quarta-feira, 26 de julho de 2017


Poliglotismo Babilónico


Já uma vez escrevi sobre Babel. Diz a Bíblia que Deus decidiu misturar uma porção de línguas para que as pessoas não se entendessem, face ao desregramento de vida dos povos de antanho.
Hoje em dia falam-se centenas – ou milhares? – de línguas através desta Gaia (ou Geia?), há milhões de dicionários, tradutores simultâneos, até eletrônicos, mas quem enrola a língua ou não se entende com o outro... só pode socorrer-se de gestos, ou, o mais comum é levantar a voz como se isso fizesse o interlocutor “entender” a mensagem.
Vou começar por pedir que desculpem a minha verdadeira imodéstia, quando começo por afirmar que sempre tive alguma facilidade para, com alguma rapidez, entender boa parte das línguas strane com que me tenho deparado durante a vida.
Até uma vez servi de intérprete entre um japonês, que “falava” alemão à moda de Tóquio e um alemão que, além da sua língua, se entendia comigo em francês. Não sei se já escrevi esta “aventura” no blog. Vai a seguir!
Mas tem outras histórias, que mesmo tendo sido vivências minhas, ainda agora, ao lembrá-las me fazem rir.

1957
Comprei um carro – novo – e fui buscá-lo a Paris para levar para Angola. Um modesto, mas belo Simca Aronde, 1300 cc. Cheguei lá nos últimos dias em que me podiam atender, porque depois o pessoal ia para férias. Para levantar o carro entreguei toda a minha documentação – passaporte, carteira de condução, comprovante da compra feita através do representante em Portugal (com o meu grande amigo Carlos Mariano de Carvalho) e já nem sei o que mais – e recebi “a máquina” novinha. Enquanto tratavam da papelada, fui dar umas voltas por Paris, previamente avisado para não sair da cidade, esperando que uns dias depois me devolvessem a dita documentação, para poder então meter-me à estrada a caminho de Lisboa.
Estava com a minha irmã. Num dos “tours” pela Cidade da Luz consegui vislumbrar um espacinho bem mixuruco para estacionar; ali deixamos o carro e fomos passear nas Galeries Lafayette, sem dinheiro para compras, nem pressa de lá sair porque nada tínhamos para fazer.
À saída, quando estava a abrir a porta do carro vêm dois indivíduos à paisana, viram a gola do paletó para mostrar algum distintivo que eu não entendi o que seria (pensei que eram antigos combatentes de II Guerra !!!) e pediram-me os documentos do carro. Como disse, não tinha documento nenhum!
E os “caras” queriam multar-me porque o tal espacinho mixuruco era o lugar onde paravam os ónibus! O localizador era tão diferente de Portugal que eu nem me apercebi o que seria, e disse que não fazia ideia do que aquilo era. (Evidente que estava a falar francês com eles, né?)
Os “caras” ficaram um bocado chocados com a minha resposta e disseram:
- Você é parisiense e não sabe o que isto é? (Evidente que falaram francês, né?)
- Mas eu não sou francês. Sou português.
- Há quanto tempo vive em Paris?
- Dois dias.
- Então mostre-me um documento provando que é português.
- Já disse que deixei o passaporte e toda a documentação com a agência que está passar o carro para meu nome.
Vasculhei na carteira e encontrei o bilhete de identidade português, completamente diferente do francês (não havia União Europeia, nem à vista!). Comentário deles:
- Você fala tão bem, como um parisiense! Bom, acreditamos. Pode ir embora. Mas tome atenção: aqui em Paris, quando vir um espaço para estacionar... não estacione! Normalmente é proibido!
Rimos, ainda conversámos um pouco, mas eu saí de lá quase convencido a ser professor de francês... na Sorbonne!

1961 –
Andei, um pouco mais de três meses fazendo cursos e visitas profissionais a várias empresas em França, Bélgica, passámos em Inglaterra, Dinamarca, Alemanha e Suíça.
Em Paris fui à Foire National de l’Agriculture (uma maravilha) onde visitei e discuti diversos assuntos com alguns expositores. Num deles o big-chef não estava e pediram para eu voltar no dia seguinte. Mas entretanto tive que ir a Bruxelas onde me demorei uns quatro ou cinco dias. No regresso voltei à Foire, ao mesmo expositor, e quando pedi para falar com o tal chefe, o sujeito que me atendeu chama para dentro: Mr...? Voici le belge qui veut te parler!
Imagina: estive fora de França 4 ou 5 dias e já voltava com sotaque belga!
Fartei-me de rir com isto.

