segunda-feira, 29 de maio de 2017


Um oficial em Moçambique - 2
Resposta à letra!

Dos três chefes negro-árabes que no interior de Angoche durante meio século suces­sivamente se opuseram, entre 1855 e 1903, à soberania portuguesa, cada um tinha o seu feitio. Mussa-Momade-Sabo, por abreviação Mussa-Quanto, o primeiro, grande político e hábil general, manifestara-se realmente magnânimo. O segundo Üsseni-Ibrahimo, ou «Mènhênhuà», deixara recordação da sua crueldade. Farelay, o terceiro e último, era, acima de tudo, insolente. E quando se certificou de que o novo capitão-mor, ape­sar de vir expressamente do reino, não trazia soldados, para logo de entrada o achincalhar e assim o impedir de ganhar prestígio, encarregou o Muápála-muno, em audiência pública, de dizer-lhe “que preparasse a melhor cama na Residência porque ele Farelay dentro de poucos dias nela se iria deitar”.
O Muápála-muno, pequeno régulo situado a trez legoas da vila, não, ousou, é claro, levar o recado ao Parapato (que depois se chamou Angoche, António Enes e hoje é Angoche). Mas sabendo que o recém-chegado todas as tardes saía a cavalo e prevendo que breve o veria em Nhamuápála, não se esquivou á incumbência e prometeu ao Farelay que, se tivesse ensejo não deixaria de comunicar a mensagem. E, se bem o disse, melhor o fez. Como o capitão-mór, de facto, lhe aparecesse em casa logo no dia seguinte, Muápála-muno, habilissimo diplomata, a meio da palestra, dando informações sobre o Farelay, repetiu com o melhor dos seus sorrisos, a insolência do rebelde.                              
Aos 28 anos a paciência não é muita. Na volta de Nhamuápála ao Parapato o capitão-mór foi todas aquelas trez légoas cogitando na melhor maneira de responder ao desafio.
Amor com amor se paga. O Farelay mandava-lhe preparar a cama para nela se deitar? Não lhe enviava resposta alguma. Mas iria fazê-lo levantar da sua própria. E iria já amanhã, visto não haver tempo para partir hoje mesmo. Se o prendesse seria ópti­mo; liquidava-se a campanha e a contenda. Se o matasse, as consequências seriam às mesmas. Se ele escapasse, ao menos fica­ria desprestigiado.
Havia outras probabilidades contrárias, mas com essas não se prende gente de espada.
Da tropa, havia um alferes e vinte praças. Era pouca gente para visitar tamanho sobe­rano na sua capital. Mas os novos cipaes já com quinze dias de recruta intensiva, aumentavam a hoste. E como se tratava de um ataque de surpresa, a fazer de madrugada, após uma marcha de noite, o adversário não teria tempo de concentrar o êcôto (brigada) de 300 homens que sempre o acompanhava.


Parapato, hoje Angoche; 
no retângulo, localização aproximada da aringa do xeque Farelay
(Clique na imagem para ampliar)

