Grande nau, grande tormenta!
Provérbio bem conhecido e que se aplica a
tudo onde entra “olho gordo”.
É sabido das imensas percas de naus que
regressavam da Índia. A leitura da História Trágico-Marítima e outras mostra a
amplitude do desgaste que foi para Portugal a “aventura das índias”. A ganância
do lucro e o desprezo pelas vidas humanas.
Manuel Severim de Faria, no magistral livro
“Notícias de Portugal” de 1655, dá-nos uma explicação clara, do porque de
tamanhas percas.
Sempre houve gente estúpida. (E parece que
cada vez há mais!)
SOBRE AS
CAUSAS DOS MUITOS NAUFRÁGIOS,
que fazem as
naus da Carreira da Índia, pela grandeza delas.
“Sendo as Naus da Carreira da Índia as
Embarcações em que Portugal mete a principal substância de seu cabedal em
Dinheiro, Armas, Soldados, e Fidalguia dele, para em retorno lhe trazerem as
riquezas do Oriente, é notório a todo o Reino, quantas destas Naus se perdem
quase todos os anos. Pelo que parece obrigação mui precisa tratar-se do remédio
de tão grande dano, pois em cada Nau destas, além da gente, se perdem muitos
milhões, e sendo esta perda tamanha é a mais ordinária que padecemos, e ainda
por vezes se tem apontado várias causas deste mal, parece que de todas elas é a
maior, e mais prejudicial a demasiada grandeza das Naus, e o mau conserto, que
se lhes faz com a querena; e porque, sabido o princípio que estes erros
tiveram, se poderão mais facilmente remediar, apontarei a notícia que deles
tenho.
Todos os que têm lido as histórias da Índia,
sabem como no tempo que el Rei D. Manuel viveu não passavam as Naus da Carreira
de 400 Toneladas.
Morto el Rei Dom Manuel, e querendo el Rei
Dom João pelo tempo adiante acrescentar o Comércio das Drogas, acrescentou
também para isso a grandeza das Naus a 800 e 900 Toneladas, parecendo aos que
deram este alvitre que poupava muito em não acrescentar o número de vasos, e
que se ganharia tanto mais na pimenta, quanto mor quantidade dela se trouxesse;
porém em lugar destes dois proveitos, se seguiram a el Rei duas grandes perdas.
A primeira de gente, porque como as Naus se
fizeram tão grandes, e a Índia está sempre pedindo Soldados, embarcam-se nestas
Naus de ordinário 700 e 800 homens, e ainda mais, os quais com a variedade dos
Climas, incomodidades da embarcação, imundícia, e aperto da Nau vêm a adoecer
na viagem quase todos.
A segunda perda, a que deram causa as Naus
grandes, foi o regresso, e por isso foi muito maior, porque com esta ocasião se
perde o fruto, e retorno de todo o Comércio da Índia, a razão é porque quanto
maiores são as Naus, tanto concorre a elas mais gente, cuidando que vão mais
seguros, e as carregam com tanta confiança de roupas, e caixaria, que não
somente vêm entulhadas, e quase maciças com o recheio, mas ainda no Convés é às
vezes tão grande o número de caixas postas umas sobre as outras, que fica a
caixaria mais alta que o Castelo da Popa, e para sair da Proa à Popa, é
necessário subir pelas caixas como por um monte. Isto não somente lemos em
muitas relações de naufrágios, mas de presente mo testificou o Senhor Bispo
eleito de Cranganor Francisco Barreto, o que passou na Nau em que veio. Pelo
que, ou estas Naus se perdem totalmente, ou padecem grandes perigos nas
tormentas, chegando cá por milagre, depois de ter alijada toda a fazenda ao
mar, como se tem visto por experiência tantas vezes, e particularmente no ano
de 91 e 92, em que partiram da Índia 17 Naus, 2 Galeões, e uma Caravela, e duas
Naus novas, e destas vinte e duas embarcações, só chegaram a Lisboa as Naus S.
Cristóvão, e S. Pantaleão, que, por serem as piores, vinham descarregadas, e as
outras vinte se perderam.
Estas
duas perdas causadas pela grandeza das naus foram de tanto peso, que puseram a
todo o Reino em grandes apertos porque, com morrerem tantos Soldados na viagem,
foi necessário mandar todos os anos muita mais gente à Índia, e com os muitos
naufrágios, que em todo o tempo de el Rei Dom Manuel se não tinham visto, ficou
el Rei Dom João tão falto de cabedais, e drogas, que veio a quebrar no ano de
1544 com três milhões de dívida em Flandres, para cuja satisfação empenhou o
Património Real na maior parte dos juros, que lhe hoje vemos.