Pouco depois atravessámos – a minha mulher ia comigo – o Canal da Mancha, Calais-Dover, e ao chegar aos “britons”, passagem na alfândega. Vistoria do carro e das malas. Depois de três meses a falar francês o meu inglês estava totalmente bloqueado. O inspetor fazia perguntas que eu entendia, mas não era capaz de responder mais do yes ou no/not. Olhou para mim com aquele ar de superioridade britânica e mandou-me embora.
Demorou quase 48 horas para que o anglo-saxónico dialeto viesse ao de cima (à cabeça).

De Inglaterra seguimos de navio – carro e tudo – para a Dinamarca, onde chegámos bem cedo, uma manhã gélida, quando na véspera em Londres os termómetros marcaram 25° C (não Fahrenheit!). Eram oito da manhã, estava com o cabelo muito comprido, e na cidade de Esbjerg parti à procura dum barbeiro. Lá descobri, pendurada, uma placa que dizia Frisør.
“Tem que ser aqui – disse eu – mas devo de lá sair cheio de caracóis! Todo frisado.”
Era. Na velha linguagem de gestos, mostrei que queria o pêlo cortado e mostrei mais ou menos o tamanho residual que pretendia, de imediato entendido pelo profissional.
O especialista cortou muito bem, por fim trouxe um espelho para eu ver - estava ótimo - e fez uma pergunta toda dinamarquesa de que eu só entendi a palavra “shampoo”. Boa ideia, lavar a cabeça.
Pois o senhorzinho deu-me um esfrega craneana que saí de lá meio tonto... mas com o cabelo muito bem cortado, lavado e cheiroso!

Dali entrámos na Alemanha, o belo Simca começou com um barulho na roda direita traseira. Fui ver: tinha quebrado um dos parafusos que segura a roda. Chegados a Hamburgo, fomos ao hotel e dali nos indicaram uma oficina. Perto.
Veio o encarregado, em “perfeito alemão” apontei para a roda onde faltava um parafuso que se quebrara e tinham que tornear um novo. Mandou um yugoslavo, há quinze dias na Alemanha, para me atender. Olhou, viu o que precisava e num alemão pior do que o meu – que era mais ou menos só Volkswagen e Telefunken – disse, em linguagem eslavo-germânica que o carro ficaria pronto no dia seguinte às dez horas. Quando eu quis certificar-me que era mesmo às dez horas... o caldo entornou. Ele não entendeu nada, gerou-se uma babel perfeita. Aí, dona Gabriela, que em jovem tivera uma professora de alemão, busca nos seus pergaminhos intelectuais a bela linguagem de Goethe e, pausada e perfeitamente, pergunta se era mesmo às 10 horas que o carro estaria pronto.
O tal mecânico yugoslavo olhou para mim com vontade de me apertar o pescoço, como quem diz: “Este cretino tem a mulher que fala alemão e fica aqui a perturbar-me”!
Ficou pronto. Ótimo.

De volta ao hotel fomos jantar. Veio o distinto garçon, entregou a cada um o conveniente Menü e, postado como uma estátua, aguardou instruções.
Pergunto à esposa amada:
- Que tal umas costeletas de porco com batatas fritas?
- Acho ótimo.
- E um copo de cerveja?
- Sim.
Virei-me para o garçon:
­- Zwei Schweinekoteletts mit frites. Und zwei bier.
O impecável funcionário anotou tudo, e perguntou mais
- Sw#zeinen*haiertu§gquer@tzars... etc.
Como seria de esperar não entendi nada do que ele disse e respondi-lhe calmamente, em português, acompanhando com um gesto intelectualizado:
- Já não sei mais nada de alemão!
O sujeito fez um ar de grande espanto, também não entendeu, é evidente, foi embora, e enquanto não chegava com a deliciosa cerveja e mais os magníficos petiscos, a minha mulher, espantada:
- Onde é que você aprendeu alemão?????
- Aqui mesmo: Schweine vê-se logo que é suino, koteletts... igual e bier também!
Estava ótimo o jantar. Só que tiver que pedir, para mim mais umas bier!
No dia seguinte, Simca como novo, rumamos ao sul, onde na cidade... (esqueci qual) havia outra empresa a visitar. Hotel reservado, à entrada da cidade, uma porção de ruas, paro o carro e com o meu melhor sotaque à la Nietzsche, pergunto a um Inkognito Bürger :
- Bitte schoen! Hotel...”x” ?
Amável, o senhor bürger fez uma perfeita explanação do caminho a seguir. Tudo em correto deutsch:
- Erste Straße links, dritte auf der rechten Seite, zweiter von links, etc.
­­- Danke schoen!
Gravei tudo como se fosse um gravador: primeira à esquerda, terceira à direita, segunda à esquerda, etc., e quando a minha mulher perguntou o que ele tinha dito, eu pedi-lhe para não falar comigo que estragava a gravação.
Já lá para o centro da cidade, volto a parar e pergunto de novo pelo tal hotel.
Desta vez a conversa foi mais simples. O sujeito apontou: estávamos a dez metros da porta do dito!