Amadurecido o plano, guardou-o para si. Do Parapato a M’zeia eram só 7 légoas e o telégrafo em África é rápido nas transmissões. Tinha ido sózinho a cavalo, a Nhamuápála. Ninguém mais ouvira o insulto. Ninguém, por­tanto, nem mesmo à última hora, poderia prescrutar-lhe o desígnio. Só às cinco horas da tarde no dia seguinte começou a expedir as ordens e ainda assim com a maior reserva. Sob se­gredo, determinou ao capitão comandante da 6a companhia que às 9 e meia da noite lhe mandasse apresentar o alferes com todas as praças disponíveis: 20 homens, como ele já sabia.
Obrigado moralmente, por compromisso anterior para com dois brancos, o tenente-secretário e o destemido chefe da alfândega a levá-los consigo quando pela primeira vez saísse para o mato em qualquer empresa, convidou-os para jantar e os preveniu.
Para despiste resolveu fazer parte do trajeto embarcado, pelo Sucubir, (que desagua em frente a Angoche) mas dizendo que ia para o Sul.
A maré enchia até à uma hora, as lan­chas estavam a nado na testa da ponte, os remadores dormiam no quintal: por aí não haveria empeno.
Às oito mandou chamar Üsseni-Câximo, comandante dos cipaes, e ordenou-lhe que reunisse imediatamente metade da sua gente, outros 20 homens.
Tudo saiu certo, e ás dez horas a expedi­ção largava em duas lanchas e um escaler velejando para o Norte: 4 brancos, 4 monta­das, 20 soldados landins, 20 cipaes, nenhuma bagagem.
Primeiramente navegou-se, depois marchou-se toda a noite sem ver ninguém, que em África não há outros noctívagos senão feras. Às 5 horas da manhã o primeiro cla­rear da alvorada permitiu ver na frente a três quartos de légoa, a colina da M’zeia com a povoação do Farelay na crista. Encurtou-se o passo na testa para facilitar a reorde­nação da coluna, fatalmente alongada durante a noite a despeito de todos os cuidados. Mal se tinha normalizado a marcha, ouviu-se se de repente o clássico sinal do alarme macua, o báu-áu-áu um grito agudo entrecortado pelo bater da palma da mão contra os beiços. Era uma escrava que descendo a colina a buscar água, ouvira no silencio da manhã o tilintar das armas e a estrupida dos cavalos.
A surpresa estava frustrada. Espada alta, os quatro brancos montados carregaram encosta arriba direitos á povoação, seguidos pela gente de pé a marche-marche, O báu-áu-áu estrugia de todos os lados. Soou uma palapata. Berravam cabras. Estalaram os primeiros tiros, poucos porque o êcôto estava disperso nas massassa (abrigos de campanha).
As palhotas foram encontradas vazias. No terreiro da povoação, aparvalhados, um velho e duas velhas. Já se ouviam mais tiros. Urgia concentrar. No terreiro fez-se a reunião. Seguiram-se: o saque, o incêndio, e o início da marcha de regresso.
Duas légoas ao sul da M’zeia, em terreno bem aberto e à beira de um regato, armou-se o bivaque para merecido descanso, das 8 horas da manhã às 3 da tarde. Cozinhou-se e dormiu-se por quartos, metade da gente, brancos e pretos, sempre em armas. Mas não houve novidade. Só mais tarde se veio a sa­ber que o fator psicológico da paralisia na reação fôra precisamente o contraste fla­grante entre a propaganda depreciativa do novo capitão-mor, que o Fareley fizera, e a conduta ousada dos portugueses. Tanto o caudilho rebelde, como os seus sequazes, fica­ram tão apreensivos com o receio de uma repetição do caso, sem precedentes, que nunca mais, durante três anos, consentiram em se quedar a menos de três dias de mar­cha de quem «saltava de noute como o tigre».
E como o capitão-mór, no decurso do seu governo, retraçou o território com itinerários que excederam cinco mil quilómetros, muitas e alongadas foram as marcas de quadrilha que o seu fusco opositor deixou, ora avançando em direção do litoral, ora retirando até ás fronteiras do Nyassalanda.  
A pequena coluna no seu regresso teve o último alto horário em Nhamuápála. Paragem de um quarto de hora; todos estavam moídos.
Ao preparar para montar, o capitão-mor, que o Muápála-muno tornado solicito não abandonava um momento, virando-se para o régulo observou-lhe: «Dize ao Farelay que a sua quitanda não prestava para nada, por isso a queimei; a minha cama é muito melhor, que venha, pois, deitar-se nela, que eu cá o espero no Parapato. E se lhe fizerem falta a cabaia, a bura e o alfio que ele deixou quando fugiu de mim semi-nu para o meio do mato, que vá lá buscá-las também, à Residência, porque fui eu próprio por minhas mãos que as filhei na sua palhota.»
A minúscula força poz-se novamente em marcha e entrou no Parapato depois das 10 da noite.
O seu comandante não sabe bem como correram as cousas nas 3 légoas daquela última parte do trajecto. Disseram-lhe depois, o tenente-secretario e o chefe da alfândega, que ele tinha vindo todo o tempo dormindo a sono solto, mesmo a cavalo; e que, para lhe evitar uma queda, no caso de se desiquilibrar, tinham cavalgado a seu lado estribo contra estribo.
Aos 28 anos essas cousas acontecem, e passada a tensão do momento a natureza impõem-se... e dorme.

Glossário:
Cabaia – Roupa de luxo, normalmente de seda, usada pelos chefes.
Bura e alfio – serão outros instrumentos de chefe
Mujojos – indivíduos, árabes ou arabisados, de nobreza local

Fonte: “Escola de Mouzinho” – Eduardo Lupi, Lisboa - 1929


28-05-2017

quarta-feira, 24 de maio de 2017


Um oficial em Moçambique - 1

Vão seguir alguns textos com histórias de um oficial português, em Moçambique. Final do século XIX.
Uma demonstração clara do modo como se lidava com os nativos, soberanos e ciosos do seu poder e do seu povo, o respeito que nos mereciam e o respeito que as nossas atitudes igualmente granjeavam.
Obrigados a guerrear os povos moçambicanos mercê da política inglesa que os estava a financiar e mentalizar para que combatessem os portugueses e ocuparem todo o Norte do país.
Guerras são sempre tristes, mas fazem parte da história e não podem ser “varridas para baixo do tapete”! Mais do as guerras travadas, falam alto o valor, a educação e a inteligência de muitos desses militares que por lá fizeram nome. Não só para Portugal, como para Moçambique.

