sábado, 18 de junho de 2016

Moçambique


1.- As Ilhas Primeiras e as Segundas

Um dos primeiros navegadores a dar notícia e descrever as Ilhas Primeiras, na costa de Moçambique, terá sido João de Lisboa (c. 1470-1525) quando da primeira vigem de Vasco da Gama, o piloto principal daquela esquadra.
São cinco as Ilhas Primeiras e as mais importantes, localizadas mais ao sul, e no total cerca de uma dúzia de pequenas ilhas coralinas situadas entre os paralelos 15° e 17º, em frente às Províncias de Nampula e Zambézia, Todas entre Pebane e a Ilha de Moçambique, esta uma ilha rochosa. Algumas só emergem nas marés baixas, e a mais alta, a Ilha da Coroa, tem uma ligeira elevação, uma duna, com 9 a 10 metros de altura.


Eu que vivi uns anos em Moçambique, não só nunca as vi, como nunca ouvi falar dessas ilhas. Desabitadas, distam do continente entre 1 e 25 quilômetros e a maioria é revestida de vegetação, uma delas se chama Ilha das Casuarinas.
No tempo da Carreira da Índia, várias foram as embarcações que ali perto naufragaram nos baixios, porque se durante o dia são difíceis de se enxergarem, e à noite impossível. Para auxílio dos navegantes montou-se então um “farol” que todas as noites tinha que ter a fogueira acesa, daí o seu nome Ilha do Fogo (com “altitude máxima de cinco metros), bem revestido de vegetação arbórea e arbustiva e tinha até um “portentoso maciço de casuarinas”. Esse “farol” foi de extrema utilidade desde o começo do caminho da Índias, e em meados do século XX este e o da Ilha Epidrendon (nome derivado de um género de orquídea da América tropical muito semelhante à encontrada nesta ilha), tinham iluminação automática. A cada seis meses um navio ia levar-lhes combustível e verificar se tudo estaria em ordem.


Um dos mais curiosos casos, mais evidente do que em quaisquer outras da costa de Moçambique, as Ilhas Primeiras estão sob a influência das correntes do Canal de Moçambique – duas correntes derivadas da grande corrente equatorial, que o percorrem em toda a sua extensão em sentido inverso uma da outra. Por força dessas correntes, a flora de Madagascar é francamente representada na costa de Moçambique e, reciprocamente também a de Moçambique o é na de Madagascar, e em ambas essas costas e nas Ilhas do Canal há muitas espécies da Austrália, das ilhas do Pacífico e de Ceilão, importadas pouco a pouco desde tempos imemoriais, sob a ação das correntes marítimas.
São reservas naturais, muito bem preservadas, mas, com autorização, talvez se consiga uma visita que certamente será do maior interesse.
Aproveitem e visitem também as Ilhas de Goa e Sena, ambas a menos de 3 milhas (marítimas) da Ilha de Moçambique... aquela jóia!

2.- Uma carta de Livingstone

Curiosa carta escrita num português “macarrónico” a um senhor Torresão que, conforme a carta, tinha sido nomeado capitão mor da vila de Zumbo, hoje fronteira com a Zâmbia.
Vai transcrita com os erros de português, que é o que tem graça na carta, visto os assuntos não merecerem atenção especial.

