segunda-feira, 17 de julho de 2017


CAMINHOS do SOL - 4
por
Jorge Ferrão

Lamento ter que informar que são as últimas crónicas sobre as praias de Moçambique. Sobre algumas, algumas só, das paradisíacas praias de Moçambique. Tem muitas mais (praias). Já nos textos anteriores vos dizia que há que ir lá vivê-las. Muito melhor do que ir para o Caribe, Indonésia, ou outros lugares “da moda” . Além das praias vão encontrar um povo que vos acolhe de braços e alma abertos.
E quem não quer isso?

Península do Baixo Pinda


A mudança de estação convida a baleia corcunda (Megaptera novaeangliae) para o litoral moçambicano. Mães e crias buscam alimento e águas mais quentes para procriarem. Estes descomunais mamíferos e seus filhotes oferecem de presente, interessados e ocasionais, verdadeiros festivais de acrobacia que só a Mãe natureza poderia propiciar. Um cenário repetido ao longo de séculos e testemunhado por gerações litorâneas, inteiras, que acreditam que a vida iniciou no mar.
O faroleiro do Baixo Pinda, hoje mais descolorido que nunca, tem um assento privilegiado para assistir ao show. Seus olhos se confundem com binóculos e sua sabedoria com compêndios. Seu farol descontinuado pela globalização, se confunde com o único símbolo do desenvolvimento na região.
Baixo Pinda e outras baias vizinhas, incluindo Memba, são os locais predilectos. Vale a pena, em horário vespertino, quando o silêncio vira dono de si próprio, escutar os sons do repuxo de água libertados pela respiração destes gigantes. Nos intervalos entre um mergulho e, uma nova subida à superfície, a baforada provoca sons combinados que nenhuma sinfonia, nem timbila ou piano ousara, alguma vez, reproduzir. Toda a grandeza do maior animal do planeta transformado em música de outras escalas e solfejos.
O mais interessante, ainda, são saltos acrobáticos e as batidas das barbatanas. Apesar de parecer muito descomunal, as batidas das barbatanas são herméticas e compassadas. Parecem sinalizar sua presença e alertar ao mundo sobre sua graciosidade e ao descaso a que estão sujeitas. São os movimentos e ruídos que orientam as crias para que não se afastem demasiado de suas progenitoras. Cada cria conhece, melhor que ninguém, o som produzido pela barbatana de sua Mãe, e não os confunde nunca e em nenhuma situação. Tudo isto faz parte do festival.
Por vezes até parece que estes movimentos são, igualmente, interpretados pelo farol e faroleiro. Eles geram, imponentes, a vida e os acordes de Baixo Pinda. O faroleiro deve ser das profissões cuja genética e desfecho já vêem prescritos à nascença. Das poucas profissões no mundo em que os filhos sucedem seus pais.
Em Baixo Pinda, filho e pai falam com saudade dos múltiplos auxílios a naus, caravelas e marinheiros, pequenos barcos a remos e seus pescadores, mergulhadores e piratas. Não se queixam nunca do mundo e das ondas que apenas beijam suas areias. Do palco privilegiado, quase dão nomes às baleias que julgam ter conhecido no passado. Ninguém no mundo descreve melhor esta festa que só os privilegiados podem desfrutar.
A Península do Baixo Pinda, no distrito de Memba, norte de Nacala, não perdeu sua originalidade. Outrora Mopa Ekoma, ou tocador de batuque, a região continua habitada por pescadores e suas famílias. Pescam de tudo e todo ano. Para fazer jus ao nome original, estes pescadores e seus familiares adoram música e passam noites a fio tocando quer instrumentos musicais tradicionais, como aparelhagens mais modernas de ensurdecer qualquer ouvido de elefante.

Haverá quem não fique com inveja de não estar no Baixo do Pinda?

Baixo Pinda distingue-se, também, por ser a Península dos Embondeiros (Adonsonia digitata).
Existem algumas centenas, senão milhares destes exemplares. Na realidade, todas as árvores do ecossistema agigantam-se, crescem, como se quisessem converter-se, elas próprias, em faróis. Não admira, pois, que os pescadores façam dos troncos, seus barcos de sobrevivência. A beleza do local, para além do recorte geográfico, de fazer inveja a qualquer outro bioma, se distingue ainda pela diferença de cores entre as praias, a região coralina e o alto mar. Os fotógrafos trocam de lentes e ângulos para descobrir o para do infinito.
Existe um conjunto de pontas tais como a Fica, Nagata, Macuvi e a Nuarro. Cada uma delas, verdadeira dádiva de Deus. Só a Ponta Nuarro tem infra-estrutura para albergar turistas. As restantes continuam virgens. Aguardam por investimentos socialmente responsáveis. As vias de acesso são problemáticas. Estradas de terra batida e, regra geral, pouco condicionadas. Assim, Baixo Pinda permanece serena para os locais, e desafiadora para os banhistas e aventureiros.
Valerá a pena, dizem os locais, subir o Farol e desfrutar do espectáculo das baleias e até do Atum. Quando estes decidem aproximar-se da costa, por alguma razão em cardumes numerosos, a água borbulha. Tudo se transforma em  caldeirão  em  efervescência. As raridades que poucos olhos terão o privilégio de desfrutar. Bem de cima do Farol consegue-se ver o mundo, como se Baixo Pinda não fizesse parte do planeta. (X)