1.- A Pacificação de 30.000 km2


1893 - O ministro da Marinha e Ultramar, o Capitão de Mar e Guerra João António de Brissac das Neves Ferreira, tinha recebido do governador geral de Moçambique, o Capitão Tenente Rafael Jácome Lopes de Andrade, o seguinte telegrama:
«Massacrada interior... pacífica caravana objectivos mineiros comerciais composta en­genheiro ..., ex-sargento... , 5 mercadores Bombaim, 3 Goa, 40 carregadores. Cônsul britânico apresentou grave reclamação. Mas­sacre seguido sublevação geral. Território até hoje nunca penetrado sequer. Governa­dor distrital calcula população sublevada 200.000 almas incluindo 15.000 combatentes, requisita urgência brigada mixta europeia mais 5.000 cipaes zambezianos. Secundo re­quisição.»
Também o comandante-ministro não conhecia o território de ... apesar dos seus serviços na província que chegara a governar. Mas apurou que havia um oficial, um único, que por ordem de Mousinho estudara a região e que esse oficial estava em Lisboa.
Na manhã seguinte, sobre a secretaria mi­nisterial cadernos de marcha, esboços topo­gráficos, o rascunho de um relatório - e o telegrama.
Sentados frente a frente: o ministro, 60 anos, e o oficial 28.
A conferencia estava a findar e o ministro dizia: “Por motivos de ordem política interna e financeira ao governo não convém organizar uma expedição de tamanho vulto e dispên­dio. Por outro lado, considerações de política internacional impõem uma ação imediata para castigo dos rebeldes e submissão do território. Precisava que algum oficial conhe­cedor da região se prestasse a ir tomar conta dela com carta branca para tudo meter na ordem. Mas não dou um soldado nem uma moeda de vintém: quem for terá de se de­sembaraçar aproveitando os elementos locais.”
O jovem oficial, como resposta, só perguntou: “Em que dia embarco?”
O dia do desembarque, mês e meio depois (em Angoche ou Quelimane?), foi tomado pelo acto de posse, pelos discur­sos da praxe e pelo banquete oficial.

Deve ter desembarcado em algo parecido com este “paquete”!

Logo para o dia seguinte o recém-chegado encomendou um batuque na povoação indígena situada no arrabalde a oeste da vila. E foi presenciá-lo acompanhado do inter­prete Usseni-Caximo, também chefe da po­voação, seu antigo conhecido e experimen­tado companheiro de imprudências cinco anos antes.
A um lado, os dois iam escolhendo: este, aquele, fulano, cicrano. Apartaram 5o rapa­gões, fortes, alegres, os melhores bailarinos, apesar de só 40 serem precisos: 10 seriam para eliminar depois.
No terceiro dia, logo ao romper do sol, começou a instrução de recruta, intensiva e secreta, no fundo do enorme quintal murado da residência. Muito embora paisanos o não entendam, só a escola de recruta faz solda­dos, tanto de pretos como de brancos.