Conhecido
este grande mal da grandeza das Naus pelos do Conselho de el Rei Dom Sebastião,
que sucedeu a el Rei Dom João seu Avô, procuraram remediar, e atalhar tão
manifesto dano, porque não somente se perdia em uma Nau inestimável riqueza,
mas muita gente, Fidalgos, Soldados de grande valor, Pilotos, Mestres,
Marinheiros, Artilharia, e Bombardeiros, gente toda feita nesta Carreira, que
tanto neste Reino, como na Índia, faziam muito notável míngua; e assim
ordenando el Rei um Regimento nenhuma Nau da Índia fosse mais que de 300 a 400
Toneladas, como se vê das palavras seguintes:
E
porque sou informado, que as Naus, que hão de andar na Carreira da Índia,
convém serem de menos porte do que eram as que até agora serviam por se poderem
mais facilmente aparelhar, e carregar, e haverem mister menos gente para as
marear, e invernando fazerem despesas, que será causa de se poderem fazer, e
armar mais Naus para andarem na dita Carreira. Ordeno, e mando, por estes, e
outros respeitos, que me a isso movem, que todas as Naus, que daqui em diante
se fizerem por conta da minha fazenda, ou de partes, assim neste Reino, como na
Índia, para haverem de andar nesta navegação, não passe cada uma delas de 450
Toneladas; nem seja de menos 300 que fui informado, que era o porte, que deviam
ter para mais comodamente, e com menos risco, e despesa navegar.
Esta
ordem de el Rei se seguiu em quanto ele viveu com tão acertado sucesso, que
nenhuma destas Naus em seu tempo padeceu naufrágio, como se vê da memória das
viagens das Naus, tiradas dos livros da Casa da Índia.
Depois
de el Rei Dom Sebastião, entrou el Rei Filipe, que quando se tornou para
Castela quis deixar arrendada a pimenta a mercadores, e assim mesmo a fábrica,
e conserto das Naus, para saber com certeza quanto lhe rendia a Casa da Índia.
Com esta ocasião, desejando os Contratadores da pimenta lograr-se dos anos dos
seus contratos, pretenderam mandar vir grande quantidade dela, e para isto
acrescentaram a grandeza das Naus, como se tinha feito em o tempo de el Rei Dom
João, e porque o conserto de Naus tão grandes era notório que lhes havia de
custar muito mais caro aos Contratadores do apresto delas, porque se não podiam
tirar a monte para se consertar, como as Naus menores, introduziram a querena italiana*,
para que, sem tanto custo seu, emendassem as Naus, estando dentro da água.
Destes
dois princípios se tornaram a seguir os inconvenientes antigos, e ainda
maiores; porque com a grandeza, e carga sobeja das Naus, tornaram a ser tantos
os naufrágios, que de três naus que partem para a Índia, raramente chegam as
duas a salvamento, e o conserto da querena é de tão pouca importância, que
ficam as Naus verdadeiramente sem remédio, e reparadas somente no exterior.