1966.
Na época em que trabalhei em Angola com material fotográfico e ótico, um dos campos mais interessantes para atuar era a área cientifica, como raios X, artes gráficas, heliografia e microscopia.
Representávamos a Leitz, fabricante da famosa máquina fotográfica Leica e de uma completa gama de microscópios para todos os fins. Muito houve que aprender nesse campo, para poder trabalhar esta área, discutindo propostas com investigadores, universidade, laboratórios, etc.
De entrada, a fábrica alemã com aquela disciplina boche inflexível, não acreditava muito que uns sujeitos lá perdidos numa África longínqua e ignota, cheia de leões e cobras, e ainda não independente, fosse capaz de os representar com a dignidade que a sua tradição e qualidade impunham. E assim só nos iam vendendo, sem exclusivo, até que demonstrada a nossa primazia no mercado, acabaram por se render à evidência.
Com alguma regularidade era necessário ir a Wetzlar cidade pequena, com trinta e poucos mil habitantes, antiga, bonita, quase toda construída dentro de muralhas medievais, ficando a fábrica na parte exterior da cidade junto a uma das suas portas.
Era uma reciclagem para aprofundar conhecimentos, discutir condições, preparar ofertas especiais, sobretudo a propor algum material mais específico à universidade, que se estava ainda a expandir em Angola e necessitava de bastante equipamento.
Fábricas deste porte têm sempre funcionários técnicos que falam praticamente todas as principais línguas européias, e assim sempre éramos recebidos por alguém que falava francês, inglês ou espanhol, esta que é quase a nossa línguaum pouco modificada!
Dominando com facilidade o francês e inglês nunca foi problema entender-me nos diversos cantos da Alemanha por onde andei.
A Leitz tinha uma representação própria no Japão, e do mesmo modo era necessário que técnicos e pessoal de marketing japoneses estagiassem na fábrica, com as mesmas finalidades. Os que a representação japonesa ali mandava eram previamente submetidos a um curso intensivo de alemão por um período mínimo de seis meses, e só seguiam para a Europa depois do professor os considerar aptos a fazerem-se entender.
Numa dessas visitas foi destacado para trabalhar comigo um rapaz novo, alemão como seria de esperar, muito educado, recém saído da faculdade, atleta que pertencia à equipa de remo alemã. Falava muito bem francês, além do alemão. Um desportista.
Os problemas a discutir eram comuns a Angola e ao Japão, e como o delegado japonês teria aprendido o alemão, juntaram-nos os três. Tudo parecia muito certo porque o jovem alemão falaria com os dois. Para um lado alemão, para o outro francês. Perfeito.
Apresentação logo pela manhã. Nomes já foram esquecidos, mas seriam os senhores Oshiro Nakagawa e Ludwig Bismarck!
Oshiro Nakagawa associava sempre o aperto de mão, ocidental, a uma porção de várias e longas vénias, à oriental.
Depois desta pequena demonstração de ginástica amarela passámos ao trabalho e eu disse ao Ludwig que começasse pelos problemas do Japão, que eu iria com isso aprender bastante, uma vez que o japonês era um técnico, e além disso os termos dos diversos componentes do microscópio teriam, em qualquer caso, que ser mencionados em alemão, e até referenciados pelo catálogo.
Oshiro Nakagawa mais uma vez inclinou a cabeça e as costas umas quantas vezes a agradecer eu ter-lhe dado a primazia da palavra, mesmo sendo ele nessa ocasião muito mais novo do que eu. Mas tudo bem.
Começa o oriental, em alemão dantesco:
- Ya. Shii....  tsu...  funtsé... nhóshini... aká... tsirô!
O Ludwig ficou roxo, apopléctico! Nunca tinha ouvido tais frases na sua língua. Perplexo olha para mim com cara de quem pede socorro, mas eu, de alemão, pouco mais sei do que pedir uma cerveja nos bares! Com aquela explanação genuinamente alemã do japonês não me contive e ri com vontade. Oshiro, sorriso amarelo, peculiar, olhava para os dois, a ver qual teria coragem para lhe responder!
Para salvar o alemão de ser despedido por incapacidade, atrevi-me a dizer-lhe, mas desta vez em francês mesmo:
- Pergunte-lhe, falando alemão b e m   d e v a g a r,  se o que ele quer saber é este problema... assim, assim - já nem lembro o que seria. Alguma coisa a ver como fazer determinadas observações especiais.
- Você acha que é isso?
- Pelos gestos e sotaque, talvez seja! - e ria-me.
O Ludwig, alemão, ar de condenado ao cadafalso, não acreditando muito no que eu lhe dizia, mas sem outra alternativa arriscou. Nakagawa subiu aos céus. Era aquilo mesmo. Olhando ora para um ora para o outro, os dentes brancos aparecendo, feliz:
- Ya... Ya... Ya... Gut. Gut. Gut.
Bismarck naquele momento, se estivesse na sua mão poder fazê-lo, creio que me teria condecorado! Tinha-o safado de uma enrascada grande, sobretudo se ele tivesse que ir dizer ao seu chefe que não entendia o alemão do japonês!
Do mesmo modo o Oshiro Nakagawa nomeou-me seu interprete ad semper! Ficámos o dia todo juntos, e por incrível que pareça conseguimos discutir, com este método de tradução esotérica, todos os problemas que tínhamos agendado para aquele dia.
Durante o almoço, no refeitório da fábrica, ficámos também juntos e até fomos capazes de conversar com os funcionários que estavam na nossa mesa!
Cinco horas da tarde, quer faça sol ou chuva, os alemães viram-se para nós e
- Auf wiedersien! Bis morgen! - Passem muito bem! Até amanhã! - e põem-nos na rua.
O hotel do Nakagawa e o meu não eram o mesmo, mas o perdido japonês, não desgrudou do meu lado!
Era fim de verão, tempo agradável, e como nos tinham dito que podíamos frequentar o bar do clube do pessoal da fábrica, num lugar muito simpático, com um terraço encostado às muralhas, sobranceiro do rio Lahn, aí fomos petiscar e beber umas cervejas. Aquelas cervejas alemãs, que são todas ótimas.
Chegámos cedo, mais ninguém além dos dois, sentámo-nos numa mesa bem no canto do terraço de onde se avistava maior trecho do rio e do campo. Uma vista linda. O sol a pôr-se lá no fundo.
A nossa conversa era ótima, como se pode imaginar. Foi chegando gente. Trabalhadores da Leitz, alguns acompanhados da mulher ou de amigos. Vendo aquela conversa estranha mas que divertia os interlocutores, foram-se aproximando. Primeiro para ver que dialeto estaríamos falando! Depois para participarem do papo! Eles falavam alemão, eu tinha que lhes explicar, numa linguagem mista de inglês, francês, gestos e cinco por cento de alemão, que ele falava comigo também em alemão, e que eu respondia como podia! Nunca tinham visto nada parecido por ali. Aliás nem eu! Foram trazendo cadeiras e rodeando a mesa, quase todos insistindo em nos pagar ein bock, talvez em retribuição pelo espetáculo gratuito que lhes estávamos proporcionando! Pena que não pudemos bebê-las todas!
Foi uma noite sensacional. Rimos, conversámos, num entendimento especial, numa língua que não era a alemã, porque eu não a falava, muito menos o ex-estudante japonês, e nem os alemães falavam outra coisa. Eram como eu, acabavam sempre por entender um pouco daquela misturada de sons e gestos!
Acabou a farra depois das dez da noite, hora a que fechava o clube, porque havia trabalho no dia seguinte, com muito pesar de todos os presentes que se divertiram à grande.
No dia seguinte ainda me encontrei com Oshiro à entrada da fábrica, mas foi pena, não nos voltámos a ver.
Creio que se eu não aprendi nada de japonês, ele deve ter desaprendido o alemão que parecia não ter alguma vez chegado a saber! Mas que foi uma grande farra, lá isso foi!

