Sócrates e as sobrancelhas
Desde
que algum ser começou a pensar, sobretudo quando percebeu que estava mesmo a
pensar, a refletir, e não somente a agir por instinto ou cautelosa repetição,
que o homem, aquele que parece ser o único que por enquanto sabe refletir
(alguns!), mesmo que seja para matar, roubar ou destruir o que quer que seja, procura
saber de onde veio e como surgiu neste planeta.
Até
há menos de um século a versão mais defendida no chamado Ocidente, era que um
Ser Superior, um Deus, teria feito um boneco de barro, e depois de lhe soprar,
o sophos, ele passou a pensar. A
seguir de uma costelinha teria feito uma mulher. Ainda hoje há milhões de
sujeitos que juram a pés junto que foi assim... há uns 4 ou 5 mil anos, quando
a ciência veio derrubar toda essa infantil e pobre, paupérrima, crença.
Depois
apareceu Lamark e Darwin que mostraram como as espécies evoluíram desde... desde
sempre. O “Santo Ofício” de Roma negou-se durante anos a aceitar essa ciência,
proibiu que um jesuíta, cultíssimo, o padre Teilhard de Chardin, publicasse os
seus trabalhos sobre a evolução da vida, apesar de jamais deixar de centrar o
homem na fé, na Cristologia, e só reconhecido pela igreja quase trinta anos
após a sua morte.
Um
dos seus escritos faz-nos pensar na “dimensão” do mundo, seja ele terreno ou
universal quando nos diz para, numa noite clara, olharmos para o céu e vermos
as estrelas, milhares, bilhões de estrelas, sendo incapazes de imaginar as suas
dimensões. Depois, que olhemos através de um microscópio eletrônico a mais
ínfima das bactérias ou qualquer ínfimo ser vivo. Comparando as duas imagens
não é difícil estabelecer uma comparação entre elas, encontrar semelhanças e em
consequência perguntar, a si próprio, qual
é a minha dimensão, e a situação de
um ser humano, no meio deste infindável universo?
A
Terra começou como uma bola de fogo, um magma, alguns dizem que há cerca de 4,6
bilhões de anos. Outros, mais recentes afirmam que teria “n” vezes mais do que esse
tempo. Qualquer que seja a sua idade nasceu, como tudo, para vir um dia a
morrer também. É o ciclo, infinito, da vida.
Com
a erupção das miríades de vulcões começaram a espalhar-se gazes de hidrogénio,
oxigénio e carbono e um belo dia o “elo perdido” deixou de ser simples matéria
para ser uma célula, com vida própria, e como diz Teilhard com a sua psique!
Uma
notícia veiculada há dois dias pelo jornal “Diário de Notícias” de Portugal,
diz-nos que “um
grupo internacional de cientistas descobriu pela primeira vez uma molécula pré-biótica (PO) resultado da ligação química do
fósforo (P) com oxigénio (O), que
desempenha um papel fundamental na formação de ADN nas zonas onde as estrelas
se formam.
A descoberta, publicada no The
Astrophysical Journal, foi feita em regiões interestelares a
24 mil anos-luz da Terra por cientistas do Centro de Astrobiologia de Espanha,
do Instituto Max Planck de Física Extraterrestre da Alemanha e do Observatório
Astrofísico di Arcetri de Itália.
24 mil
anos-luz é algo para nós tão inimaginável como o infinito:
24.000x365x24x60x60x300.000km!!!
Alguma
coisa como 227.059.200.000.000.000 quilômetros! É logo ali...
Será
essa molécula o “elo perdido”? Se for, só aqui chegará, se viajar à velocidade
da luz, daqui a 24.000 anos. Não vou esperar para ver!
Ao
mesmo tempo a Vida parece ter surgido na Terra há uns três bilhões de anos,
quem sabe se com aquela molécula PO ou outra mais “familiar” aos terráqueos!
Vamos
concluindo que:
-
a visão do céu e suas estrelas, sua distribuição, complexidade e organização,
não difere da visão de um qualquer nano
ser que terá algo igualmente organizado.
