segunda-feira, 31 de julho de 2017

 

Após uma semana (só!) de deleite, a que foram deixados nas praias de Moçambique, os leitores deste blog, voltamos com mais crónicas daquela terra, mas desta vez preparem os lenços para limpar as lágrimas! O mundo está louco!

 

Caminhos do Sol – 5 -

Por Jorge Ferrão

 

FAUNA


Porquê os outros animais da nossa biodiversidade
Não tem direito a socialização de suas vidas
Quando o homem considera ser somente sua pertença
Essa porção da natureza?

A Bicharada que nos Atormenta

 

Nunca, como nos últimos anos, os bichos viraram tamanha fonte de conflito. Com ou sem razão, o conflito faz parte obrigatória da retórica e do discurso actual. Em 2009, uma Baleia Corcunda ou de Bossa (Megaptera Novaeangliae), dessas que se alimentam na costa moçambicana por estas alturas do ano, encalhou na Ilha da Inhaca. Acto seguinte, ela foi esquartejada sem apelo nem agravo! Por alguns dias, ficou resolvida a questão da carência proteica de uma considerável parte dos ilhéus. Só o Régulo Inhaca, distraído e driblado pelos súbditos, foi o último a saber das carnes mahala. Consequentemente, ficou sem um único grama. Sua autoridade, irremediavelmente comprometida. Irritado, esbaforiu cobras e lagartos. Vaticinou péssimos dias para a Ilha; jurou de pés juntos que os consumidores, desautorizados, se enfermariam por desconhecerem o estado de saúde do animal. Aventou até a possibilidade de a Ilha desaparecer, como consequência da carne desaparecida e do aquecimento global. No final, perdeu mesmo a batalha. O conflito, esse ficou, instalou-se confortavelmente no seu travesseiro.
Em Pemba, no centro da requintada praia do Wimbe, 2010, novamente uma Baleia de Bossa andou aos ziguezagues e, desavisada, não evitou a praia. Estatelou-se em poses sensuais! A fúria humana chegou como onda. Sua alma vagueava sobre o Índico. A sorte de suas carnes, como podem vaticinar, não foi diferente. 12 Toneladas de banha, filet mignon, costeletas, outras de segunda e primeira, e até carne desconhecida, num ápice, foram esquartejadas. Veterinários e policiais, guardiões da Baleia e das ordens defensivas, se digladiaram com os munícipes mais atrevidos. As maiorias, como sempre, levaram a melhor. Mais de 3000 pessoas, incluindo alguns disfarçados saídos das potentes viaturas 4X4, se lamuriaram em busca das iguarias. O conflito entre predadores e candidatos a predadores estendeu-se até ao pôr-do-sol. Pemba viveu dia de algazarra. Um dos curandeiros chegou tarde, mas garantiu-se. Era o pedaço de amuleto que faltava no seu ingrediente.
Em Gangala, no distrito de Caia, terras de Sofala, por onde o baixo Zambeze esbanja elegância e grandeza, mesmo ciente que o Índico o espera para degolar, um Hipopótamo (hippotamus amphibius) foi atropelado por uma locomotiva da famosa linha de Sena. A ferrovia permanece em intermináveis obras de reabilitação. De tantos prazos vencidos, agora já nem tem mais data de entrega. O atropelamento poderá comprometer um pouco mais os prazos. Claramente, este atropelamento foi ilegal, porque o animal, gozava de prioridade e direito para a travessia de suas terras. Este episódio nos é despoletado quando permanecem ainda frescas as memórias de Setembro sobre as envelhecidas debilidades económicas e estruturais. Quando se esperava que os populares tomassem conta daquelas 3 toneladas de carne, o atropelado permaneceu horas, prostrado na via, sem que ninguém tivesse tocado nele. No mínimo, estranho!
Mas a estranheza advinha do facto de tão saborosa e procurada carne não ter despertado apetites. Quase ficou ali mofando! Até parecia que seu valor fora afectado pela crise internacional. Nem se pode dizer que a notícia sobre o acidente não tenha circulado à velocidade de cruzeiro. Porém, mais rápida que a notícia viajou a dúvida sobre o atropelamento. Raridade. Por que cargas de água o bicho teria de ser atropelado? Nenhum outro Hipopótamo fora posto fora de combate naquele trecho!... Então, essa não seria carne abençoada, digna de ser consumida. Seria, seguramente, carne de espíritos. As sociologias extra-educacionais entraram em cena.
O acidente era sintomático de que as cerimónias iniciais, tão em voga nestes dias, haviam sido mal feitas ou descumpridos os rituais quando a linha foi reaberta parcialmente. O pior, ainda, seria os temores que imperam na região, desde a altura que um famoso caçador local, conhecido como Boma, que morrera 18 meses antes, ressuscitara. Boma, como diz A. Chimundo, do Diário de Moçambique (07/09/10), fora antigo combatente da luta de libertação nacional e era tido como um exímio caçador de hipopótamos. Nessa semana reapareceu na residência de seus familiares com vida, poucos dias antes do fatídico acidente.
Os que tiveram a oportunidade de dialogar com Boma ainda se recordam do que ele afirmara, por alturas da sua ressurreição. Num tom messiânico assegurou que, na realidade, quem fora enterrado naquela altura havia sido um hipopótamo e não ele. Estes condimentos aparentavam ser suficientes para destinar o animal para outras paragens. Todavia, mesmo guarnecido, o hipopótamo e suas saborosas carnes não foram desperdiçadas. aceita explicações quem está de barriga cheia.
Nunca saberemos se Boma terá provado o sabor da carne do infortunado hipopótamo trucidado. Nem se ele continuará caçando hipopótamos. A região de DAF, em Galanga, está atenta aos hipopótamos. As lembranças venceram o medo, mas nem por isso são das melhores. Ademais, não saberemos se a empresa responsável pela ferrovia realizará novas cerimónias. Melhor seria fazer.  Não vá o carvão mineral da Vale ficar prejudicado, agora que a sua exportação está eminente (A exploração começou em 2011). Caso a via se inviabilize em virtude da presença de mais hipopótamos, estará instalado o conflito animal e carvão.
Um pouco pelo país continuaremos assistindo ao aparecimento, amiúde, de animais mortos ou moribundos. A sua preciosa carne e todo o valor proteico continuará alimentando o festival de desmonta. O dito conflito Homem-animal, esse, seguirá distorcendo as razões e emoções. Mas se algum dos animais do conflito, tombar por alguma fatalidade, cedo nos esqueceremos dos seus estragos. Seja como for, o que tem de prevalecer será o bom senso, para que o país tenha espaço para todos.

