Caminhos do Sol - 3
Por Jorge Ferrão
Vamos continuar a visitar mais umas praias de Moçambique... e a ficar cheios de inveja por lá não podermos estar! Mas não é difícil! É só programar para as próximas férias!
A
Praia do Mia
No
começo era apenas
a praia da Cabaceira Pequena. Os
residentes
locais, pouco
propensos a nomenclaturas,
sempre a trataram-na apenas como Mangal. Na realidade, este é um dos
mais bem preservados mangais de Mossuril. Em 2001, muito por culpa de um
fotógrafo Holandês, a praia do Mangal foi transportada para o mundo. Depois,
reconvertida em projecto, ganhou nova denominação. Passou a praia do Mia. Mia
Couto. Duvido que ele saiba. Ou se alguma vez saberá. Nem acredito que ele se
importe, desde que a praia continue
sendo respeitada, preservada e usada para o bem-estar
e benefício de todos.
Foi,
então, o dito cujo holandês de câmara a tiracolo quem decidiu, ainda no
longínquo 2001, idealizar um projecto turístico para Cabaceira Pequena. Do
livro, Árvore do Frangipani, do escritor Mia Couto, extraiu um trecho que
reflectia a Cabaceira nos dias que navegam. “... Aqui é onde a terra se deita,
onde o tempo se despe e onde os Deus vêem rezar”. Melhor descrição não poderia
ter sido feita. O letreiro tem alguns erros ortográficos, mas disso ninguém se
importa. Não existe transeunte nenhum que não pare para correr suas vistas
pelas letras, agora perdendo seu brilho. Assim, sem mais
e nem porque, o local virou praia do Mia. Pura criatividade de banhistas.
A
sentença ditada pelo escritor sobre a Cabaceira Pequena já antes havia sido
feita pela própria natureza, passam-se 300 anos. A Cabaceira Pequena é um
lugarejo discreto, mas sinistro. Acordou, um dia, às escuras e assim permaneceu
durante décadas. Depois da partida do Governador Pereira do Lago, antigo
Governador-geral da Ilha Moçambique e, consequentemente, de Moçambique, a terra
se deitou irremediavelmente. As monções mais não fazem que aprimorar esse sono.
Se a ausência de qualquer progresso tem sido espantosa, pior tem sido a nudez
que tomou conta das vergonhas e das intimidades das suas gentes e da própria
natureza. O local anda tão esfarrapado, que os Deuses se recusam a qualquer que
seja a reza. O único que ainda cruza os dedos é o supremo do Mangal. Os corais,
esses afastaram-se tanto do mar, e
viraram museus. Cabaceira Pequena pode ser o único lugar do planeta onde o
gigante mar se assustou e regrediu.
Cabaceira
foi terra predilecta de Vasco da Gama. Árabes, Persas, Chineses e Turcos. O
poço de água doce que alimentou caravelas e naus, permanece intacto, porém a
maior parte do ano sem os líquidos condignos. Outrora, quartéis do Capitão
Rufino, as últimas referências assentam nas famílias Matiria Machon e Long
Fat e ainda do português Massa. Agora, nem as sombras dessa elite se deitam
mais no local. Os esqueletos dessas sombras sim, vagueiam desafiando as
contrariedades do fotógrafo holandês, que com mestria fez de suas fotografias
vida. Os investidores criaram a empresa Frangipani Limitada. Foi um
italiano que deu o seu nome a árvore. Mossuril é um paraíso de frangipanis.
Para complementar a obra, a empresa Frangipani designou o projecto por Varanda. Não é tão evidente que seja Varanda do Frangipani. Mas, é Varanda. Para ousar e inovar a Varanda gerou o Coral Lodge.
Coral
Lodge 15.41, é um conjunto de 10 bangalós muito expostos, aos ventos e almas,
mas preserva excessivas privacidades para os humanos. Os quartos, ou
quartos-salas são de tal maneira amplos que dispensam ares frios artificiais.
Somente as camas escondem os ares que a natureza nem sempre nos oferece. Bem
por cima de cada cama, tem um ar condicionado. Parece, de forma acertada, uma
medida de austeridade, em momentos
de contenção, e que se alinham perfeitamente com os cuidados
ambientais.
