CAMINHOS
do SOL - 4
por
Jorge Ferrão
Lamento ter que informar que são as últimas crónicas sobre as praias
de Moçambique. Sobre algumas, algumas só, das paradisíacas praias de Moçambique.
Tem muitas mais (praias). Já nos textos anteriores vos dizia que há que ir lá vivê-las.
Muito melhor do que ir para o Caribe, Indonésia, ou outros lugares “da moda” . Além das praias vão encontrar um povo que vos acolhe de braços e alma
abertos.
E quem não quer isso?
Península do Baixo Pinda
A
mudança de estação convida a baleia corcunda (Megaptera novaeangliae) para o litoral moçambicano. Mães e crias
buscam alimento e águas mais quentes para procriarem. Estes descomunais
mamíferos e seus filhotes oferecem de presente, interessados e ocasionais,
verdadeiros festivais de acrobacia que só a Mãe natureza poderia propiciar. Um
cenário repetido ao longo de séculos e testemunhado por gerações litorâneas, inteiras, que acreditam
que a vida iniciou no mar.
O
faroleiro do Baixo Pinda, hoje mais descolorido que nunca, tem um assento
privilegiado para assistir ao show.
Seus olhos se confundem com binóculos e sua sabedoria com compêndios. Seu farol
descontinuado pela globalização, se confunde com o único símbolo do
desenvolvimento na região.
Baixo
Pinda e outras baias vizinhas, incluindo Memba, são os locais predilectos. Vale
a pena, em horário vespertino, quando o silêncio vira dono de si próprio,
escutar os sons do repuxo de água libertados pela respiração destes gigantes.
Nos intervalos entre um mergulho e, uma nova subida à superfície, a baforada
provoca sons combinados que nenhuma sinfonia, nem timbila ou piano ousara,
alguma vez, reproduzir. Toda a grandeza do maior animal do planeta transformado
em música de outras escalas e solfejos.
O
mais interessante, ainda, são saltos acrobáticos e as batidas das barbatanas.
Apesar de parecer muito descomunal, as batidas das barbatanas são herméticas e
compassadas. Parecem sinalizar sua presença e alertar ao mundo sobre sua
graciosidade e ao descaso a que estão sujeitas. São os movimentos e ruídos que
orientam as crias para que não se afastem demasiado de suas progenitoras. Cada
cria conhece, melhor que ninguém, o som produzido pela barbatana de sua Mãe, e
não os confunde nunca e em nenhuma situação. Tudo isto faz parte do festival.
Por
vezes até parece que estes movimentos são, igualmente, interpretados pelo farol
e faroleiro. Eles geram, imponentes, a vida e os acordes de Baixo Pinda. O
faroleiro deve ser das profissões cuja genética e desfecho já vêem prescritos à
nascença. Das poucas profissões no mundo em que os filhos sucedem seus pais.
Em
Baixo Pinda, filho e pai falam com saudade dos múltiplos auxílios a naus,
caravelas e marinheiros, pequenos barcos a remos e seus pescadores,
mergulhadores e piratas. Não se queixam nunca do mundo e das ondas que apenas
beijam suas areias. Do palco privilegiado, quase dão nomes às baleias que
julgam ter conhecido no passado. Ninguém no mundo descreve melhor esta festa
que só os privilegiados podem desfrutar.
A
Península do Baixo Pinda, no distrito de Memba, norte de Nacala, não perdeu sua
originalidade. Outrora Mopa Ekoma, ou
tocador de batuque, a região continua habitada por pescadores e suas famílias.
Pescam de tudo e todo ano. Para fazer jus ao nome original, estes pescadores e
seus familiares adoram música e passam noites a fio tocando quer instrumentos
musicais tradicionais, como aparelhagens mais modernas de ensurdecer qualquer
ouvido de elefante.
Haverá quem não fique com
inveja de não estar no Baixo do Pinda?
Baixo
Pinda distingue-se, também, por ser a Península dos Embondeiros (Adonsonia digitata).
Existem
algumas centenas, senão milhares destes exemplares. Na realidade, todas as
árvores do ecossistema agigantam-se, crescem, como se quisessem converter-se,
elas próprias, em faróis. Não admira, pois, que os pescadores façam dos
troncos, seus barcos de sobrevivência. A beleza do local, para além do recorte
geográfico, de fazer inveja a qualquer outro bioma, se distingue ainda pela
diferença de cores entre as praias, a região coralina e o alto mar. Os fotógrafos
trocam de lentes e ângulos para descobrir
o para lá do infinito.