O nome do gênero, Megaptera , significa grandes asas (do grego "mégas" = grande e "pterón" = asas) em referência às enormes barbatanas peitorais;
o nome específico novaeangliae é devido ao local onde a espécie foi descrita pela primeira vez a partir de observações realizadas pelo naturalista alemão Georg Heinrich Borowski, a Nova Inglaterra.
Os machos da espécie medem de 15 a 16 metros, enquanto as fêmeas, de 16 a 17 metros. O peso médio é de aproximadamente 40 toneladas.

O Cão Selvagem Africano de QUITERAJO


O antílope parecia conhecer o predador. Não prestou os devidos cuidados. Voltou a baixar a cabeça. Deliciou-se do melhor que a tenra erva oferecia. Depois, por via das dúvidas, certificou-se se o espaço vital não comprometia. Não teve dúvidas. O recurso seria empreender a fuga. Para qualquer direcção, imaginava que a fuga seria exitosa. Menos para o lado da praia. Só um cão selvagem dava a cara e as cartas. Os restantes, camuflados, escondiam sua tenacidade por entre arbustos e grama. Os Mabecos repetiam, com eficácia, antiga estratégia em tempo moderno. Conduzir a presa para a praia e desferir o golpe final. Instantes depois, antílope e predador, frente a frente, apenas com o mar como porta da sobrevivência. Final inevitável e infalível.
Quiterajo é uma localidade do longínquo distrito de Macomia. Dista sensivelmente 12 quilómetros do estuário do rio Messalo. O rio da liberdade e que refrescou os combatentes da paz. As abundantes reservas de água, pasto e a relativa calmaria, fazem do local, santuário e corredor preferencial de um não menos vasto grupo de mamíferos. Pelo desconhecido e emblemático Quiterajo, ainda é possível, observarem-se, em certas épocas do ano, os restos de uma fauna selvagem gloriosa que foi o orgulho do Miombo Moçambicano.


O mabeco é um animal lindo, inteligente, extremamente social, grande caçador

Presenciar o ataque mortífero do cão selvagem africano (Lycaon pictus) ao Chango, faz parte de memórias incontornáveis. Não tem preço. Este país é fértil em episódios e mitologias da selva. Conhecem-se estórias de elefantes que se banham em praias desertas, crocodilos que viram gente, predadores que comem e roubam milho fresco das machambas. Poucos, todavia, terão ouvido falar nos ataques das praias. Os mabecos, família dos Canídeos, são exímios caçadores. Sua acuidade na caça é de 100%, ao contrário de qualquer outro predador. Nestas estórias, até virá a história a saber, que as presas da praia são disputadas pelo predador, Homem.
Os caçadores, furtivos ou autorizados, observaram ao longo do tempo, a caçada do mabecos e confirmaram sua efectividade. Sabendo que qualquer canídeo se assusta com os sons produzidos pelo ser humano, os caçadores aguardam nas praias pelos Mabecos e suas presas. Depois, é uma questão de berrar e gritar a plenos pulmões, para afugentar os canídeos e se apoderar, ilegalmente, da caçada.
Quieterajo deve possuir uma população de aproximadamente 18 cães selvagens africanos (Lycaon pictus). O grupo de mabecos de Quiterajo tem sido seguido nos últimos anos pelo projecto de conservação Maluane. Porém, os recursos disponíveis, apenas darão para saber de sua existência, trajectória e pouco mais. O Mabeco é uma das mais ameaçadas espécies de carnívoros do planeta. O livro “Red List da IUCN” coloca o animal em risco de extinção.
Moçambique, ainda preserva um pequeno número no centro e norte do país. No centro, em Sofala, e no Norte em Cabo Delgado e Niassa. Já existiram evidências na Zambézia e em Tete. Pelo Limpopo, passa, um pequeno grupo que se perde vindo do Kruger. O último censo no país realizou-se em 1970. Desde essa altura a esta parte, muito pouco tem ou foi feito, quer como pesquisa ou como contagem efectiva. Um grupo de profissionais estrangeiros (Jean Marc André - Oxford, Collen e Keith Begg -  Universidade de Pretória) tem sido activos na disseminação, compilação e tratamento de informação.
A espécie corre riscos. Muito pouco tem sido feito pelas instituições com responsabilidades directas. (IUCN,WWF,TFCAs, etc). Também os restantes profissionais têm responsabilidades pelo descaso. No continente africano o declínio é inevitável. Em pelo menos 39 países onde a espécie poderia ser observada, até aos últimos 30 ou 40 anos, agora o predador sobrevive, efectivamente, em 14 países.
Nos restantes 25, ele desapareceu irremediavelmente.
O desconhecimento generalizado e a crença de ser um animal perigoso torna-o vítima do descaso. Os pecuaristas declararam guerra sem trégua e nem quartel ao mabeco. Existe a percepção de que o cão selvagem africano ataca, indiscriminadamente, os currais, por saber e entender que o animal doméstico não tem sentido de autodefesa. Por essa razão, os criadores jamais o perdoam.
O cão selvagem africano passa, muitas vezes, de predador a presa, por fazer da estrada seu lugar favorito de caminhada. As viaturas não o perdoam. Pelas estradas podem ser observadas carcaças. Na verdade, quando é encadeado a noite, ele é atropelado pela certa.
Para além dos índices de natalidade reduzidos, o cão selvagem é um animal que regurgita. Quer dizer, depois de se alimentar regurgita uma parte do bolo alimentar para seus filhotes. Desde modo é feita a transmissão de doenças dos progenitores para os recém-nascidos. O mabeco é, igualmente, vulnerável às doenças dos animais domésticos, sobretudo do gato e cão domésticos.
Todos nós temos uma grande responsabilidade para salvar esta espécie. Os viajantes podem fotografar e enviar as fotos para as instituições que zelam pela conservação da fauna no país. As grandes instituições que gastam somas consideráveis em publicidade podem, também, financiar concursos de fotografia ou de outro género, despertando interesse na espécie. As faculdades e institutos superiores de Veterinária, Biologia, etc. podem estabelecer programas de protecção, pesquisa e contagem. Conhecendo os efectivos no país, estaremos em condições de definir estratégias de protecção. Pequenas acções com muito impacto. A Índico está fazendo sua parte. Quiterajo idem. 