Coral
Lodge é, também, o nome de uma instância turística no Panamá, que não tem nada
a ver com o Coral Lodge 15.41 que são as coordenadas para chegar ao local. O
acesso pode ser feito por Nampula, Lumbo, Pemba ou Nacala. Duas horas a partir
do aeroporto de Nampula e ¾ de horas de outros pontos. No começo eram cerca de
50 trabalhadores locais os que, com bravura, aceitaram o desafio de construir
algo na ponta mais estreita da Cabaceira. Misto de material local e
convencional. Hoje o número de funcionários reduziu para 40. No grupo, alguns holandeses, incluindo
o chefe da Cozinha.
Uma
vez no local o que mais chama a atenção, depois do letreiro do Mia, seria até o
Mangal. Mas, os tons azuis, e azul-marinho das águas, em momentos de maré
cheia, deslumbram. No interior do Coral Lodge 15.41 os móveis de madeira de
coqueiro, fazem inveja a quem vive importando madeiras de outras árvores ou
países. Nunca essa madeira foi tão valorizada. Agora tenho o coqueiro como amigo e aliado.
Para reforçar e ressalvar o brilho e o requinte
desta soberba madeira,
o lodge decidiu por lâmpadas
de LED, todas elas com apenas
1 volt. Assim, foi decretado um inconformado romantismo de luzes. Engana-se
quem julgar que os livros do Mia estariam espalhados por todas as suites.
Só existe um único livro. O livro já desapareceu algumas vezes, mas por algum
milagre retorna ao SPA. Aliás,
o SPA também vale mesmo a
pena. Faltaria incorporar mussiros, argilas (nhtope) e as algas da Ilha.
Teríamos, então, um SPA mussurilizado
e internacional. Melhor, mesmo, seria ir passar a temporada, usar o SPA e assegurar que leva consigo o
livro ou os livros do pseudo proprietário da
praia.
Virou
moda os turistas doarem uma gorjeta para um Fundo comunitário. Coral Lodge
15.41 assimilou a moda. São apenas 2 dólares. Ideal deveria ser 15 e 41 para
fazer jus ao nome. Como faria bem que existisse algo regulamentando para estas
doações. Os comunitários da Cabaceira ainda pensam como usar o fundo. Os
proprietários do Lodge querem ter os detalhes do que será feito com a massa.
A letargia dos residentes vai perdendo as rotinas. Visitas guiadas atrapalham os continuados repousos. Busca-se um
entendimento sobre a história de um povo que vive de história e de passados. Os
diálogos mais parecem monólogos. A mímica resolve, no final.
Coral
Lodge 15.41 é a mais recente novidade das praias de Nampula. Já recebeu
turistas da Europa, Ásia e dos EUA. Por ser de 5 estrelas, os pacotes
oferecidos, vão de encontro às constelações financeiras. Porém, para além da variedade
de produtos turísticos, os visitantes podem desfrutar de um regado velejar pela Ilha de Moçambique, de uma abundante fauna
marinha e ainda mergulhar nos últimos corais que resistem ao tempo e as
mudanças climáticas.
O Misterioso Lago Ntandazimu
Ntandazimu, é como os locais o designam. Um pequeno e estranho lago no interior da Ilha Vamizi. Por ser de água salgada,
quase não é visitado. Apenas para um ritual anual. Não se sabe se os espíritos
ajudam na pescaria, mas os poucos ilhéus, sobretudo os mais jovens, desconfiam
de tanto mistério. O lago tem aproximadamente 10 metros de diâmetro, águas
límpidas, de cor verde turquesa e, em dias de sol intenso, as águas se
confundem com um grande lençol estendido por baixo da vegetação. Em tempo, nem
por isso tão remoto, um caçador disparou sobre um conjunto de rolas, numa
árvore próxima do lago. Era final de tarde e ele desesperava por alguma presa
que fosse. Depois do tiro, uma das rolas resvalou e, enquanto ajustava os
últimos equilíbrios, caiu no interior do lago. Ali ficou prostrada e sem
indícios de que fosse afundar.
