Um oficial em Moçambique - 2
Resposta à letra!
Dos três chefes negro-árabes que no
interior de Angoche durante meio século sucessivamente se opuseram, entre 1855
e 1903, à soberania portuguesa, cada um tinha o seu feitio. Mussa-Momade-Sabo,
por abreviação Mussa-Quanto, o primeiro, grande político e hábil general,
manifestara-se realmente magnânimo. O segundo Üsseni-Ibrahimo, ou «Mènhênhuà», deixara
recordação da sua crueldade. Farelay, o terceiro e último, era, acima de tudo,
insolente. E quando se certificou de que o novo capitão-mor, apesar de vir
expressamente do reino, não trazia soldados, para logo de entrada o achincalhar
e assim o impedir de ganhar prestígio, encarregou o Muápála-muno, em audiência pública,
de dizer-lhe “que preparasse a melhor cama na Residência porque ele Farelay dentro
de poucos dias nela se iria deitar”.
O Muápála-muno, pequeno régulo situado a trez
legoas da vila, não, ousou, é claro, levar o recado ao Parapato (que depois se
chamou Angoche, António Enes e hoje é Angoche). Mas sabendo que o recém-chegado
todas as tardes saía a cavalo e prevendo que breve o veria em Nhamuápála, não
se esquivou á incumbência e prometeu ao Farelay que, se tivesse ensejo não
deixaria de comunicar a mensagem. E, se bem o disse, melhor o fez. Como o
capitão-mór, de facto, lhe aparecesse em casa logo no dia seguinte,
Muápála-muno, habilissimo diplomata, a meio da palestra, dando informações
sobre o Farelay, repetiu com o melhor dos seus sorrisos, a insolência do
rebelde.
Aos 28 anos a paciência não é muita. Na volta de
Nhamuápála ao Parapato o capitão-mór foi todas aquelas trez légoas cogitando na
melhor maneira de responder ao desafio.
Amor com amor se paga. O Farelay
mandava-lhe preparar a cama para nela se deitar? Não lhe enviava resposta
alguma. Mas iria fazê-lo levantar da sua própria. E iria já amanhã, visto não haver tempo para partir hoje mesmo. Se o
prendesse seria óptimo; liquidava-se a campanha e a contenda. Se o matasse, as consequências seriam às mesmas. Se
ele escapasse, ao menos ficaria desprestigiado.
Havia outras probabilidades contrárias,
mas com essas não se prende gente de espada.
Da tropa, havia um alferes e vinte
praças. Era pouca gente para visitar tamanho soberano na sua capital. Mas os
novos cipaes já com quinze dias de recruta intensiva, aumentavam a hoste. E
como se tratava de um ataque de surpresa, a fazer de madrugada, após uma marcha
de noite, o adversário não teria tempo de concentrar o êcôto (brigada)
de 300 homens que sempre o acompanhava.
Parapato,
hoje Angoche;
no retângulo, localização aproximada da aringa do xeque Farelay
(Clique na imagem para ampliar)
Amadurecido o plano, guardou-o para si.
Do Parapato a M’zeia eram só 7 légoas e o telégrafo em África é rápido nas
transmissões. Tinha ido sózinho a cavalo, a Nhamuápála. Ninguém mais ouvira o
insulto. Ninguém, portanto, nem mesmo à última hora, poderia prescrutar-lhe o
desígnio. Só às cinco horas da tarde no dia seguinte começou a expedir as ordens
e ainda assim com a maior reserva. Sob segredo, determinou ao capitão
comandante da 6a companhia que às 9 e meia da noite lhe mandasse
apresentar o alferes com todas as praças disponíveis: 20 homens, como ele já
sabia.
Obrigado moralmente, por compromisso
anterior para com dois brancos, o tenente-secretário e o destemido chefe da
alfândega a levá-los consigo quando pela primeira vez saísse para o mato em
qualquer empresa, convidou-os para jantar e os preveniu.
Para despiste resolveu fazer parte do trajeto
embarcado, pelo Sucubir, (que desagua em frente a Angoche) mas dizendo que ia para
o Sul.
A maré enchia até à uma hora, as lanchas
estavam a nado na testa da ponte, os remadores dormiam no quintal: por aí não haveria empeno.
Às oito mandou chamar Üsseni-Câximo,
comandante dos cipaes, e ordenou-lhe que reunisse imediatamente metade da sua
gente, outros 20 homens.