Existe
um conjunto de pontas tais como a Fica, Nagata, Macuvi e a Nuarro. Cada
uma delas, verdadeira dádiva de Deus. Só a Ponta Nuarro tem infra-estrutura para albergar turistas. As restantes
continuam virgens. Aguardam por investimentos socialmente responsáveis. As vias
de acesso são problemáticas. Estradas de terra batida e, regra geral, pouco
condicionadas. Assim, Baixo Pinda permanece serena para os locais, e
desafiadora para os banhistas e aventureiros.
Valerá a pena, dizem os locais,
subir o Farol e desfrutar do espectáculo das baleias e até do Atum. Quando
estes decidem aproximar-se da costa, por alguma razão em cardumes numerosos, a
água borbulha. Tudo se transforma em
caldeirão em efervescência. As raridades que poucos olhos
terão o privilégio de desfrutar. Bem de cima do Farol consegue-se ver o mundo,
como se Baixo Pinda não fizesse parte do planeta. (X)
Os Bidões das
praias do Chinde
No Chinde, onde um dos braços do delta do Zambeze beija as ondas do Índico, ainda se contam relatos dramáticos de tragédia social.
No limiar dos anos 70 Portugal vivia contradições decorrentes do avanço da luta
de libertação nacional. Guerrilheiros intensificavam a frente de Manica-Sofala
cruzando o rio Zambeze. Na região de Mutmane, terras dos “Chindus”, chefiados
pelo chefe “Chinde”, contava-se que um cargueiro zarpando às pressas do Porto
do Chinde, com bidões de álcool a bordo, encalhara. Os pescadores artesanais
foram intimados a desembarcar a mercadoria. Só assim, o navio reflutuaria.
Foram dias de azáfama e desespero. Canoas, bidões e pescadores se confundiam
com o próprio mar.
O
álcool, misterioso, seguia em direcção a África do Sul. Os propósitos eram, na
altura, desconhecidos. A mercadoria chegou no cargueiro pela lancha-canhoeira
“Chire” após ter sido descarregado no porto de São Tomé, em Marromeu. No porto
do Chinde foi transbordado para aquele navio cujo nome o mar silenciou.
Desencalhado,
o navio, ainda, ensaiou nova caminhada. Fez uns movimentos agonizantes e se
afundou. A carga, baldeada para a praia de kumangue, ali permaneceu ao longo de
semanas. Com a administração militar e civil despreocupada, a carga foi
desaparecendo por debaixo dos palmares.
Naquelas
noites de luar, os larápios desenhavam sombras que se confundiam com espíritos.
Eram baldes de todos tamanhos que alimentariam outras cobiças. Chinde festejava
na calada da noite. Noites que já não eram tão silenciosas. A “sura das
palmeiras” e a “cabanga” tradicional
de mexoeira haviam sido substituídas. As mulheres nas suas capulanas amarradas
por “nhecas” e blusas, acompanhavam,
também, seus maridos na festança diabólica do raiar ao pôr do Sol. Não tardaram
as primeiras vítimas.
As
vítimas, eram indígenas negros. Depois, pereceu um mecânico mulato portuário.
Não tardou que tivesse morrido um colono. Pianista branco e único na vila. Ele
sim, mexeu com a serenidade da administração. Chinde perdia o ritmo e compasso
nas celebrações. A vila descoloriu. Num ápice se converteu em enfermaria anexa
ao cemitério.
As
suspeitas ganharam corpo. Era álcool metílico. Destino era Africa do Sul do
Apartheid. Retornaria a Moçambique confeccionada, como bebida barata, para ser
distribuída em regiões contíguas as da luta armada. Era o tudo por tudo da
“psicossocial”. As novas e subtis formas de destruturar processo de libertação.
O
encalhe do navio frustrou as intenções da inteligência militar. Ainda assim, o
álcool metílico, por conta e risco, espalhou-se pelo vale do Zambeze. Milhares
de bidões seguiram, na contracorrente, até Tete.
Comerciantes, sem escrúpulos, enriqueceram. Este argumento ajudou a
explicar tamanha cegueira no vale do Zambeze. A este álcool metílico se
associava a aguardente de maçanica (maça da Índia).
Eventualmente,
a aguardente de maçanica possui certo teor de álcool metílico, quando
fermentada. Certas frutas são susceptíveis a esta reacção química. Em Portugal
existe um tipo de uva que só pode ser consumida como fruta e não como vinho
pois, quando fermentada, ela reproduz álcool
metílico.
O
etanol bem como o metanol encontram-se no álcool. Ingeridos são transformados
no fígado pela enzima álcool desidrogenase.
Porém, os metabolitos subsequentes do etanol são convertidos em água e dióxido
de carbono. Portanto, não tóxicos. Com os metabolitos do metanol essa
degradação não ocorre na sua plenitude. Consequentemente, uma percentagem não
degradada se transforma em substancia tóxica. A ingestão do metanol ou álcool
metílico, ainda que em quantidades reduzidas, pode causar danos, devido a
toxicidade, à retina e nervo óptico. Também
pode matar.