Assim preparados em poucas semanas os elementos locais de que o ministro falara vaga­mente, seguiram durante dois anos e meio inúmeros episódios. Muitas marchas de pe­netração (durante três épocas secas somaram 5.000 quilômetros como rezam os Boletins Ofi­ciais) em som de paz e em guerra aberta, acabaram com a lenda cafreal, fundada em fa­ctos, de que “o branco tinha navios para o mar, mas não tinha homens para o mato”.
Na impossibilidade de todos citar segue, para amostra, um dos últimos, talvez o mais curioso por mostrar, pela banda de dentro, os costumes da guerra na Macuana.
Mussa-Momade tinha acabado a parte nar­rativa e concluía repetindo textualmente o recado verbal do sexagenário xeque de Sangage, seu tio-avô:
«Tu, Gavana (capitão-mor), tens-me proi­bido de fazer guerra por minha conta, mes­mo com a maior das razões. Prometeste vir em meu socorro quando eu to pedisse, assim como eu sempre tenho acudido aos teus cha­mamentos. Ouviste a história da horrível ma­tança de pessoas da minha família e de de­zenas dos meus homens praticada por esse celerado Agy-Allaue, Que palavra sai agora do te coração?”
Sem um gesto, o branco respondeu:
“Dize ao teu tio Mussa-Piri que se vá jun­tar comigo na confluência do Mutuguti com o Moriosi daqui a 72 horas, levando toda a sua gente de guerra.”
Eram seis da tarde. Mussa-Momade e a sua pequena escolta largaram logo em direção a Sangage pela grande langua de Malatane.
Ficando só com o interprete Usseni-Caximo, chefe de terras do Inguri, o Gavana ajuntou:
«Vae já buscar-me seis estafetas de confiança, um para ir a Nhamuatua, outro para Namecoio, o terceiro para Mihéhé. E prepara a guarda-grande-do-quintal, mais trin­ta carregadores, para marcharmos daqui a quatro horas, as dez da noite”.
Às sete abalaram os três estafetas. Cada um levava como credencial um botão dou­rado, de ancora e coroa, e como instruções a mesma ordem de concentração confiada Momade Mussa.
Ás nove formaram no quintal, a um lado os 40 cipaes da guarda-de-corpo e a outro lado os 30 carregadores. Seguiu-se a distri­buição já costumeira: aos primeiros as Martinis e 60 cartuchos, aos segundos as latas com pólvora e os barriletes com zagalotes. 
Tanto a uns como a outros, 5 quilos de arroz por cabeça—a ração de ferro desse tempo.
Às dez em ponto a pequena hoste, põe-se em marcha com mais um cozinheiro, um moleque e o Gavana. Esse também a pé, que a ferida aberta por uma operação recente lhe não permitia montar a cavalo. E marchou-se durante dez horas, toda a noite e mais alguma cousa, ca­minhando 40 quilômetros. De dia dormia-se, por estar quente demais para andar. Em três marchas iguais atingiu-se a confluência do Muiuguti como Moriosi.
No campo de concentração, em plena flo­resta, as massassa (abrigo temporário) já es­tavam armadas. Eram o xeque Mussa o Namecoio-Muno dos Kopjies Erati que ti­nham chegado adiante com as suas êcôtos (colunas) de cerca de 5oo homens cada.
Pelo meio-dia entrou o gigantesco M’cuépére-Muno de Mihéhé com um soberbo con­tingente de mais de 1.000 homens. Ainda o sol se via quando chegou o de Nhamuatua, rude montanhês armado até aos dentes ca­pitaneando outro meio milheiro de guerreiros.
A concentração findara e a força excedia 2.700 homens de guerra: das tropas regulares - uma pessoa só.
Solenemente, os quatro chefes indígenas dirigiram-se, juntos, para o Quartel-General (uma arvore de boa copa) e pediram licença para murrapo-mácuê (literalmente: lavar com remédio). Já experimentado naquelas praxes o comandante-em-chefe logo concedeu. E começou a cerimónia que durou toda a noite, á luz do luar, e a maior parte do dia seguinte.
Traduzindo, cada um dos quatro cirurgiões de brigada (Chamulla) seguido pelo seu ajudante (mulupa-saco) começou passando revista sa­nitária aos guerreiros da sua hoste, um por um, ao mesmo tempo fazendo-lhes com uma faquinha pequenas incisões na epiderme so­bre os dois bíceps, sobre o peitoral esquerdo e sobre o frontal, que logo eram cauterizadas com um remédio tirado do muila (rabo da guerra, cauda de antílope ou de zebra) trans­portado pelo mulupa-saco. Coragem, força, inteligência, eram os três estímulos que a cerimonia era suposta incutir.   
Libertos das mãos dos chamulla e mulupa-saca os homens partiam em carreira aberta para o rio e procediam a rigorosas lavagens. Após o que cingiam em volta das cabeças e dos braços o licata, digamos o distintivo da unidade.
Com não menor seriedade, Usseni-Caximo, o intérprete, armado em chamuilo da guarda-grande-do-quintal e auxiliado pelo moleque Alaue, que funcionava de mulupa-saco, mas, por garoto, abusando da arnica contida na ambulância, preparavam os 40 cipaes do Gavana. Para estes porém, o distintivo, que já vinha vestido, era uma espécie de camisola sem mangas feita em filleli (tecido de algodão) vermelho forneci­do pelo armazém de bandeiras da Capitania do Porto.
Na segunda (e última) noite passada no bivaque fez-se a cuma. Das 9 às 11 os cazembes acompanhados pelos mulupa-á-tuié, homens das campainhas, recitaram os deveres militares: idênticos aos nossos em substância, mas com um acrescentamento repetido com a maior ênfase no mais cru palavreado - a recomendação de guardar rigorosa cas­tidade durante toda a campanha sob pena de desgraças terríveis, fatais e inevitá­veis.
Agy Alaue, meio-árabe, meio-preto, julga­va-se um espertalhão porque já tinha feito a peregrinação a Meca e vira na Maganja cons­truir aringas. Insubmisso e insolente, havia dois anos que abusava da paciência do Gavana.
Tinha este querido evitar a guerra e che­gara ao extremo de meses antes, ir sozinho ao covil da fera exprobrar-lhe a conduta e dar-lhe o último aviso. Ao mesmo tempo fizera discreto reconhecimento do território, da gente e da célebre aringa—que não valia muito).
Seguindo sempre oculta pela floresta, a hoste negra avançou contra o rebelde cuja povoação atingiu após duas curtas marchas de quatro léguas cada uma. Curioso. Não adoptava a tática de marcha da falange gre­ga ou a da legião romana, nem a de nenhum outro povo que houvesse tido contato com negros. Como a gente da Dácia e da Floresta Negra, avançava em três colunas paralelas que passavam à ordem de batalha com centro, n’tundu e duas alas, mono-mulopuana e môno-m’tiâna
A floresta adelgaçava. De súbito divisou-se a aringa a 150 metros. Ao toque de palapáta (corneta feita de chifre de antílope) a hoste coseu-se com o chão. O centro estacou e estendeu-se; as duas alas, correndo de gatas, de­pressa cercaram o inimigo cobrindo uns 300 graus da circunferência.
De novo os quatro chefes indígenas se di­rigiram ao comandante-em-chefe e tratando-o, dessa vez, por Munéné-á-vita-á-Ré (dono da guerra do Rei), disseram-lhe: “Agy Allaue está ali: quando quiseres dá o sinal.”
O branco avançou, sozinho, a passo, de chibata na mão, perante toda aquela gente deitada, imóvel e calada ao alcance dos espingardões da aringa (80 metros), acelerou e correu para o tapume, chibata alta. Só os defensores faziam fogo. Soaram então as grandes palapátas dos assaltantes.  
E com uma vozearia ensurdecedora todos aqueles 2700 homens se atiraram à carga contra a fortificação do rebelde, que não re­sistiu ao embate e se desmoronou com fragor.