O
caçador seguiu com os olhos seu percurso e, sem muito esforço, deu conta que a
presa estava bem próxima. Esfregou suas mãos de contente. Antes que a rola
desaparecesse nas profundezas do lago, decidiu despir-se e buscar seu troféu.
Assim que mergulhou, de cabeça, sentiu que embatera em algo inexplicável. Tentou,
enfim, nadar e parecia que a água lhe amarrava os braços. Atordoado, suspendeu
os movimentos e deu conta que flutuava sem esforço, bem próximo da sua presa.
Valeu-lhe o grupo de pescadores que, alertados pelo estrondo, foram seguindo a
cena a par e passo. Aproximaram-se e esticaram-lhe um caule de outras funções.
Trazido de volta a terra firme, o caçador sentiu sua pele cozida. Continua
vivo, em Mocímboa da Praia, porém debilitado e sem munições. Nunca mais caçou.
Outros
episódios sucederam-se no lago Ntandazimu. Regra geral, qualquer criatura que
por descuido ou infelicidade caí no lago nunca afunda. É a maldição dos
espíritos. Cada um dos episódios é narrado em diferentes sabores e tons. O lago
Ntandazimu não possui nenhuma espécie de vida. Não existem peixes, nem algas ou
outras plantas aquáticas. A explicação para tamanha raridade advém dos altos
níveis de salinidade da água. O lago fica a
sensivelmente mil e quinhentos metros do mar,
porém bem abaixo do nível do mar. Esta localização confere
características típicas de outros mares interiores, com iguais ou superiores níveis de salinidade. Os estudos provam que para
cada 100 mililitros de água salgada, nos oceanos
e mares normais, existem cerca de 3 gramas de sal. Todavia, nas águas
interiores e sem misturas, para a mesma proporção de água, chega-se a registar
mais de 30 gramas de sal, quer dizer, dez vezes mais que o normal. A elevada salinidade
explica-se pela evaporação natural e pelo facto de quase nenhuma água doce
fluir para aquele lago.
Da
última vez que espreitei o lago Ntandazimu conversei demoradamente com o ancião
que simultaneamente faz papel de guarda e porta-voz entre os espíritos e os
visitantes. Ansiava por novos episódios, mas ele não tem mais nada para contar.
Agora, fá-lo a troco de desembolsos. Recordou-me que as visitas ao lago
continuavam proibidas. Ainda assim, visitantes interessados - meu caso - se
sujeitavam às taxas de conveniência. Quanto maior o interesse pelo lago, mais
caro o acesso. Afinal, aquele era seu trabalho e os pouquíssimos residentes
locais haviam a ele confiado, essa dificílima tarefa.
Estudos
oceanográficos sugerem que lagos e mares interiores possuem, em suas águas, não
apenas cloreto de sódio, como também magnésio, potássio, cálcio e brometo. Esta
combinação se mantém intacta por força da ausência de movimentos da água.
Mergulhar é praticamente impossível. Nadar exige técnica apropriada. O ideal é
flutuar. Até quem jamais nadou, pode flutuar que nem uma rolha. O mar morto, é
disso um exemplo; e aos visitantes, é expressamente recomendado, que observem
cuidados extra especiais para nadar. Os banhistas devem, invariavelmente,
entrar para a água de costas, não molhar nunca a cabeça e permanecer calmos.
Mais interessante ainda é o facto de estes lagos possuírem efeitos curativos
excepcionais.
O Lodge de Vamizi, agora
galardoado como um dos melhores do continente africano e do mundo na sua
categoria, deveria explorar, sempre com o seu guarda, os valores terapêuticos
do Ntandazimu. A climoterapia, que combina banhos em águas salgadas
(talassoterapia) com os banhos de sol (helioterapia), seria um complemento na
diversificação da oferta e actividades recreativas. Um SPA para lá de natural. Todos,
mesmo todos, sairiam a ganhar. O turismo nacional ficaria reconhecido
pela descoberta. Só peço que seja explicado ao guarda a razão de tanto
mistério.
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