O Grito do Elefante


Volvidos anos de repovoamento e estabilidade, a fauna moçambicana retorna à incerteza e agonia.  Relatos sobre abates indiscriminados soam bem mais alto que o grito dos elefantes. No Niassa, no coração da Reserva, local consagrado como das últimas fronteiras selvagens de África e do mundo, a carnificina não tem rosto. Em média, na reserva, em 2011, foram abatidos cerca de 2.500 elefantes (loxodonta africana). Por volta de sete (7) elefantes diários, salvaguardadas as devidas proporções. Considerando que a cifra se mantenha em 2012, assumiríamos que outros 1.470 teriam muito provavelmente parado de gritar no decorrer deste ano. Presume-se que existam na Reserva do Niassa por volta de 17.000 elefantes. Ao ritmo da actual matança bastariam mais 6 a 7 anos para que a reserva perdesse sua população de elefantes como sucedeu em alguns países africanos.
Estatísticas e cálculos econométricos, nem sempre constituem unanimidade. As diferentes fontes, muitas delas sediadas no interior da Reserva, se contradizem para minimizar a dor e suavizar o grito do elefante. Não obstante, o vigoroso Miombo seco da reserva não disfarça o consternador espectáculo de milhares de carcaças perfiladas e que quase não apodrecem. Cenário de guerra sem quartel. Soam tiros. Se desmancha a serenidade da paz de quem visita a área. As razões são sobejamente conhecidas. O valor do marfim e outros espécimes no mercado internacional dispararam. Até a ossada do leão (phantera leo) ganhou mercado para sanar impotências masculinas. Para que se evitem equívocos não se trata de descaso ou mero desleixo, nem mesmo despreparo de quem tem responsabilidade por proteger a fauna. São as regras de mercado que continuam de mãos invisíveis.


O que resta de milhares de elefantes: Pilha de 15 toneladas de marfim 
apreendido no Quénia

A região mais próxima do rio Rovuma virou campo de batalha onde nenhum grito merece algum socorro. Se ao menos a carne fosse aproveitada ter-se-ia resolvido um problema fundamental de proteína animal na província. Demasiado desperdício de carne que provoca até desconfiança dos próprios predadores. As áreas concessionadas para turismo cinegético, ou áreas de amortecimento, desfrutam ainda de certa tranquilidade por disporem de efectivos bem superiores de fiscais e outros recursos.

Cambodja: toras de madeiras “recheadas” com milhares de dentes de elefante,
acondicionados com cera, provenientes de Moçambique

Todas as operações furtivas são efectuadas com recurso a sofisticado equipamento que inclui armas de precisão. Que o digam os fiscais. Unidades operativas atravessam o rio Rovuma e fazem da Reserva território sem lei e nem ordem. Não são apenas os elefantes que estão com medo de gritar, são também as pessoas que circulam pelo interior e ainda as próprias árvores. As árvores mais valiosas sumiram. Só as de segunda e terceira categoria resistem. São centenas, os acampamentos de abate de árvores. Os fiscais, apesar de todo o compromisso e empenho, estão desprovidos do essencial para a contra-ofensiva. Usam equipamento letal demasiado obsoleto, incapaz de abater até o mais simpático dos antílopes.
As recomendações da última reunião da CITES, 62ª Sessão, organismo responsável pelo comércio internacional de espécies de fauna e flora, reavaliaram o comércio do marfim por estar a atingir níveis alarmantes. Não existe qualquer citação especial para Moçambique. Porém, as instituições responsáveis não poderão ficar aguardando por advertências para cuidar do bem comum. Património de todos nós. Aliás, o surpreendente desaparecimento de várias toneladas de marfim dos cofres de quem de direito, já de si, careceria de inquéritos e exemplar penalização.
É tempo de agir. Os elefantes precisam de gritar sem medo. Essa é a forma de cantar para espantar seus males. Uma unidade especial de tropa superiormente comandada e por um período limitado de dois a três meses poderia ser a solução. Fiscais de floresta e fauna mais experientes de alguns parques, igualmente poderiam ajudar. Equipamento letal e moderno precisa de ser colocado e accionado. Os fora da lei precisam de saber que este país não é terra de ninguém. A natureza agradecerá e o mundo inteiro seguirá este e outros exemplos. A Reserva do Niassa foi citada muito recentemente como das raras regiões do mundo onde a população de leões supera os mil (1000), e onde a população de leopardos se cifra em cerca de um (1) por cada 2.4 quilómetros quadrados. Lugares de muito destaque e prestígio.