O final não pode ser descrito por horripilante. Deve compreender-se: um homem só não podia impor preceitos cristãos, quan­to ao tratamento dos vencidos, a uma horda de 2700 selvagens enfurecidos.
Celebrando a vitória, toda aquela noite estrugiu o batuque de guerra da gente macua: N’áuâna carêma nauânéla êhânofui à guerra cortei cabeça, cortei cabeça do meu ini­migo.
Costumes dos elementos locais a que se referira o ministro. Mas só com eles, sem soldados brancos e sem gastar um vintém, recompensando-os com o saque, mulheres e gados, se sufo­cou a rebelião.

Glossário:
Aringa: defesa, tipo paliçada, feita de paus e pedras
Cazembes: os comandantes de uma ensaca - 250 homens
Langua de Malatane: grande delta acima de Angoche

Tem continuação, a ação deste jovem oficial. A continuar.

Fontes:
“Escola de Mouzinho” – Eduardo Lupi, Lisboa, 1929
“A República Militar de Maganja da Costa”, José Capela, Maputo, 1988

“Foto” – Blog Gurupez

sábado, 20 de maio de 2017




Hispânia

Vikings e Cruzados

Não se assustem! Não vou contar a história de Portugal. Só umas coisicas, com relação ao mar. Depois desta vou passar uma “temporadita” – escrita – em Moçambique, porque ainda há muito sobre o que falar daquela terra.
Não é novidade que os normandos e/ou vikings assolaram as costas de toda a península, desde o país basco até à Catalunha, atacando, destruindo, saqueando, durante uns bons, aliás péssimos, quatro séculos. Já nem vale a pena falar do que fizeram na França, Inglaterra e Irlanda, porque como estavam mais perto, mais bordoada apanharam!
Os caras eram ruins como as cobras, selvagens completos, sanguinários, implacáveis, mas uns navegadores extraordinários. Chegaram a sair lá da Escandinávia, ir atacar a Itália e até o Médio Oriente, com centenas de dracares – do viking “dragão” nome das suas embarcações – perderem às vezes três quartas partes delas em tempestades e batalhas navais, e assim mesmo seguirem em frente e tudo escaqueirarem.


Olha o pessoal aí! Loirinhos! Bonitinhos!

Depois – dizem - ainda levavam os crâneos dos inimigos, cortavam-lhes uma rodela no toutiço e por aí bebiam as suas cervejas ou vodcas, levantando gloriosamente esses crâneos e gritando SKOLL!
Enfim eram uma malta danada, e hoje são os mais civilizados do mundo.
Parece que todos teremos que nos transformarmos em bestas feras para depois construirmos uma verdadeira democracia!!!
A partir do século VIII aí vêm eles devastando e pilhando tudo. Nada lhes escapava.
Em 844 estavam a matar galegos, entraram na Corunha, mas deram-se mal. Ramiro I, rei das Astúrias deu-lhe uma surra, os selvagens perderam 70 das 100 embarcações onde vinham, mas assim mesmo seguiram até ao Tejo, onde chegaram em Agosto desse ano. Dizem documentos antigos, muçulmanos, que ali chegaram com 54 baixéis e outras embarcações ainda menores. Os números dessas épocas são pouco confiáveis. Os dos árabes bem mais.


Olha que belas botas tinha Ramiro !

