaico, uma palhaçada.
Passei a
ir a uma capela numa pequena casa de freiras carmelitas, relativamente perto de
nossa casa, onde a Missa era celebrada com dignidade.
Um dia
surgiu um novo padre. Novo na capela, um padre desempoeirado, com sotaque
estrangeiro, uns sessenta e pouco anos, forte alto... um pouco de barriga a
mais, mas que sabia que a Missa era um momento de elevação e meditação.
Gostei
do senhor e um dia, finda a Missa fui procurá-lo. Comecei por lhe perguntar
como se chamava:
“Já que
pergunta, é Jacques”! Gostei,
e voltei com outra pergunta::”O senhor quer dar-nos o prazer de almoçar
conosco uma destes dias?” - “Quando?”- “Quando quiser.”
Abriu
uma pequena agenda olhou e disse: “Quarta feira!” – “Combinado.”
Lá me
disse onde devia ir buscá-lo e tudo começou a correr normalmente.
Passou a
vir a nossa casa, talvez de quinze em quinze dias, holandês, estava no Brasil
desde os anos 60, culto, alegre, um bom companheiro e um bom garfo.
Eram
almoços deliciosos, porque a conversa corria, boa e alegre.
Sempre
convidava o meu grande amigo Alberto Borges para estar também presente, o que
ele não perdia.
Um dia o
almoço era rabada de boi. Estava também o Luis, filho, que já tinha terminado o
seu prato e o padre Jacques tinha o dele cheio de pequenos ossos. Não fez
cerimónia. “Luis, posso por estes ossos no teu prato?”
Foi um
bom companheiro.
Entretanto
fomos à Europa e no regresso estranhei não o ver. Tinha tido um AVC e estava
inutilizado.
Mais
outro amigo que partira.
5/5/18
Meu Caro Francisco
ResponderExcluirNesta tua prosa, como sempre magnífica, falas do Padre Crespo, João Diogo Crespo, que era primo direito do meu Pai mas mais irmão que primo e que muita influência teve na minha formação global e não apenas religiosa. Um bem hajas duplo por esta recordação com um abraço do
ZCViana
Extraordinária coincidência!