quarta-feira, 26 de julho de 2017


Poliglotismo Babilónico


Já uma vez escrevi sobre Babel. Diz a Bíblia que Deus decidiu misturar uma porção de línguas para que as pessoas não se entendessem, face ao desregramento de vida dos povos de antanho.
Hoje em dia falam-se centenas – ou milhares? – de línguas através desta Gaia (ou Geia?), há milhões de dicionários, tradutores simultâneos, até eletrônicos, mas quem enrola a língua ou não se entende com o outro... só pode socorrer-se de gestos, ou, o mais comum é levantar a voz como se isso fizesse o interlocutor “entender” a mensagem.
Vou começar por pedir que desculpem a minha verdadeira imodéstia, quando começo por afirmar que sempre tive alguma facilidade para, com alguma rapidez, entender boa parte das línguas strane com que me tenho deparado durante a vida.
Até uma vez servi de intérprete entre um japonês, que “falava” alemão à moda de Tóquio e um alemão que, além da sua língua, se entendia comigo em francês. Não sei se já escrevi esta “aventura” no blog. Vai a seguir!
Mas tem outras histórias, que mesmo tendo sido vivências minhas, ainda agora, ao lembrá-las me fazem rir.

1957
Comprei um carro – novo – e fui buscá-lo a Paris para levar para Angola. Um modesto, mas belo Simca Aronde, 1300 cc. Cheguei lá nos últimos dias em que me podiam atender, porque depois o pessoal ia para férias. Para levantar o carro entreguei toda a minha documentação – passaporte, carteira de condução, comprovante da compra feita através do representante em Portugal (com o meu grande amigo Carlos Mariano de Carvalho) e já nem sei o que mais – e recebi “a máquina” novinha. Enquanto tratavam da papelada, fui dar umas voltas por Paris, previamente avisado para não sair da cidade, esperando que uns dias depois me devolvessem a dita documentação, para poder então meter-me à estrada a caminho de Lisboa.
Estava com a minha irmã. Num dos “tours” pela Cidade da Luz consegui vislumbrar um espacinho bem mixuruco para estacionar; ali deixamos o carro e fomos passear nas Galeries Lafayette, sem dinheiro para compras, nem pressa de lá sair porque nada tínhamos para fazer.
À saída, quando estava a abrir a porta do carro vêm dois indivíduos à paisana, viram a gola do paletó para mostrar algum distintivo que eu não entendi o que seria (pensei que eram antigos combatentes de II Guerra !!!) e pediram-me os documentos do carro. Como disse, não tinha documento nenhum!
E os “caras” queriam multar-me porque o tal espacinho mixuruco era o lugar onde paravam os ónibus! O localizador era tão diferente de Portugal que eu nem me apercebi o que seria, e disse que não fazia ideia do que aquilo era. (Evidente que estava a falar francês com eles, né?)
Os “caras” ficaram um bocado chocados com a minha resposta e disseram:
- Você é parisiense e não sabe o que isto é? (Evidente que falaram francês, né?)
- Mas eu não sou francês. Sou português.
- Há quanto tempo vive em Paris?
- Dois dias.
- Então mostre-me um documento provando que é português.
- Já disse que deixei o passaporte e toda a documentação com a agência que está passar o carro para meu nome.
Vasculhei na carteira e encontrei o bilhete de identidade português, completamente diferente do francês (não havia União Europeia, nem à vista!). Comentário deles:
- Você fala tão bem, como um parisiense! Bom, acreditamos. Pode ir embora. Mas tome atenção: aqui em Paris, quando vir um espaço para estacionar... não estacione! Normalmente é proibido!
Rimos, ainda conversámos um pouco, mas eu saí de lá quase convencido a ser professor de francês... na Sorbonne!

1961 –
Andei, um pouco mais de três meses fazendo cursos e visitas profissionais a várias empresas em França, Bélgica, passámos em Inglaterra, Dinamarca, Alemanha e Suíça.
Em Paris fui à Foire National de l’Agriculture (uma maravilha) onde visitei e discuti diversos assuntos com alguns expositores. Num deles o big-chef não estava e pediram para eu voltar no dia seguinte. Mas entretanto tive que ir a Bruxelas onde me demorei uns quatro ou cinco dias. No regresso voltei à Foire, ao mesmo expositor, e quando pedi para falar com o tal chefe, o sujeito que me atendeu chama para dentro: Mr...? Voici le belge qui veut te parler!
Imagina: estive fora de França 4 ou 5 dias e já voltava com sotaque belga!
Fartei-me de rir com isto.

Pouco depois atravessámos – a minha mulher ia comigo – o Canal da Mancha, Calais-Dover, e ao chegar aos “britons”, passagem na alfândega. Vistoria do carro e das malas. Depois de três meses a falar francês o meu inglês estava totalmente bloqueado. O inspetor fazia perguntas que eu entendia, mas não era capaz de responder mais do yes ou no/not. Olhou para mim com aquele ar de superioridade britânica e mandou-me embora.
Demorou quase 48 horas para que o anglo-saxónico dialeto viesse ao de cima (à cabeça).

