domingo, 29 de maio de 2016



Era uma vez... Angola - 1991/2


Angola vivia em final de 1991 e começo de 92 uma trégua para negociações de paz, onde ninguém confiava em ninguém. Era uma espécie de conversa de surdos. A prova é que a trégua durou pouco e a guerra civil ainda durou mais dez anos. Pobre gente.
À chegada, aguardava-me um antigo parceiro de caça, de caçadas inesquecíveis, grande amigo, uma boa disposição contagiante, o querido companheiro Nelson Peixoto, o famoso “Ninocas” de quem contei já algumas peripécias.
Deixar as malas no hotel e depois almoçar num restaurante que a TAP tinha lá para os lados do Bungo.
Garoupa. Cozida. Huummm! Que maravilha. Já não me lembrava como era delicioso o peixe de Angola. Não tem igual.
Entretanto expus o que ia fazer a Luanda e ele foi-me dizendo que falar com gente do governo era pior do que nas nossas velhas caçadas! Dificilmente encontrava alguém no trabalho. Entravam e saíam logo em seguida para o “esquema”!
O “esquema” foi uma modalidade criada pela fértil imaginação do angolano para ganhar um dinheirinho a mais. A moeda local, Kwanza, estava desvalorizadíssima; encontrar comida era uma sorte e, ou se pagava no mercado negro, o famoso e imenso Roque Santeiro, ou então tinham que ir comprar nos mercados “oficiais”, em dólares, e depois revender “cá fora” por preços incríveis. TODA a gente andava no “esquema”. Diretores de serviço, contínuos, qualquer um.
O Ninocas mandava vir legumes do sul, Benguela ou Namibe, vendia, isto é, entregava na fábrica de tabaco e, em vez de receber dinheiro pagavam-lhe em cigarros. Cá fora valiam muito mais e assim ele ia sobrevivendo!
Tudo o que vinha do sul era por mar, e atracar era coisa de loteria. Queria que eu lhe procurasse pela Europa uma barcaça de desembarque, que certamente haveria muitas como sobra de guerra. Com isso ele não tinha que esperar: levava a barcaça a uma praia, descarregava, voltava a carregar qualquer coisa para o sul e faria um grande negócio. Ainda procurei. Havia alguma coisa lá pela ex-URSS mas o custo do transporte tornava a operação inviável.
Como a empresa para quem eu trabalhava era espanhola, a primeira visita foi ao Embaixador de Espanha
Don Antonio Sánchez Jara, uma pessoa por quem fiquei com enorme consideração. No dia seguinte recebi no hotel um telefonema da sua secretária. O Embaixador pedia desculpa de me convidar à última da hora para jantar em casa dele! Mandou-me buscar de carro; à mesa, o Embaixador e a Senhora, única senhora (ambos extremamente simpáticos, para quem envio bons “saludos”), dois técnicos da Repsol, dois do Banco Mundial, o secretário da Embaixada, e eu. Um jantar delicioso, simpático, com gente muito agradável. Conversa: sobre os problemas de Angola, como é evidente, mas o único que conhecia um pouco aquele país era eu. Os outros eram “estrangeiros novatos”!
Um dos projetos que o Banco Mundial estava a analisar era o da recuperação de algumas estradas principais, mas chocavam com o elevado custo do asfalto que teria que ser importado. Entrou o “angolano” – eu – na conversa: Asfalto? Há dois lugares, aqui perto de Luanda, que eu conheço e por onde tanta vez passei, com o asfalto aflorando à superfície!
Incredulidade do “mundiais e dos repsóis”: Como é possível? Ninguém nos falou nisso! – Tem razão, mas eu vivi aqui vinte anos, cacei por todo o lado e posso garantir-lhe que isto é a realidade. Só tem que lá ir com uma escavadeira e caminhões e.... carregar! Amanhã de manhã vou estar com o meu antigo companheiro de caça e ele vai dar-me, com precisão a distância a que se encontram os dois afloramentos. – Se isso for assim, o projeto custará menos um milhão de dólares.
O Ninocas confirmou e precisou a distância a que cada um se encontrava. À tarde encontrei o pessoal do Banco Mundial que ficaram encantados e tiveram que rever todo o estudo feito com as “autoridades” angolanas!
Acompanhando o Embaixador, visita ao ministro dos Transportes que era também o diretor do Caminho de Ferro de Luanda, quase inteiramente destruído e que só ia da Estação do Bungo até à Estação dos Muceques! Uns 8 ou 9 quilômetros. Uma espécie de Metro urbano, onde não havia uma única carruagem que tivesse um vidro nas janelas: tudo quebrado. Para o interior a guerra civil havia destruído pontes, trechos de linhas, estações, etc. Intransitável. O projeto a discutir era estabelecer o custo da análise da situação, ao longo dos mais de 400 quilômetros de Luanda a Malange. Teria que se percorrer toda a via para o que era indispensável uma forte segurança armada, logística de apoio – onde dormir e comer – e que só o governo poderia fornecer.
Sexa o ministro recebeu-nos esparramadão numa poltrona, ar de “grand seigneur”, sentindo-se um sheik das arábias, foi dizendo que não podia dispor de segurança nem garantir a logística, que qualquer país podia executar em Angola os projetos que entendesse que eram muito bem-vindos, tanto mais que Angola não iria pagar nenhum deles! Eu quase explodi, mas na maior calma disse a sexa: - Angola vai pagar, pode ter a certeza que vai. E caro. Para já os bancos fazem de bonzinhos. A conta vem depois! Não quis mais interpor-me ao diplomata que se comportou como um ... grande diplomata! À saída eu ainda lhe disse: - Pobre Angola, com estas bestas!