Os Bidões das praias do  Chinde


No Chinde, onde um dos bros do delta do Zambeze beija as ondas do Índico, ainda se contam relatos dramáticos de tragédia social. No limiar dos anos 70 Portugal vivia contradições decorrentes do avanço da luta de libertação nacional. Guerrilheiros intensificavam a frente de Manica-Sofala cruzando o rio Zambeze. Na região de Mutmane, terras dos “Chindus”, chefiados pelo chefe “Chinde”, contava-se que um cargueiro zarpando às pressas do Porto do Chinde, com bidões de álcool a bordo, encalhara. Os pescadores artesanais foram intimados a desembarcar a mercadoria. Só assim, o navio reflutuaria. Foram dias de azáfama e desespero. Canoas, bidões e pescadores se confundiam com o próprio mar.
O álcool, misterioso, seguia em direcção a África do Sul. Os propósitos eram, na altura, desconhecidos. A mercadoria chegou no cargueiro pela lancha-canhoeira “Chire” após ter sido descarregado no porto de São Tomé, em Marromeu. No porto do Chinde foi transbordado para aquele navio cujo nome o mar silenciou.
Desencalhado, o navio, ainda, ensaiou nova caminhada. Fez uns movimentos agonizantes e se afundou. A carga, baldeada para a praia de kumangue, ali permaneceu ao longo de semanas. Com a administração militar e civil despreocupada, a carga foi desaparecendo por debaixo dos palmares.
Naquelas noites de luar, os larápios desenhavam sombras que se confundiam com espíritos. Eram baldes de todos tamanhos que alimentariam outras cobiças. Chinde festejava na calada da noite. Noites que já não eram tão silenciosas. A “sura das palmeiras” e a “cabanga” tradicional de mexoeira haviam sido substituídas. As mulheres nas suas capulanas amarradas por “nhecas” e blusas, acompanhavam, também, seus maridos na festança diabólica do raiar ao pôr do Sol. Não tardaram as primeiras vítimas.
As vítimas, eram indígenas negros. Depois, pereceu um mecânico mulato portuário. Não tardou que tivesse morrido um colono. Pianista branco e único na vila. Ele sim, mexeu com a serenidade da administração. Chinde perdia o ritmo e compasso nas celebrações. A vila descoloriu. Num ápice se converteu em enfermaria anexa ao cemitério.
As suspeitas ganharam corpo. Era álcool metílico. Destino era Africa do Sul do Apartheid. Retornaria a Moçambique confeccionada, como bebida barata, para ser distribuída em regiões contíguas as da luta armada. Era o tudo por tudo da “psicossocial”. As novas e subtis formas de destruturar processo de libertação.
O encalhe do navio frustrou as intenções da inteligência militar.  Ainda assim, o álcool metílico, por conta e risco, espalhou-se pelo vale do Zambeze. Milhares de bidões seguiram, na contracorrente, até Tete. Comerciantes, sem escrúpulos, enriqueceram. Este argumento ajudou a explicar tamanha cegueira no vale do Zambeze. A este álcool metílico se associava a aguardente de maçanica (maça da Índia).
Eventualmente, a aguardente de maçanica possui certo teor de álcool metílico, quando fermentada. Certas frutas são susceptíveis a esta reacção química. Em Portugal existe um tipo de uva que só pode ser consumida como fruta e não como vinho pois, quando fermentada, ela reproduz álcool metílico.
O etanol bem como o metanol encontram-se no álcool. Ingeridos são transformados no fígado pela enzima álcool desidrogenase. Porém, os metabolitos subsequentes do etanol são convertidos em água e dióxido de carbono. Portanto, não tóxicos. Com os metabolitos do metanol essa degradação não ocorre na sua plenitude. Consequentemente, uma percentagem não degradada se transforma em substancia tóxica. A ingestão do metanol ou álcool metílico, ainda que em quantidades reduzidas, pode causar danos, devido a toxicidade, à retina e nervo óptico. Também pode matar.
Existe percepção generalizada de que o vale do Zambeze se confronta com casos anormais de cegueira. Os estudos precisam de confirmar estas percepções. A toxidade da maçanica. Só assim, se explicariam as patologias oculares suas origens e causas. Chinde das terras húmidas, de pôr-do-sol paradisíaco sobre as palhotas de macuti, não exportará mais bidões de álcool metílico. Esta terra abençoada e as suas gentes continuarão acolhendo com doçura os ventos da mudança. (X)