De Inglaterra seguimos de navio – carro e tudo – para a Dinamarca, onde chegámos bem cedo, uma manhã gélida, quando na véspera em Londres os termómetros marcaram 25° C (não Fahrenheit!). Eram oito da manhã, estava com o cabelo muito comprido, e na cidade de Esbjerg parti à procura dum barbeiro. Lá descobri, pendurada, uma placa que dizia Frisør.
“Tem que ser aqui – disse eu – mas devo de lá sair cheio de caracóis! Todo frisado.”
Era. Na velha linguagem de gestos, mostrei que queria o pêlo cortado e mostrei mais ou menos o tamanho residual que pretendia, de imediato entendido pelo profissional.
O especialista cortou muito bem, por fim trouxe um espelho para eu ver - estava ótimo - e fez uma pergunta toda dinamarquesa de que eu só entendi a palavra “shampoo”. Boa ideia, lavar a cabeça.
Pois o senhorzinho deu-me um esfrega craneana que saí de lá meio tonto... mas com o cabelo muito bem cortado, lavado e cheiroso!

Dali entrámos na Alemanha, o belo Simca começou com um barulho na roda direita traseira. Fui ver: tinha quebrado um dos parafusos que segura a roda. Chegados a Hamburgo, fomos ao hotel e dali nos indicaram uma oficina. Perto.
Veio o encarregado, em “perfeito alemão” apontei para a roda onde faltava um parafuso que se quebrara e tinham que tornear um novo. Mandou um yugoslavo, há quinze dias na Alemanha, para me atender. Olhou, viu o que precisava e num alemão pior do que o meu – que era mais ou menos só Volkswagen e Telefunken – disse, em linguagem eslavo-germânica que o carro ficaria pronto no dia seguinte às dez horas. Quando eu quis certificar-me que era mesmo às dez horas... o caldo entornou. Ele não entendeu nada, gerou-se uma babel perfeita. Aí, dona Gabriela, que em jovem tivera uma professora de alemão, busca nos seus pergaminhos intelectuais a bela linguagem de Goethe e, pausada e perfeitamente, pergunta se era mesmo às 10 horas que o carro estaria pronto.
O tal mecânico yugoslavo olhou para mim com vontade de me apertar o pescoço, como quem diz: “Este cretino tem a mulher que fala alemão e fica aqui a perturbar-me”!
Ficou pronto. Ótimo.

De volta ao hotel fomos jantar. Veio o distinto garçon, entregou a cada um o conveniente Menü e, postado como uma estátua, aguardou instruções.
Pergunto à esposa amada:
- Que tal umas costeletas de porco com batatas fritas?
- Acho ótimo.
- E um copo de cerveja?
- Sim.
Virei-me para o garçon:
­- Zwei Schweinekoteletts mit frites. Und zwei bier.
O impecável funcionário anotou tudo, e perguntou mais
- Sw#zeinen*haiertu§gquer@tzars... etc.
Como seria de esperar não entendi nada do que ele disse e respondi-lhe calmamente, em português, acompanhando com um gesto intelectualizado:
- Já não sei mais nada de alemão!
O sujeito fez um ar de grande espanto, também não entendeu, é evidente, foi embora, e enquanto não chegava com a deliciosa cerveja e mais os magníficos petiscos, a minha mulher, espantada:
- Onde é que você aprendeu alemão?????
- Aqui mesmo: Schweine vê-se logo que é suino, koteletts... igual e bier também!
Estava ótimo o jantar. Só que tiver que pedir, para mim mais umas bier!
No dia seguinte, Simca como novo, rumamos ao sul, onde na cidade... (esqueci qual) havia outra empresa a visitar. Hotel reservado, à entrada da cidade, uma porção de ruas, paro o carro e com o meu melhor sotaque à la Nietzsche, pergunto a um Inkognito Bürger :
- Bitte schoen! Hotel...”x” ?
Amável, o senhor bürger fez uma perfeita explanação do caminho a seguir. Tudo em correto deutsch:
- Erste Straße links, dritte auf der rechten Seite, zweiter von links, etc.
­­- Danke schoen!
Gravei tudo como se fosse um gravador: primeira à esquerda, terceira à direita, segunda à esquerda, etc., e quando a minha mulher perguntou o que ele tinha dito, eu pedi-lhe para não falar comigo que estragava a gravação.
Já lá para o centro da cidade, volto a parar e pergunto de novo pelo tal hotel.
Desta vez a conversa foi mais simples. O sujeito apontou: estávamos a dez metros da porta do dito!