Os Cataratas do Shire, 31 de Dezembro de 1863.
Meu Amigo Ferrazão
Muito agradece eu as duas cartas de VS.ª, uma datada 1° de Setembro, que me foi entregada pelo Mr. Rae, a outra que chega aqui pelo vossa portadora.
Os selvagens do Norte — uma tribo de landins chamada Mazite — não tive feita prejuízo nenhumo a sua Amigo, e eu sou prompto como sempredar attençãoa suas ordens.
Desejo dar os parabéns meus em sua elevação ser capitão Mor de villa Zumbo – e mais na ocasião que a senhora tem dado nos a boa presente de menino. Desejo que a benção do Altíssimo ser a Mãe e filho muitos annos. Fas favor dar ella meu cumprimentos e de Mr. Rae.
Os instrumentos são os propriedades do Nossa Governo e não pode ser vendido. Si houveras fornecida me uma copia de observações feita VSª esta em meu poder deixar com VSª para observações de futuro – mais em quanto os observações de annos passados não parecerão, quem pode dizer. Fas favor mandar o barómetro e os termometros e pluviometro enfardado em alguma cousa molle ao senhor Ferrão em Senna não tinha eu nenhuma objeção dar cópia de observações ao Governo Portugueza porque não são cousas segredas.
Até agora não recebeo notícia nenhuma a os herdeiros de Sr. Thornton – o rifle Minié ou Enfield está em cuidado Bispo a Morrumbala.
O clavina 2 cannas é cara e não pode ser vendido para os fidalgos deste paíze - £ 42 – mas não sendo muito certo que alguma pessoa pode comprar aqui não fallei uma pessoa sobre ista negócio – é nova e nunca fez tiros. Está carregada uma vez mas nunca encontro os elephantes de que é o propria arma. Tem caixote com muitas cousas dentro – Não posso vender por menos de £ 40, e si VSª quero comprar fas favor escrever da pressa a Sr. Ferrão deter a arma na Senna e fazer negocio na minha ausência.
A balla della arma e mais grande como a balla de Minié, mas tem o mesmo forma as cannas são mais grossa como a Minié porque tenciono não escucear meu hombro.
Tinha tambem o rifle de uma canna muito forte mas não e de primeira qualedade com o outro a balla é grande pouco mais grossa e mais breve. Tem formas para ballas mas caixote não há; foi usada muitos vezes – o preço é £ 13.
Fico muito obrigado sua bondade em copiando mortandade em o destachamento militar de Tette, e tinha muita pena ouvir o falecimento de senhora da Governador e seo filha esposa do sr. Govéa parece por falta de um doutor instruido em officia de parteira.
Os Missionários tencionão regressar nesta paíize em Janeiro ou Fe­vereiro.
Quando eu serei na Inglaterra a carta dirigida – care of
Admiral Washington – Admiralty – London
ade ser entre­gada a sua amigo de sempre.
Mr. Rae remetto pouca baeta e muitas gracias por a boa presente pelo o portador não quiz escrever porque (disse elle) minha carta custa Sr. Terrazão muito ler.
Ouvi a sua portador que sr. Clementino ja está no seo volto. Espera ade arranjar a polvora conforme meu desejo. Eu estou esperamda o cheio do Rio Shire regressar. Tenciona visitar Senna na minha volto para o Barra.
O Sr. Rae manda seos cumprimentos ao VSª e sua familia. Eu também desejo o mesmo.
VS Obrigado Sr,
David Livingstone


Notas interessantes:
1.- O sr. Ferrazão era José Leocádio Botelho Torresão, tenente do Batalhão de Caçadores nr. 2 de Tete, sendo depois nomeado capitão Mor no Zumbo.
2.- Diz Livingstone que escreve das Cataratas do Shire, e quem publicou a carta (traduzida para um português pretencioso) diz que Livingstone crismou esssas cataratas para Murchison Falls, o que não parece muito provável porque as Murchison Falls estão no Norte de Uganda a mais de 2.000 quilometros de Zumbo, e além disso não ficam no rio Chire que é um afluente do Zambeze. Aliás mais adiante Livingstone diz que aguarda a cheia do Shire para ir a Senna, vila situada no Zambeze.
3.- O sr. Ferrão era Anselmo Henriques Ferrão, de origem indiana, natural de Senna, proprietário e negociante, brigadeiro de 2ª linha e  cavaleiro da Ordem de Cristo, tido por muitos como um patife e por Livingstone uma excelente e digna criatura!

Textos coletados na revista “Moçambique –Documentário Trimestral – nr. 73, Janeiro a Março de 1953

16/06/2016


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