Mas se os galegos lhes deram muita porrada, os lisboetas – muçulmanos – durante treze dias deram-lhes mais, e assim mesmo os raivosos seguiram até Cádiz e Sevilha que saquearam, e onde se demoraram até Novembro, quando foram totalmente derrotados pelos exércitos regulares islâmicos.
Aí perderam mais 30 embarcações que foram capturadas e voltaram para casa. No caminho de volta ainda atacaram Arzila, no Marrocos e tentaram desembarcar em Faro no Algarve e em Lisboa. Duros de roer aqueles caras.
Em Sevilha além de terem perdido muitas embarcações ficou um grande contingente de selvagens que, ou não couberam nos barcos que se salvaram ou não chegaram a tempo de embarcar. Ali ficaram e passado algum tempo já tudo estava convertido ao Islão!
E os piratas foram vindo: em 854 já estavam novamente a perturbar os galegos, e em 858-9, desta vez repelidos pelo Conde Dom Pedro. Perderam homens e navios, mas foram encher o saco, deles e dos marroquinos em Algeciras, Orihuela e Nakur na costa de Marrocos, dali seguiram para a Catalunha, França e Itália, e em 861 hibernaram na Península antes de voltarem a casa.
Em 960, reinava na Galiza Sancho I, o Gordo, ameaçaram mas seguiram. Já tinham levado uma boa surra dos galegos! Parece que terá sido esta a razão para que a Condessa Mumadona tivesse erguido o castelo de Vimaranes.
Em 966 outra frota entrou no Sado, mas os muçulmanos deram-lhe duro; saíram, mantiveram rumo ao sul e em Silves os al-garbios acabaram-lhes com a festa.
Em 968 chegam mais de 1000 homens e lá estão a atacar durante ano e meio, penetrando pela Galiza, Douro e Minho até Lugo, e só em 970 o Conde Gonçalo Sanches corre com eles, que voltam no ano seguinte. À medida em que iam “aprendendo” com os saques “descobriam” outro belo negócio: sequestro e resgate! Sacaram um monte, uma montanha de grana, aos galegos, mas continuaram a não vencer os muçulmanos, como em duas incursões em 972 no Tejo e Algarve.
Em 1008 voltam à Galiza e matam o Conde Mendo Gonçalves.
Piorou em 1014. Chefiados pelo futuro rei Olaf da Noruega, retornam à Galiza de quem tinham uma raiva danada - cansados de perder barcos e gente - atacam o castelo de Vermoim e seguem para sul pilhando as costas até chegarem a Cádiz.
1026 assaltam povoações costeiras no norte Atlântico e Portugal.
A partir desta data parece que as viagens de saque e pilhagem cessam um pouco e começam a passar frotas de cruzados, começando em 1096, após a pregação do Papa Urbano II, prometendo o paraíso a quem morresse a matar infiéis (isto lembra-me qualquer coisa do Corão, né?) até 1270.
Com esta “santa” intenção saíam aos milhares de escandinavos, ingleses, holandeses, alemães e... outros. Passaram na Galiza, em 1107 onde já não havia mouros, e vá de saquear e pilhar! Em 1109 saquearam Sintra, outros arredores de Lisboa, Alcácer do Sal e as costas do Algarve. Havia, ainda muçulmanos por todo o lado exceto já na Galiza, que, mártir, volta a ser saqueada em 1111 por escandinavos (Não perdoavam as surras que tinham apanhado anos antes!)
Em 1140 começa fase mais simpática! Ajudam Afonso Henriques a cercar Lisboa pela primeira vez. Nesta vinham já muitos franceses.
Em 1147 é que vem a grande esquadra que ajuda a conquista de Lisboa.
Afonso Henriques sabendo que vinham a caminho dá ordens para que os tratem bem no Porto onde fizeram aguada e promete-lhes o saque total de Lisboa (podem ver neste blog 3 textos sobre esta “farra”: No rescaldo da Tomada de Lisboa - Da Lisboa Antiga e da Nova Lisboa - De volta a Lisboa Antiga. O cerco durou três meses até que os muçulmanos capitularam e o saque foi um “Deus nos acuda”!
E começam também a fixar-se em Portugal grupos de “peregrinos” já fartos da viagem e de piratagem e que decidem estabelecer-se. Afonso Henrique precisa de gente para ocupar terras onde tinham estado muçulmanos e oferece-lhes uma série de localidades que mais tarde se chamaram Vila Franca de... e de... etc. Fixaram-se na Lourinhã, Pontével, Vila Verde, Atouguia, Azambuja que começou por se chamar só Vila Franca e a, até hoje, Vila Franca de Xira.
Novamente passa outra “onda de choque” em 1153 que vai em cima da Galiza para saquear! São os simpáticos peregrinos cristãos! No verão de 1154 sucedem-se atos de barbárie nas regiões de Portugal ainda ocupadas pelo Islão.
Mais uma “onda” em 1157 que ajuda o rei Afonso a cercar Alcácer do Sal pela segunda vez, mas que só cede um ano depois e atacada só por portugueses.
Em 1189 Sancho I preparava novo ataque ao Algarve. Mais uma cruzada com cerca de 3500 homens era tudo o que ele precisava para ajuda. Promete-lhes o saque de todas as cidades. Começam por Portimão e a seguir Silves a grande e culta capital do Al-Garb, que capitula, mas se recompõe no ano seguinte. Finalmente em 1197 nova cruzada, novo ataque a Silves, que pouco mais fez do que destruir, e voltou novamente para as mãos dos mouros, sendo só em 1249, que D. Paio Peres Correia a reconquistou definitivamente para os portugueses, no reinado de D. Afonso III.
E com a ajuda destes bárbaros cristãos, Portugal acrescentou as suas fronteiras praticamente até onde estão hoje.
Estas constantes viagens dos povos nórdicos às costas de Portugal abriu-lhes os olhos: em vez de virem saquear, andar à porrada, matar e morrer podiam fazer negócio. Portugal tinha um produto que valia ouro, o sal, e vinho, frutas e couros, e eles tinham cereais, têxteis das flandres e ingleses, e as madeiras de pinho para se fazerem mastros para os nossos navios!
E mais: descobrem que em Santiago, na Galiza, estão os ossos do apóstolo São Tiago. Começam as peregrinações, desta vez para irem rezar junto ao túmulo do Santo e, muito certamente pedir-lhe que lhes perdoasse todo o mal que fizeram àquela gente! E chegam peregrinos do mais longe da Europa, que vão a pé ou de navio, e assim estabelecem laços duradouros com a Galiza. (Finalmente!)
Começa uma era nova, mais tranquila. Os navios vinham no norte, comerciavam pelo caminho e voltavam com coisas novas que o sol da Ibéria lhes proporcionava.
E começam também os casamentos entre casas reais. Uma filha de Afonso Henriques casa com Filipe de Alsácia, Conde de Flandres, casamento negociado por Henrique II de Inglaterra (o marido da gloriosa Eleanor d’Aquitaine), um filho de Sancho I, Fernando, com a princesa flamenga Joana, o infante D. Afonso, mais tarde Afonso III, filho de Afonso II casou com a condessa de Bologne, Matilde, e duas princesas portuguesas casaram com reis da Dinamarca (ver de novo, neste blog Relações Norte Sul - Rainhas de Portugal).
Portugal estava a ficar importante aos olhos do mundo. (Naquele tempo o mundo era só a Europa!)
Acabaram as guerras de saque e pilhagem e começam os desentendimentos comerciais, e assaltos a embarcações comerciais. Nasciam os corsários! Cria-se protecionismo, taxas alfandegárias, etc. que volta e meia se acertavam com acordos mas que... normalmente não se cumpriam. Tal qual hoje!
Enfim a história é uma comédia, que se repete, repete, tal como as peças teatrais que duram anos, vão só mudando de atores!
Só para dar um finzinho nestas histórias.
No final do século XIV as trocas comerciais com Portugal eram interessantes, sobretudo com os portos do Báltico, e há dois documentos que particularmente me agradam:
Em Setembro de 1373, um capitão prussiano, J. Westvale, fundeou a sua coca (ver imagem) no porto cantábrico de Bermeo, região da Biscaia, país basco, e para comprar vinho a levar para França, contraiu um empréstimo de 230 francos de ouro de um mercador lombardo de Piacenza, de nome Francisquin Boisson. (Meu xará e o primeiro que vejo com um nome bonito assim! Acho que vou adotar!)