1966.
Na época em que trabalhei em Angola com material fotográfico e ótico, um dos campos mais interessantes para atuar era a área cientifica, como raios X, artes gráficas, heliografia e microscopia.
Representávamos a Leitz, fabricante da famosa máquina fotográfica Leica e de uma completa gama de microscópios para todos os fins. Muito houve que aprender nesse campo, para poder trabalhar esta área, discutindo propostas com investigadores, universidade, laboratórios, etc.
De entrada, a fábrica alemã com aquela disciplina boche inflexível, não acreditava muito que uns sujeitos lá perdidos numa África longínqua e ignota, cheia de leões e cobras, e ainda não independente, fosse capaz de os representar com a dignidade que a sua tradição e qualidade impunham. E assim só nos iam vendendo, sem exclusivo, até que demonstrada a nossa primazia no mercado, acabaram por se render à evidência.
Com alguma regularidade era necessário ir a Wetzlar cidade pequena, com trinta e poucos mil habitantes, antiga, bonita, quase toda construída dentro de muralhas medievais, ficando a fábrica na parte exterior da cidade junto a uma das suas portas.
Era uma reciclagem para aprofundar conhecimentos, discutir condições, preparar ofertas especiais, sobretudo a propor algum material mais específico à universidade, que se estava ainda a expandir em Angola e necessitava de bastante equipamento.
Fábricas deste porte têm sempre funcionários técnicos que falam praticamente todas as principais línguas européias, e assim sempre éramos recebidos por alguém que falava francês, inglês ou espanhol, esta que é quase a nossa línguaum pouco modificada!
Dominando com facilidade o francês e inglês nunca foi problema entender-me nos diversos cantos da Alemanha por onde andei.
A Leitz tinha uma representação própria no Japão, e do mesmo modo era necessário que técnicos e pessoal de marketing japoneses estagiassem na fábrica, com as mesmas finalidades. Os que a representação japonesa ali mandava eram previamente submetidos a um curso intensivo de alemão por um período mínimo de seis meses, e só seguiam para a Europa depois do professor os considerar aptos a fazerem-se entender.
Numa dessas visitas foi destacado para trabalhar comigo um rapaz novo, alemão como seria de esperar, muito educado, recém saído da faculdade, atleta que pertencia à equipa de remo alemã. Falava muito bem francês, além do alemão. Um desportista.
Os problemas a discutir eram comuns a Angola e ao Japão, e como o delegado japonês teria aprendido o alemão, juntaram-nos os três. Tudo parecia muito certo porque o jovem alemão falaria com os dois. Para um lado alemão, para o outro francês. Perfeito.
Apresentação logo pela manhã. Nomes já foram esquecidos, mas seriam os senhores Oshiro Nakagawa e Ludwig Bismarck!
Oshiro Nakagawa associava sempre o aperto de mão, ocidental, a uma porção de várias e longas vénias, à oriental.
Depois desta pequena demonstração de ginástica amarela passámos ao trabalho e eu disse ao Ludwig que começasse pelos problemas do Japão, que eu iria com isso aprender bastante, uma vez que o japonês era um técnico, e além disso os termos dos diversos componentes do microscópio teriam, em qualquer caso, que ser mencionados em alemão, e até referenciados pelo catálogo.
Oshiro Nakagawa mais uma vez inclinou a cabeça e as costas umas quantas vezes a agradecer eu ter-lhe dado a primazia da palavra, mesmo sendo ele nessa ocasião muito mais novo do que eu. Mas tudo bem.
Começa o oriental, em alemão dantesco:
- Ya. Shii....  tsu...  funtsé... nhóshini... aká... tsirô!
O Ludwig ficou roxo, apopléctico! Nunca tinha ouvido tais frases na sua língua. Perplexo olha para mim com cara de quem pede socorro, mas eu, de alemão, pouco mais sei do que pedir uma cerveja nos bares! Com aquela explanação genuinamente alemã do japonês não me contive e ri com vontade. Oshiro, sorriso amarelo, peculiar, olhava para os dois, a ver qual teria coragem para lhe responder!
Para salvar o alemão de ser despedido por incapacidade, atrevi-me a dizer-lhe, mas desta vez em francês mesmo:
- Pergunte-lhe, falando alemão b e m   d e v a g a r,  se o que ele quer saber é este problema... assim, assim - já nem lembro o que seria. Alguma coisa a ver como fazer determinadas observações especiais.
- Você acha que é isso?
- Pelos gestos e sotaque, talvez seja! - e ria-me.
O Ludwig, alemão, ar de condenado ao cadafalso, não acreditando muito no que eu lhe dizia, mas sem outra alternativa arriscou. Nakagawa subiu aos céus. Era aquilo mesmo. Olhando ora para um ora para o outro, os dentes brancos aparecendo, feliz:
- Ya... Ya... Ya... Gut. Gut. Gut.
Bismarck naquele momento, se estivesse na sua mão poder fazê-lo, creio que me teria condecorado! Tinha-o safado de uma enrascada grande, sobretudo se ele tivesse que ir dizer ao seu chefe que não entendia o alemão do japonês!
Do mesmo modo o Oshiro Nakagawa nomeou-me seu interprete ad semper! Ficámos o dia todo juntos, e por incrível que pareça conseguimos discutir, com este método de tradução esotérica, todos os problemas que tínhamos agendado para aquele dia.
Durante o almoço, no refeitório da fábrica, ficámos também juntos e até fomos capazes de conversar com os funcionários que estavam na nossa mesa!
Cinco horas da tarde, quer faça sol ou chuva, os alemães viram-se para nós e
- Auf wiedersien! Bis morgen! - Passem muito bem! Até amanhã! - e põem-nos na rua.
O hotel do Nakagawa e o meu não eram o mesmo, mas o perdido japonês, não desgrudou do meu lado!
Era fim de verão, tempo agradável, e como nos tinham dito que podíamos frequentar o bar do clube do pessoal da fábrica, num lugar muito simpático, com um terraço encostado às muralhas, sobranceiro do rio Lahn, aí fomos petiscar e beber umas cervejas. Aquelas cervejas alemãs, que são todas ótimas.
Chegámos cedo, mais ninguém além dos dois, sentámo-nos numa mesa bem no canto do terraço de onde se avistava maior trecho do rio e do campo. Uma vista linda. O sol a pôr-se lá no fundo.
A nossa conversa era ótima, como se pode imaginar. Foi chegando gente. Trabalhadores da Leitz, alguns acompanhados da mulher ou de amigos. Vendo aquela conversa estranha mas que divertia os interlocutores, foram-se aproximando. Primeiro para ver que dialeto estaríamos falando! Depois para participarem do papo! Eles falavam alemão, eu tinha que lhes explicar, numa linguagem mista de inglês, francês, gestos e cinco por cento de alemão, que ele falava comigo também em alemão, e que eu respondia como podia! Nunca tinham visto nada parecido por ali. Aliás nem eu! Foram trazendo cadeiras e rodeando a mesa, quase todos insistindo em nos pagar ein bock, talvez em retribuição pelo espetáculo gratuito que lhes estávamos proporcionando! Pena que não pudemos bebê-las todas!
Foi uma noite sensacional. Rimos, conversámos, num entendimento especial, numa língua que não era a alemã, porque eu não a falava, muito menos o ex-estudante japonês, e nem os alemães falavam outra coisa. Eram como eu, acabavam sempre por entender um pouco daquela misturada de sons e gestos!
Acabou a farra depois das dez da noite, hora a que fechava o clube, porque havia trabalho no dia seguinte, com muito pesar de todos os presentes que se divertiram à grande.
No dia seguinte ainda me encontrei com Oshiro à entrada da fábrica, mas foi pena, não nos voltámos a ver.
Creio que se eu não aprendi nada de japonês, ele deve ter desaprendido o alemão que parecia não ter alguma vez chegado a saber! Mas que foi uma grande farra, lá isso foi!