Depois,
sabendo que as primeiras ferramentas de quartzo talhado, conhecidas, terão mais
de três e meio milhões de anos, o que pode pressupor que haverá outras com mais
umas centenas ou milhões, estamos a ver que desde a primeira célula viva, com a
sua psique, até ao aparecimento dos primeiros hominídeos, a evolução levou,
fazendo contas simples, cerca de 2.996.500.000, isto é, uns três milhões de
anos. Desde esses sílex talhados até hoje consumiram-se só 1/10.000 desse tempo!
Se
alguém tiver dúvida, e o duvidar faz refletir, não deve ter muita dificuldade
em concluir que somos todos feitos da mesma matéria, animais, vegetais e até os
minerais de onde terão saído os gases que permitiram surgir a primeira célula.
Bem
mais tarde, já pertinho dos nossos dias o homem, o tal sapiens, começou a querer saber tudo, principalmente quem teria
sido o Génio que criou tudo o que existe, que deu vida a tudo, e deu largas à
sua imaginação, criando deuses. Muitos deuses, cada um de sua região e de
acordo com a sua interpretação.
Com
a expansão do conhecimento foram-se eliminando muitos deuses sem que os povos
tivessem abandonado completamente essas suas crenças.
Hoje
o conceito dos filósofos e teólogos, de praticamente todas as principais
religiões concordam em que deus, a haver será Único, e assim procuram
respeitar, acima de tudo as religiões monoteístas. Terá sido o Criador de tudo
quanto existe, na Terra e alhures. (Os mais céticos ainda deixam a dúvida: e
quem criou Deus? Um dia saberão.)
Mas,
há sempre um mas, porém, contudo ou todavia, que leva a fazer a pergunta: quem
é esse Deus Único? Entra agora nova complicação.
- Jeová,
dos hebreus? Mas Jeová era o Deus deles, e só deles, dos hebreus, o Deus da
guerra, a quem faziam sacrifícios para que os ajudasse nas guerras de
extermínio que faziam a outros povos. Então não pode ser um Deus Único, porque
os adversários também seriam “filhos” desse Deus.
- Alá?
Aquele que segundo dizem, através do Arcanjo Gabriel, disse a Maomé para passar
à espada todos os que não acreditassem nele? Impossível. Alá é um Deus
privativo dos muçulmanos. Ou Maomé, por estar a dormir não entendeu bem as
palavras do Arcanjo, ou o secretário Zaid ibn Thabit errou a escrita.
- Cristo?
O Filho de Deus feito homem que foi enviado à Terra pelo Pai, para dizer a
coisa mais elementar: Amai-vos uns aos outros. Este Deus
Pai parece ser o Único que se apresentou como o Pai de toda a humanidade, de
todos os seres vivos, de toda a Terra. Que
levassem a Boa Nova aos pagãos!
Sócrates
que morreu em 399 a.C. não conheceu essa Boa Nova, mas era um ser religioso.
Respeitava os deuses da sua cultura e procurou toda a vida ensinar os jovens a
seguirem sempre com verdade, ética e respeito aos antepassados e aos deuses.
Numa
conversa com Aristodemo que não oferecia oferendas aos deuses e até troçava dos
que o faziam, disse-lhe:
— Crês-te um ser dotado de certa
inteligência e negas existir algo inteligente fora de ti, quando sabes não
teres em teu corpo senão uma parcela da vasta extensão da terra, uma gota da
massa das águas, e que tão somente uma parte ínfima da imensa quantidade dos
elementos entra na organização do teu corpo? Pensas haver açambarcado uma
inteligência
que conseguintemente inexistiria em qualquer outra parte, e que esses seres
infinitos em relação a ti em número e grandeza sejam mantidos em ordem por
força ininteligente? Quanto maior for o ente que se digna de tomar-te sob sua
tutela tanto mais lhe deves homenagens.
— Pois olha, se achasse que os deuses
se ocupam dos homens, não os negligenciaria.