Esse projeto nasceu já morto.
Outro que o governo tinha anunciado, seria a recuperação da agricultura rural da Baixa de Cassange, e isso me interessava muito porque conhecia bem o problema. Interlocutor: o diretor do Departamento de Agricultura... já nem sei do que. Um jovem, todo engravatado, teria menos de 30 anos, formado na Checoslováquia, que não fazia ideia do que era um pé de mandioca, de algodão e muito menos onde ficava a Baixa de Cassange.
Recebeu-me, acolitado por outros dois eminentes técnicos e a conversa foi outra desgraça.
Assim mesmo estudei bem o assunto e voltei a Luanda pouco depois para entregar o projeto pronto.  Entretanto acabou-se a trégua, recomeçou a guerra e todos os projetos foram para o lixo!
Na esperança de poder ganhar o projeto da agricultura, em conversa com os técnicos do Banco Mundial disse-lhes que havia um outro projeto do maior interesse para angola e para o mundo, que era recuperar a Reserva de Cangandala, com a Palanca Preta Gigante, animal único, e que estava bastante destroçada, como tudo. Foram unânimes em me dizer que esse projeto seria rapidamente aprovado pelo interesse que demonstrava. Eu embandeirei porque me propunha administrar os dois projetos que... nada!
Fiquei hospedado no Hotel Tivoli, que um ou dois dias depois recebeu a delegação da Unita para as conversações de paz, e todo um andar, creio que o 5°, do hotel foi-lhe reservado.
Uma ocasião em que eu subia para o meu quarto, o elevador parou nesse andar; ao abrir-se a porta fui recebido com uma metralhadora encostada à barriga! – Que estás a fazere aqui? – A caminho do meu quarto, no andar de cima!
No bar encontrei o chefe da delegação, cuja cara me lembrava alguém que tivera conhecido. Perguntei se me podia sentar a seu lado para conversarmos, ao que disse logo que sim. Não conseguimos saber de onde nos conhecíamos, mas encontrámos amigos ou conhecidos comuns; tivemos uma conversa interessante, durante a qual percebi que ele não tinha esperança em qualquer negociação com o MPLA! Com razão. O zédu não iria largar da mão o que tanto lhe rendia e ainda rende.
No dia seguinte tive que esperar talvez uma hora antes de poder sair do hotel. A tropa do MPLA estava ali na frente e já tinha metralhado o hotel!
Alugadoras de carro... não havia. O Ninocas conhecia alguém que fazia esses biscates: alugava um Ford Cortina, aí com vinte anos, já sem amortecedores, folga de mais de meia volta na direção, mas andava, foi-me muito útil e também paguei bastante por ele!
Uma tarde saí de Luanda, contra todas as advertências possíveis e quis dar uma volta pelo Cacuaco e lagoa do Panguila onde tantas vezes tinha ido caçar. No regresso meti um pouco pelo interior, estradas, aliás picadas, de terra, pelo Quifangondo, e num cabeço encontrei um pequeno aglomerado. Muita criança e adultos ficaram espantados de verem aparecer um carro, e com um branco, sozinho, lá dentro. Rodearam o carro, sempre amistosos, chamaram o chefe que era o “delegado do partido” (estrutura ainda soviética). Conversámos um pouco e num outro cabeço mais adiante eu via, acima do capim, umas manchas azuis. Estranho! O que é aquilo? – É dos bugres! – Dos bugres? – Sim.  Eu só conhecia essa palavra do Brasil que significa mais ou menos “indígena não cristão”, o que nada tinha a ver com Angola. Veio então a explicação:
- Os bugres, depois que acabou a União Soviética foram todos embora, e deixaram ali aquelas máquinas!
Entendido. Búlgaros, que tinham ido para Angola “ensinar” os angolanos a trabalhar a agricultura com máquinas. Uma imensa vigarice. Eles que nada, nada, sabiam de agricultura em clima tropical! Não ensinaram nada, não produziram nada, o povo evitava o contato com eles, tanto que estava, não proibido, mas implícito, que ninguém tocaria naquelas máquinas que ali ficram a enferrujar. Sempre deu para a URSS explorar um pouco mais os pobres africanos.
Estava nessa altura a trabalhar em Luanda, no Pão de Açúcar, um querido sobrinho, o João Carlos. Voltávamos, sábado de manhã da Ilha e fomos mandados parar por dois polícias, com duas motos novinhas, Harley Davidson, fardamento novíssimo, ar triunfal. Pediram os documentos, tudo estava em ordem e foram embora. Pararam pouco adiante para fazerem “banga” com dois colegas que estavam com as fardas podres bem como o carro. Ao passarmos ali mandam-nos outra vez parar. –Seu guarda, o senhor parou-nos agora mesmo alia atrás. – Ah! Tudo bem. Então tenham um ótimo fim de semana!
Domingo, para despedida, com o meu amigo Ninocas fomos à Ilha comprar marisco para o almoço em casa dele. Umas lagostas, muitas gambas, um precinho aceitável, umas garrafas de vinho. A empregada, que creio que era para TODO o serviço, pôs a mariscada na chapa.... e surgiu o milagre das coisas boas!
Despedi-me de Angola, com o coração partido pelo estado em que o país se encontrava, mantive algum contato com o meu amigo que um dia emudeceu. Deve ter ido descansar o que tanto merecia, mas deixou muita saudade.
Só lá voltei, de barco, quatorze anos depois.

25/05/2016

            

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