1973
Trabalhava em Moçambique, no Banco – BCCI –o meu departamento era o de Relações Públicas e relações relacionadas, e sou mandado a Itália, Milano, fazer um pequeno estágio de uma semana, junto ao nosso correspondente a Banca Commerciale Italiana, talvez o maior banco comercial de Itália.
Tudo marcado, dia aprazado, bem cedo apresento-me no Banco e procuro pelo diretor que estaria à minha espera. Molto ammabile, conversamos tutta la mattina, almoçamos juntos e a seguir ao almoço foi levar-me a um qualquer outro departamento. Quando me apresentou ao diretor dessa área, o pobre coitado, faz um ar de terror, pergunta como ia falar comigo se ele parlava solo italiano, mas o meu anfitrião principal logo lhe assegurou com esta frase simples:
- Non ti preoccupare, lui parla di tutto. Mescolando italiano, francese, spagnolo e portoghese, abbiamo capito magnificamente.
Foi uma semana ótima. Fiz muitas perguntas, aprendi alguma coisa, sendo uma delas que a banca italiana estava vários séculos à frente da portuguesa! No final eu já parlava mesmo tutto!

2017
O difícil está em pronunciar, escrever ou entender o significado destes pré-históricos nomes hoje desinventados por brasileiros, como Karolhny, Dhiãnah, e outros que explicam porque se continua a votar tão mal!
Instrução (falta de), ou esperança de que um ou dois “h” ou “y” a mais, aristocratizam a estupidência.
王八蛋, ou como dizem os gregos σκύλα που γέννησε.

21/07/2017


quinta-feira, 20 de julho de 2017



Vamos deixar as praias de Moçambique por um pouco. Assim quem as quiser aproveitar ficará mais tranquilo. Entretanto vão tomando umas e outras!


Vinho! Aaahhh! O Vinho!

Estou a imaginar Baco a deliciar-se com os vinhos de antão, bebidos por uma cornucópia, e não por aquelas taças com que o representaram, rodeado de afrodites, lindas, todos de carne e osso e não de mármores muito bem trabalhados, mas duros e frios como a morte!




Imaginem a Afrodite e Baco assim, para beber uns copos!