— Como! Julgá-lo que não, se antes de
mais nada, só ao homem, dentre todos os animais, concederam a faculdade de se
manter de pé, postura que lhe permite ver mais longe, contemplar os objetos
que lhe ficam acima e melhor guardar-se dos perigos! Na cabeça colocaram-lhe os
olhos, os ouvidos, a boca. E enquanto aos outros animais davam pés que só lhes
permitem mudar de lugar, ao homem presentearam também com mãos, com o auxílio
das quais realizamos a maior parte dos atos que nos tornam mais felizes que os
brutos. Todos os animais têm língua: a do homem é a única que, tocando as
diversas partes da boca, articula sons e comunica aos outros tudo o que
queremos exprimir. Nem se satisfez a divindade em ocupar-se do corpo do homem,
mas, o que é o principal, deu-lhe a mais perfeita alma. Efetivamente, qual o
outro animal cuja alma seja capaz de reconhecer a existência dos deuses,
autores deste conjunto de corpos imensos e esplêndidos? Que outra espécie além da humana rende
culto à divindade? Qual o animal capaz tanto quanto o homem de premunir-se
contra a fome, a sede, o frio, o calor, curar as doenças, desenvolver as
próprias forças pelo exercício, trabalhar por adquirir a ciência, recordar-se
do que viu, ouviu ou aprendeu? Não te parece evidente que os homens vivem como
deuses entre os outros animais, superiores pela natureza do corpo como da
alma? Com o corpo de um boi e a inteligência de um homem não se estaria em menor
condição que os seres apercebidos de mãos, mas desprovidos de inteligência.
Tu, que reúnes essas duas vantagens tão preciosas, não crês que os deuses se
carpem de ti? Que será preciso então que façam para convencer-te?
Saiba, meu caro, que tua alma aposentada
em teu corpo, governa-o como lhe apraz. Mister é acreditar, portanto, tudo
dispor a seu grado, a inteligência que habita o universo. Quê! A tua vista pode
abranger um raio de vários estádios e os olhos da divindade não poderiam tudo
abarcar ao mesmo tempo! Teu espírito pode ocupar-se simultaneamente do que se
passa aqui, no Egito, na Sicília, e a inteligência da deidade não seria capaz
de em tudo pensar a um só tempo! Certo, se obsequiando os homens, aprendes a
conhecer os que também são suscetíveis de obsequiar-te; se prestando-lhes
serviços, vês os que por seu turno estão dispostos a retribuir-te; se
deliberando com eles, distingues os que são dotados de prudência: assim também,
rendendo homenagem aos deuses, verás até que ponto estão dispostos a
esclarecer os homens sobre o que nos ocultaram, conhecerás a natureza e a
grandeza dessa divindade que tudo pode ver e ouvir contemporaneamente, estar
presente em toda parte e de tudo ocupar-se ao mesmo tempo.
Não te parece que aquele que, desde que
o mundo é mundo, criou os homens lhes haja dado, para que lhes fossem úteis,
cada um dos órgãos por intermédio dos quais experimentam sensações, olhos
para ver o que é visível e ouvidos para ouvir os sons? De que nos serviriam os
olores se não tivéssemos narículas? Que ideia teríamos do doce, do amargo, de
tudo o que agrada ao paladar, se não existisse a língua para os discernir? Ao
demais, não achas dever olhar-se como ato de previdência que sendo a vista um
órgão frágil, seja munida de pálpebras, que se abrem quando preciso e se
fecham durante o sono; que para proteger a vista contra o vento,
estas pálpebras sejam providas de um crivo de cílios; que os supercílios
formem uma goteira por cima dos olhos, de sorte que o suor que escorra da testa
não lhes possa fazer mal; que o ouvido receba todos os sons sem jamais
encher-se; que em todos os animais os dentes da frente sejam cortantes e os
molares aptos a triturar os alimentos que daqueles recebem; que a boca, destinada
a receber o que excita o apetite, esteja localizada perto dos olhos e das
narículas, de passo que as dejeções, que nos repugnam, têm seus canais
afastados o mais possível dos órgãos dos sentidos? Trepidas em atribuir a uma
inteligência ou ao acaso todas essas obras de tão alta previdência?
Há 2.400 anos já Sócrates sabia para que serviam
as sobrancelhas, que os deuses lhe haviam dado...
A vaidade, futilidade e pedantismo de muita gente,
não só não sabe isso, como substitui o que Deus lhes deu por um risco feito com
tinta!
31/05/2016