Existe
percepção generalizada de que o vale do Zambeze se confronta com casos anormais
de cegueira. Os estudos precisam de confirmar estas percepções. A toxidade da
maçanica. Só assim, se explicariam as patologias oculares suas origens e
causas. Chinde das terras húmidas, de pôr-do-sol paradisíaco sobre as palhotas
de macuti, não exportará mais bidões de álcool metílico. Esta terra abençoada e as suas gentes continuarão acolhendo com doçura os ventos da mudança.
(X)
As varandas de
Crusse e Jamali
As conchas das praias
de areia
branca e água azul-turquesa, de Crusse e Jamali,
encerram lendas inconfessáveis. As revelações
só são feitas aos predestinados. Privilegiados. Aqueles cujos ouvidos
sabem ver e esconder. Dispostas em forma de rosário, Crusse e Jamali são ilhas
de origem coralina, muito pequena dimensão, inacreditavelmente atractivas e
exímias guardiãs da multiplicidade e das complexas interpenetrações seculares
de culturas, tradições, sonhos, ventos, mares e povos.
E vejam o que por ali se
encontra! E muito mais...
Inabitadas,
desde sempre, só por não disporem de água doce, conservam, ainda, uma parte da
sua floresta tropical costeira. Olhando para os seus mangais, enquanto preparam
os remos para destinos incertos, os pescadores jamais cruzam os olhares com os
interlocutores. Falam, seguindo os ritmos das ondas, do que ainda parece ser
permitido fazer. No rol das regras,
nunca dormir na ilha. Depois da faina, não contabilizar, aritmeticamente, o
produto da pesca. No final da faina, ninguém deverá contabilizar o produto
pescado. Basta dizer que teve uma boa safra, ou uma colheita mais ou menos.
Estas
ilhas de raríssima beleza encantaram e fascinam seus visitantes. Serviram de
refúgio de poetas que as transformaram em varandas, para contemplar Muipithi.
Sem qualquer referência arquitectónica, exceptuando o manancial natural, Crusse
e Jamali viraram as costas ao profundo canal de Moçambique. Preferiram
continuar com suas costas rasas em períodos de mares vazantes, propiciando as
longas caminhadas sobre o leito do Índico. Assobiam para o lado durante os
períodos de mare cheia. Ignoram os ventos sul destapando as conchas, onde
escondem as vontades dos espíritos Namuenke e Hanassi.
Demoníaco
e de caracter mórbido Namuenke domina os mares. Hanassi reina nos corais
escuros e petrificados. Ambos fingem guarnecer os coqueiros e as casuarinas da
península de Napenja. Já não controlam a floresta de micrusse, de Matibane e
nem as areias brancas de suas praias.
As
florestas de micrusse, eventualmente a madeira da mais resistente que Moçambique
possui, já dominaram o literal desta região. Hoje a floresta esta definhando e
moribunda. Não escapa a fúria dos predadores. A floresta de micrusse serviu
para construir a primeira capital de Moçambique. Banianes, logo seguidos por
persas, portugueses e holandeses, edificaram a exuberante arquitectura da Ilha
de Moçambique com a madeira micrusse. Não admira, por conseguinte, que todos os
telhados das habitações existentes, quer na cidade de Macuti, como da Pedra,
ostentem micrusse como brasão. As vigas de micrusse registam, silenciosas,
sonhos dos insulares e seus visitantes, os morcegos que aumentam, e os esconderijos dos mosquitos portadores de malária.
Um
dia Crusse e Jamali se descaracterizarão. Os apetites de quem sobrevive
vendendo a natureza não tardarão a corporizar. Virará paraíso de mergulhadores
e exploradores de corais. Baluarte dos coleccionadores de peixes ornamentais e
santuário de vendedores de estrelas e constelações. Os espíritos serão
empurrados por outros ventos e mares. Crusse e Jamali serão o maior
cartão-de-visita do potencial turístico e das ilhas primárias cujas varandas
não desfrutamos!
Caro Francisco,
ResponderExcluirÉ pena ter que interromper este trabalho excepcional, pelo qual lhe estou grato.
Criei um ficheiro próprio para os Caminhos do Sol e arquivei-o para memória futura, e, quem sabe, para um dia seguir o roteiro correspondente.
Tomei a liberdade de divulgá-lo por amigos que, de alguma forma, estiveram ligados ao território.
Com um abraço do,
António
Olá boa noite!
ResponderExcluirLi o artigo. A história é verdadeira ou fantasia? o meu avô era administrador no Chinde em finais dos anos 60 e principio de 70, é pena que já tenha morrido para o confrontar com o que li.
espero pela proxima!
bj
Mónica