As varandas de Crusse e  Jamali


As conchas das praias de areia branca e água azul-turquesa, de Crusse e Jamali, encerram lendas inconfessáveis. As revelações só são feitas aos predestinados. Privilegiados. Aqueles cujos ouvidos sabem ver e esconder. Dispostas em forma de rosário, Crusse e Jamali são ilhas de origem coralina, muito pequena dimensão, inacreditavelmente atractivas e exímias guardiãs da multiplicidade e das complexas interpenetrações seculares de culturas, tradições, sonhos, ventos, mares e povos.

E vejam o que por ali se encontra! E muito mais...

Inabitadas, desde sempre, só por não disporem de água doce, conservam, ainda, uma parte da sua floresta tropical costeira. Olhando para os seus mangais, enquanto preparam os remos para destinos incertos, os pescadores jamais cruzam os olhares com os interlocutores. Falam, seguindo os ritmos das ondas, do que ainda parece ser permitido fazer. No rol das regras, nunca dormir na ilha. Depois da faina, não contabilizar, aritmeticamente, o produto da pesca. No final da faina, ninguém deverá contabilizar o produto pescado. Basta dizer que teve uma boa safra, ou uma colheita mais ou menos.
Estas ilhas de raríssima beleza encantaram e fascinam seus visitantes. Serviram de refúgio de poetas que as transformaram em varandas, para contemplar Muipithi. Sem qualquer referência arquitectónica, exceptuando o manancial natural, Crusse e Jamali viraram as costas ao profundo canal de Moçambique. Preferiram continuar com suas costas rasas em períodos de mares vazantes, propiciando as longas caminhadas sobre o leito do Índico. Assobiam para o lado durante os períodos de mare cheia. Ignoram os ventos sul destapando as conchas, onde escondem as vontades dos espíritos Namuenke e Hanassi.
Demoníaco e de caracter mórbido Namuenke domina os mares. Hanassi reina nos corais escuros e petrificados. Ambos fingem guarnecer os coqueiros e as casuarinas da península de Napenja. Já não controlam a floresta de micrusse, de Matibane e nem as areias brancas de suas praias.
As florestas de micrusse, eventualmente a madeira da mais resistente que Moçambique possui, já dominaram o literal desta região. Hoje a floresta esta definhando e moribunda. Não escapa a fúria dos predadores. A floresta de micrusse serviu para construir a primeira capital de Moçambique. Banianes, logo seguidos por persas, portugueses e holandeses, edificaram a exuberante arquitectura da Ilha de Moçambique com a madeira micrusse. Não admira, por conseguinte, que todos os telhados das habitações existentes, quer na cidade de Macuti, como da Pedra, ostentem micrusse como brasão. As vigas de micrusse registam, silenciosas, sonhos dos insulares e seus visitantes, os morcegos que aumentam, e os esconderijos dos mosquitos portadores de malária.

Um dia Crusse e Jamali se descaracterizarão. Os apetites de quem sobrevive vendendo a natureza não tardarão a corporizar. Virará paraíso de mergulhadores e exploradores de corais. Baluarte dos coleccionadores de peixes ornamentais e santuário de vendedores de estrelas e constelações. Os espíritos serão empurrados por outros ventos e mares. Crusse e Jamali serão o maior cartão-de-visita do potencial turístico e das ilhas primárias cujas varandas não desfrutamos!  

2 comentários:

  1. Caro Francisco,
    É pena ter que interromper este trabalho excepcional, pelo qual lhe estou grato.
    Criei um ficheiro próprio para os Caminhos do Sol e arquivei-o para memória futura, e, quem sabe, para um dia seguir o roteiro correspondente.
    Tomei a liberdade de divulgá-lo por amigos que, de alguma forma, estiveram ligados ao território.
    Com um abraço do,
    António

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  2. Olá boa noite!
    Li o artigo. A história é verdadeira ou fantasia? o meu avô era administrador no Chinde em finais dos anos 60 e principio de 70, é pena que já tenha morrido para o confrontar com o que li.
    espero pela proxima!
    bj
    Mónica

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