1973
Trabalhava em Moçambique, no Banco – BCCI –o meu departamento era o de Relações Públicas e relações relacionadas, e sou mandado a Itália, Milano, fazer um pequeno estágio de uma semana, junto ao nosso correspondente a Banca Commerciale Italiana, talvez o maior banco comercial de Itália.
Tudo marcado, dia aprazado, bem cedo apresento-me no Banco e procuro pelo diretor que estaria à minha espera. Molto ammabile, conversamos tutta la mattina, almoçamos juntos e a seguir ao almoço foi levar-me a um qualquer outro departamento. Quando me apresentou ao diretor dessa área, o pobre coitado, faz um ar de terror, pergunta como ia falar comigo se ele parlava solo italiano, mas o meu anfitrião principal logo lhe assegurou com esta frase simples:
- Non ti preoccupare, lui parla di tutto. Mescolando italiano, francese, spagnolo e portoghese, abbiamo capito magnificamente.
Foi uma semana ótima. Fiz muitas perguntas, aprendi alguma coisa, sendo uma delas que a banca italiana estava vários séculos à frente da portuguesa! No final eu já parlava mesmo tutto!

2017
O difícil está em pronunciar, escrever ou entender o significado destes pré-históricos nomes hoje desinventados por brasileiros, como Karolhny, Dhiãnah, e outros que explicam porque se continua a votar tão mal!
Instrução (falta de), ou esperança de que um ou dois “h” ou “y” a mais, aristocratizam a estupidência.
王八蛋, ou como dizem os gregos σκύλα που γέννησε.

21/07/2017


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