Mais perto do nosso tempo, de hoje, há pouco mais de vinte anos, andava eu lá pelo norte de Portugal, no Gerês, planejando um trabalho florestal a ser feito no Parque Nacional, e tive o privilégio de conhecer um chefe dos guardas florestais, já aposentado, homem de quem fiquei amigo e de quem recordo com saudade, o senhor Machado.
Quando o conheci insistia em tratar-me por sr. engenheiro e eu quase me zanguei com ele para o convencer que o meu nome, desde que nascera, era Francisco. Ou ele me tratava assim ou eu o chamava por sr. Chefe! Humilde, relutante, acabou por me tratar por sr. Francisco e eu a ele por sr. Machado.
O que têm a ver Baco e o senhor Machado? Imagino que Baco bebia do bom e do melhor que havia nesse tempo no Olimpo, na Hélade e na Frígia – até dizem que foi ele que o inventou! – e o vinho que o meu amigo Machado produzia, das suas pequenas courelas lá no Minho, vinho verde tinto, teria convencido Baco a naturalizar-se... minhoto!
Uma das melhores delícias de vinho que já bebi, e olhem que, com a idade que conto, já devo ter ingerido, quem sabe?, talvez 8 a10 pipas de 550 litros cada... fora a cerveja, e outros álcoois! (Comecei a beber regularmente às refeições teria uns 14/15 anos, o que significa que comecei há 26.000 dias! É conveniente acrescentar que não sou um bêbedo, e que não me lembro de alguma vez ter apanhado uma bebedeira das... sérias!)
Voltemos ao vinho. O de Baco seria certamente só uva espremida e fermentada. Assim era o do meu amigo do Gerês. Uva e somente uva.
Há uns 45 anos trabalhava eu em Moçambique, na ex-Lourenço Marques, cervejas Mac-Mahon – 2M – apareceu-me um homem que queria abrir um restaurante, tinha começado já a obra num prédio, mas entretanto, acabara-se lhe o capital. Veio pedir um financiamento! Levou-me para ver a obra, o que faltava, quanto necessitava, etc., e disse-me que fazia o melhor bacalhau do planeta!
Para avaliar a situação, e como o banco BCCI era o “dono” da fábrica de cervejas, combinei ir lá almoçar com dois colegas do banco, ver se o tal bacalhau correspondia aos incómios do descapitalizado “restaurador” e, por sequência se valia o investimento!
Confirmou-se, por unanimidade, quase por aclamação, a qualidade do bacalhau que permitiu passarmos a discutir como arranjar o dinheiro necessário para terminar a obra. Não foi difícil: eu, que ali representava a 2-M, garanti o pagamento e o banco emprestou a grana. Alta!
Mas algo me intrigou: o vinho que nos serviu, um tinto “brabo” era muito bom, não tinha qualquer rótulo, e em Moçambique vinho bom, só engarrafado.
- Oh! Sr. Pereira (o meu amigo senhor Pereira, que depois brilhou em Lisboa – Restaurante Laurentina – e continua a brilhar nas mãos do filho)! Que vinho é este?
O Pereira chamou-me de lado, pediu-me segredo, que eu assegurei, e diz-me, bem baixo, no ouvido, que era ele que fazia o vinho.
- Mas onde arranja as uvas?
- Não leva uva!
- !?!?!?!?
- O meu pai trabalhou muitos anos num dos armazéns de vinhos do Poço do Bispo e aprendeu lá a fazer vinho, de qualquer tipo, sem uvas! Podia ser do Dão, Colares, de qualquer lado, mas sempre sem uvas!
Fiquei espantado. Espantado é pouco, mas a verdade é que o que ele nos deu a beber era uma bela pinga! Sempre tinha ouvido dizer que por aqueles armazéns, à beira-rio, quase se esgotava o Tejo a fazer tanto vinho, mas daí a ter a certeza de que tinha bebido um vinho, muito bom, que não era vinho, foi uma novidade!
- O senhor tem que me ensinar isso.
- Quando estivermos sozinhos eu ensino. É muito fácil.
Nunca mais houve essa ocasião, e eu perdi um profundo conhecimento científico!
Hoje, só em Portugal há centenas de marcas e tipos de vinho, desde os correntes, onde se encontram alguns muito bons (serão com a fórmula do meu amigo?!) até a marcas sofisticadas e caríssimas.
Mas vinho como os de Baco e dos meus amigos Machado e Pereira é difícil.
Os primeiros porque eram pura uva fermentada, e podia beber-se um litro que a digestão se fazia sempre com as ideias claras! O do Pereira era pura química, mas bastante bom. E, disse o “cientista”, saía-lhe bem barato!
Agora, além do anidrido sulfuroso que se injeta no topo da garrafa acabada de encher, o que sempre se fez para evitar a oxidação do vinho, a mistureba de produtos químicos que se junta às uvas é impressionante.
Dantes, e não há muito tempo, a Lei proibia juntar ao vinho, às uvas fermentadas, o que quer que fosse. Vinho era uva espremida e fermentada e nada mais.
Depois a amorosa União Europeia quis que Portugal adicionasse açúcar de beterraba ao mosto, e mais um pouco de água, com o que obteria mais vinho e eles venderiam assim o açúcar encalhado lá nos frios nortes da sobredita união. Portugal bateu o pé, falou grosso, disse que jamais faria tal coisa, a lei portuguesa era clara, etc., e os alemães e holandeses meteram a beterraba no...
Veio a modernidade, e a esculhambação!
Quando a gente pensa que está e beber o puro vinho, sem aditivos, aquele tipo Baco ou Machado, descobre que alguns juntam ao mosto um monte de tranqueira, como por exemplo:
- Estabilizante: ácido metatartárico, INS 353; quando adicionado este ácido, o vinho deverá ser previamente hidrolisado, pois induz uma precipitação incompleta de racemato de cálcio!  Entendeu? Não? Não tem importância.
- Acidulante: ácido cítrico, normalmente proveniente do melaço da cana de açúcar. Não, não espremem o limãozinho. É na química. É o ácido 2-hidroxi-1,2,3-propanotricarboxílico
- Anti-oxidante: ácido L-ascórbico, a vitamina C, que se costuma tomar para evitar a gripe!
- Espessante: goma arábica, E 414, é uma resina natural composta por polissacarídeos e glicoproteinas que é extraída de duas espécies de acácia da região subsaariana, principalmente da Acacia senegal e da Acacia seyal. INS 353 e E 414, usados simultaneamente impede as precipitações combinadas de tartaratos e matéria corante. Deu para entender? Não? Paciência.
A Goma arábica é usada como espessante e estabilizante para vários alimentos, na manufactura de colas e como espessante de tintas de escrever. Quando eu era moleque fazia uma mistura com álcool e água e ficava o dia todo penteadinho, lindão... com a cabeça durinha! Muito usada em espumantes, mesmo os que custam os olhos da cara, para espessando o vinho, segurar as bolhas que se desprendem mais lentamente e... o copo fica mais bonito! E, curioso, um dos grandes produtores de goma arábica seria o Bin Laden!!! A vender para os granfinos! Boa piada. Mas o Sudão do bonzinho Al-Bashir é o maior. (Ah! Em doses um pouco mais elevadas pode ser letal!)
E você que me lê pensava que tem andado a beber pinga da boa? Está enganado!
Primeiro veja bem o rótulo. A maioria só diz que tem sulfitos, porque sem eles o vinho viraria vinagre em dois dias. Uns, mais temerários, lá escrevem que misturaram INS 330, INS 300, INS 220, INS 200, esquecem o INS 353 e o E 414, etc., mas... tudo numa boa.
Face a estes cocktails que transformam o vinho em um quase derivante do petróleo – plástico – você só tem um caminho: começar a beber vinhos de preços acima de € 500, (só a meia garrafa) mas... assegurando-se previamente que a uva estava limpinha.
Ou então procurar antigos funcionários dos armazéns do Poço do Bispo e beber aquilo que temos a certeza de que leva tudo menos a maravilhosa uva!
Que saudades dos meus amigos Machado e Pereira. Um fazia vinho puro e ótimo, o outro um vinho ótimo e... secreto!
O problema mais grave de tudo isto é: “E agora, o que é que eu vou beber?”

19/07/2017