Coca. A principal embarcação da Liga Hanseática

No ano seguinte o mesmo J. Wesvale, fundeou em Laredo, na costa Cantábrica e contraiu novo empréstimo de 355 francos, com outro comerciante, também de Piacenza, chamado Gheeraert de La Rocque!!! Quem sabe se um antepassado meu!
Consta de vários documentos que o prussiano J. Westvale também esteve várias vezes em Lisboa.
Não o conheci! Foi pena.

17/05/2017


quarta-feira, 17 de maio de 2017

Memórias
O velho Rugby

Lisboa. 1956
No tempo em que oficiais do exército “mandavam” na polícia.
Nessa época tinha comprado um automóvel marca Rugby, de 1926. Rugby era a marca usada para exportação pela Durant Motors, americana, que teve vida efémera, entre 1922 e 1931. No mercado interno o mesmo carro era comercializado com as marcas Durant ou Star. Em 1923 nos Estados Unidos, o seu preço a público era de USD$ 443! Motor de 4 cilindros, 2.2 litros by Continental. E vendeu muito bem.
Apesar de ter o depósito de gasolina, atrás do motor, com um pequeno furo, por onde pingava gasolina, mesmo parado, era um carro econômico. O seu consumo era de trinta litros! Trinta litros quer andasse ou ficasse parado! Mas se andasse, com isso fazia duzentos ou mais quilômetros, o que, enquanto foi nosso nunca aconteceu! Pelo menos seguidos!
A gasolina custava menos de 4$00! Hoje, se fizermos as contas também em Escudos (1€ = 200 $ escudos) a gasolina custa 100 vezes mais! E ainda dizem que não eram “bons rempos”!
Mais de trinta anos de vida, e sobretudo já objeto de olhares saudosistas e de respeito, um vintage, na terminologia dos colecionadores. Foi descoberto numa loja de carros usados, numa rua onde eu costumava passar, sonhando que um dia ainda pudesse concretizar a vaga esperança de ver aparecer um carro de preço compatível com as minhas muito fracas posses. Como sempre gostei de coisas antigas, quando vi este velhinho sobressaindo em altura a todos os outros, logo fui atraído. Amor à primeira vista.


Igualzinho a este, mas cor cinza e sem aquela bela mala lá atrás! Lindão!
O nosso não estava assim tão bonito, mas era uma beleza.