Tudo saiu certo, e ás dez horas a
expedição largava em duas lanchas e um escaler velejando para o Norte: 4
brancos, 4 montadas, 20 soldados landins, 20 cipaes, nenhuma bagagem.
Primeiramente navegou-se, depois
marchou-se toda a noite sem ver ninguém, que em África não há outros noctívagos
senão feras. Às 5 horas da manhã o primeiro clarear da alvorada permitiu ver na
frente a três quartos de légoa, a colina da M’zeia com a povoação do Farelay na
crista. Encurtou-se o passo na testa para facilitar a reordenação da coluna,
fatalmente alongada durante a noite a despeito de todos os cuidados. Mal se
tinha normalizado a marcha, ouviu-se se de repente o clássico sinal do alarme
macua, o báu-áu-áu um grito agudo entrecortado pelo bater da palma da
mão contra os beiços. Era uma escrava que descendo a colina a buscar água,
ouvira no silencio da manhã o tilintar das armas e a estrupida dos cavalos.
A surpresa estava frustrada. Espada
alta, os quatro brancos montados carregaram encosta arriba direitos á povoação,
seguidos pela gente de pé a marche-marche, O báu-áu-áu estrugia de todos
os lados. Soou uma palapata.
Berravam cabras. Estalaram os primeiros tiros, poucos porque o êcôto
estava disperso nas massassa (abrigos de campanha).
As palhotas foram encontradas vazias. No
terreiro da povoação, aparvalhados, um velho e duas velhas. Já se ouviam mais
tiros. Urgia concentrar. No terreiro fez-se a reunião. Seguiram-se: o saque, o
incêndio, e o início da marcha de regresso.
Duas légoas ao sul da M’zeia, em
terreno bem aberto e à beira de um regato, armou-se o bivaque para merecido
descanso, das 8 horas da manhã às 3 da tarde. Cozinhou-se e dormiu-se por
quartos, metade da gente, brancos e pretos, sempre em armas. Mas não houve
novidade. Só mais tarde se veio a saber que o fator psicológico da paralisia
na reação fôra precisamente o contraste flagrante entre a propaganda
depreciativa do novo capitão-mor, que o Fareley fizera, e a conduta ousada dos
portugueses. Tanto o caudilho rebelde, como os seus sequazes, ficaram tão apreensivos com o receio de uma repetição
do caso, sem precedentes, que nunca mais, durante três anos, consentiram em se
quedar a menos de três
dias de marcha de quem «saltava de noute como o tigre».
E como o capitão-mór, no decurso do seu
governo, retraçou o território com itinerários que excederam cinco mil
quilómetros, muitas e alongadas foram as marcas de quadrilha que o seu fusco
opositor deixou, ora avançando em direção do litoral, ora retirando até ás
fronteiras do Nyassalanda.
A pequena coluna no seu regresso teve o
último alto horário em Nhamuápála. Paragem de um quarto de hora; todos estavam moídos.
Ao preparar para montar, o capitão-mor,
que o Muápála-muno tornado solicito não abandonava um momento, virando-se para o
régulo observou-lhe: «Dize ao Farelay que
a sua quitanda não prestava
para nada, por isso a queimei; a minha cama é muito melhor, que venha, pois, deitar-se
nela, que eu cá o espero no Parapato. E se lhe fizerem falta a cabaia,
a bura e o alfio que ele
deixou quando fugiu de mim semi-nu para o meio do mato, que vá lá buscá-las
também, à Residência, porque fui eu próprio por minhas mãos que as filhei na
sua palhota.»
A minúscula força poz-se
novamente em marcha e entrou no Parapato depois das 10 da noite.
O seu comandante não sabe
bem como correram as cousas nas 3 légoas daquela última parte do trajecto.
Disseram-lhe depois, o tenente-secretario e o chefe da alfândega, que ele tinha
vindo todo o tempo dormindo a sono solto, mesmo a cavalo; e que, para lhe
evitar uma queda, no caso de se desiquilibrar, tinham cavalgado a seu lado
estribo contra estribo.
Aos 28 anos essas cousas
acontecem, e passada a tensão do momento a natureza impõem-se... e dorme.
Glossário:
Cabaia – Roupa
de luxo, normalmente de seda, usada pelos chefes.
Bura e
alfio – serão outros instrumentos de chefe
Mujojos –
indivíduos, árabes ou arabisados, de nobreza local
Fonte: “Escola de Mouzinho” – Eduardo Lupi,
Lisboa - 1929
28-05-2017