Dei uma volta ao seu redor, tudo parecia estar em perfeita ordem, sem batidas, nem ferrugem, muito bem conservado. Até os pneus, que daquela medida já não eram fáceis de encontrar, estavam em bom estado e os estofos também cinza, de origem, em veludo tigrado!
Preço afixado no pára-brisas: Esc. 2.500$00. O equivalente a cem dólares naquela época!
Perguntei ao vendedor:
- Isto anda?
- Anda sim.
- Pode pôr a trabalhar?
- Agora não, que está sem bateria, mas se voltar aqui amanhã eu tenho o carro pronto para lho mostrar.
- Vende a prestações?
- Vendemos. Mil escudos de entrada e mais seis parcelas de duzentos e cinquenta.
- Se trabalhar, e estiver tudo em ordem fico com ele.
Fiquei encantado. Aquele preço eu podia pagar, e mais ainda um carro antigo! Propus sociedade a um amigo e colega de trabalho:
- Quinhentos “paus” a cada um de entrada e depois um mês paga um a prestação, e no mês seguinte paga o outro.
- E com quem fica o carro?
- Simples. Para não haver confusões, uma semana fica com um, outra semana com o outro. Entregamos o carro ao outro às segundas feiras.
Feito. Fomos ver o nosso carro novo! Estava a funcionar. Até a buzina tinha um som estupendo. Negócio fechado. Pagámos a entrada e podíamos ir buscá-lo no dia seguinte.
Voltámos como previsto. Entretanto a buzina, que na véspera tocava alto e forte, quase não se ouvia! Como era boa, e o carro muito velho, julgaram que podiam guardá-la para outro mais novo, e tinham-na trocado por outra pior! Sempre uma pilantradazinha pelo meio. Obrigámos a repor! Tudo tinha que sair em boa ordem.
Saímos da loja, montados e encantados. Era um carro ótimo. Nunca deixou ninguém na estrada, e quase todos os outros automobilistas respeitavam aquela relíquia. Mandavam-nos até passar primeiro nos cruzamentos. Respeito pela velhice!
Um gozo andar naquela maravilha. O banco trazeiro lá... bem atrás, as pessoas ali podiam estender as pernas à vontade e sentiam-se comodissimas.
Uma segunda feira o meu sócio chega ao trabalho furioso. Fora multado. Por falta da pala quebra-sol! Duzentos escudos. Quase o valor duma prestação!
- Por esse valor devias ter oferecido o carro ao polícia!
Estupidez de autoridade, claro. Podia muito bem ter advertido. Resolveu-se esse assunto pendurando no forro do tejadilho, com dois alfinetes, uma tampa de caixa de sapatos. Por esse lado não deu mais problema!
Uma noite fui ao cinema com a minha mulher, nesse saudoso carro. De volta a casa, perto da meia noite, Lisboa quase sem trânsito. Avenida da Liberdade, uma das mais largas de Lisboa, duas faixas de cada lado, parado num sinal vermelho um carro, novo, comum, bem no meio das duas faixas.
Chego com o velho e alto Rugby e consigo entrar num lugarzinho, bem justo, do lado direito do dono da avenida, o que este não gostou. Deve ter-se sentido apertado.
Apesar do Rugby ser um velhote, quando a luz verde apareceu consegui arrancar na frente, os primeiros metros segui adiante, o que mais ainda irritou o outro motorista, que logo de seguida nos ultrapassa dando uma guinada para cima de nós. Moleque. Novo sinal vermelho. A cena repete-se e desta vez sou eu que ao arrancar me coloco bem na frente dele. Outra molequice, mas minha. O sujeito fica bravo, corre, ultrapassa mais uma vez e atravessa o carro na avenida para me fazer parar. Parei, mas só depois de ter desviado e passado por ele! O cara estava bravo, queria discutir o que não era passível de discussão: não houve acidente, nem insultos, nem crime. Nada. Mas estava disposto a fazer valer a sua importância, talvez por ter um carro mais novo e mais caro do que o meu que só custara dois contos e quinhentos. E andava!
- Vamos à esquadra. (No Brasil seria a Delegacia!)
- Vamos. Ainda não tenho sono e não tenho nada mais para fazer!
Lá vamos nós para a tal esquadra de polícia, o zangado na frente temendo que eu não o seguisse. Parou em frente da tal esquadra e eu logo atrás. Entrámos, ele avança por ali dentro, vai direito ao subchefe de serviço e diz com ar de comandante geral das forças da NATO, ignorando que chefe de esquadra é normalmente um homem com muito calo em discussões válidas e inválidas:
- Boa noite. Eu sou tenente.
Atrás, entro eu.
- Boa noite. Senhor chefe, eu não sou tenente.
- Qual é o problema? pergunta o chefe, com ar chateado, prevendo que o problema não seria mais do que trovoada em copo de água.
- Quem sabe é o tenente. Ele é que me convidou para vir à Esquadra - e apontei para o outro.
A coisa ficou complicada para o idiota do tal tenente, porque não sabia do que se queixar. Depois de meter os pés pelas mãos, dizer que eu o tinha ultrapassado, o que era a única coisa que podia afirmar, acabou por cair no ridículo. Mais ainda quando os polícias vêm ali parados, bem na frente da esquadra os dois carros, sem poderem imaginar como teria sido possível uma corrida entre um velhinho e um carro novo.
- Mas o senhor quer apresentar alguma queixa?
-!
Finalmente o chefe, que fazia os possíveis para não rir, sugere:
- Como não há motivo para queixa, porque os senhores não vão para casa descansar? Já passa da meia noite!
Ótima sugestão. Fomos. O tenente deve ter descansado mal. Perdeu uma batalha que não houve.
Eu dormi como um justo... a rir!

Entretanto um dia o carrão não quis pegar de jeito maneira! Desci uma rua, comprida, com ele, tossiu, engasgou-se, mas... nada.
No dia seguinte tive que ir para Angola, dar uma mão a um cunhado.
O Rugby, triste, ficou a dormir no fim da rua. O meu sócio tinha saído de Lisboa para ir trabalhar numa obra já nem sei onde.
Faltavam pagar umas três prestações. Propus à loja onde o comprámos devolver a belezura e não pagar o restante.
Negócio aceite!
Mas o Rugby ficou na memória.

De “Contos Peregrinos a Preto e Branco” – Francisco G. de Amorim, 1998


15/04/2017