Estas são as causas de se terem perdido tantas Naus do tempo del Rei Filipe
para cá, que se veio a cuidar que era isto algum mistério, não havendo outro
mais que este erro fatal da grandeza demasiada das Naus, e do superficial
conserto das querenas. Em razão deste dano tão prejudicial, por muitas pessoas
práticas deste Reino se escreveu por vezes contra ele, sendo o primeiro João
Baptista Lavanha, no naufrágio da Nau Santo Alberto, onde diz estas palavras: Tal
foi a perdição desta Nau Santo Alberto, tais os sucessos de seu naufrágio,
causado não das tormentas do cabo da Boa Esperança, pois sem chegar a ele com
próspero tempo se perdeu, mas da querena, e sobrecarga, que como a esta Nau,
assim a outras muitas no profundo do mar hão sepultado, ambas pôs em prática a
cobiça dos Contratadores, e Navegantes; os Contratadores, porque como seja de
muito menos gasto, dar querena a uma Nau, que tirá-la a monte, folgam muito com
a invenção Italiana, a qual posto que serve para aquele mar de levante, a cujas
tormentas, e tempestades podem pairar Galés, e aonde cada oito dias se toma
porto. Neste nosso Oceano é o sucesso uma das causas da perdição das Naus,
porque além de se apodrecerem as madeiras; posto que sejam colhidas em sua
sezão, com a contínua estância no mar, e desencadernarem-se com as voltas da
querena, e grande peso de tamanhas carracas, calafetando-as por este modo
recebem mal a estopa por estarem húmidas, e pouco enxutas, e quando depois
navegando, são abaladas de grandes mares, e combatidas de rijos ventos,
despedem-na, e abertas dão entrada à agua, que as soçobra, e assim tem mostrado
a experiência, que quando desta danosa invenção se não usava, fazia uma Nau
dez, ou doze viagens à Índia, e agora com ela não faz duas. O mesmo
disseram outros muitos zelosos do bem comum, até que ultimamente se deram no
Conselho dois grandes Memoriais impressos no ano de 1622, em que se mostrou,
com evidência, que a grandeza que se usava nas Naus era em dano da Fazenda, da
Milícia, e do estado do Reino. Pelo que, vistos estes Memoriais, se mandou
deixassem as Naus grandes, e tomassem a fazer Naus pequenas, e em efeito se
fizeram, e tiveram excelente sucesso, e no ano de 1633 as Naus pequenas que se
fizeram foram à Índia em quatro meses e meio, e voltaram em cinco meses, cousa
que nunca aconteceu a Nau alguma grande. Porém os homens do mar, e mais
oficiais, como são interessados na grandeza das Naus, porque quanto são
maiores, tanto maior é o espaço de sua liberdade, ou de seu lugar, para o
venderem, tornaram a persuadir aos Ministros, que convinha fazer-se Naus
grandes, e não pequenas, e assim o dirão sempre, porque são suspeitos na
matéria; e eles fizeram fazer a terceira coberta tão alterosa, que enfraquece
as Naus, e os Camarotes se têm tomado em câmaras. Finalmente as vantagens, que
as Naus pequenas levam às Naus grandes, são muito notórias, porque as Naus
pequenas são muito mais ligeiras, navegam menos quartas, e com qualquer vento,
e pedem menos fundo, e para as pelejas são de muito maior efeito. As Naus
grandes pelo contrário andam menos, porque navegam em mais quartas, não se
movem senão com vento largo, pedem muito fundo, com que perigam em muitos
portos, e não servem para a guerra, como é notório, e o nota João Botero,
quando trata das forças del Rei da Polónia, dizendo que, por as Armadas da
Cristandade porem de ordinário suas forças em vasos grandes, perderam muitas
vezes as ocasiões que houveram de alcançar se foram embarcações mais ligeiras,
e o mesmo nos tem acontecido com os Holandeses, que por os seus Baixéis serem
Galeões, sempre ficaram superiores às nossas Naus, quando se encontraram com
elas.
O caso é que cinco Galeões, ou Naus pequenas,
custam tanto como três Naus grandes, e vindo cinco Baixéis destes que dizemos
juntos, vem uma Armada muito poderosa, e vindo três Naus, vêm três carracas
muito fracas, as quais depois de duas viagens se mandam desfazer na Ribeira, e
os Galeões podem servir depois de muitos anos, assim nas viagens, como nas
Armadas da Costa; porém o que sobre tudo se pode considerar, é que de cinco
Navetas, que partem para a Índia, todas chegam ao reino, senão quando Deus
conhecidamente nos quer castigar, e partindo três Naus de Goa, é quase milagre
chegarem cá todas, por quanto do mesmo porto de Goa, por sua grandeza, e imensa
carga saem já perdidas, como aconteceu à Nau Relíquias, que dando vela, se foi
ao fundo, antes de sair do porto de Cochim.
Por conclusão de tudo nos pode servir de
demonstração desta verdade o exemplo que vemos dos Holandeses, os quais com
Galeões estão feitos Senhores do Comércio da Índia, porque as embarcações
ordinárias em que navegam não passam de 500 Toneladas. E ainda que algumas
vezes usam de outras maiores, e que chegam a 800 podem-no fazer sem tanto
risco, como nós, porque a sua carga não é de roupas, ou caixaria, senão de
Drogas cosidas em fardos, e nenhuma fazenda vai fora do seu lugar, porque a
carregação corre pelos Ministros de sua bolsa, e não pela cobiça dos nossos
Marinheiros, que costumam carregar as nossas Naus à sua vontade. Pelo que não
excedendo ordinariamente os Navios de suas Frotas de 450 Toneladas, há mais de
50 anos que fazem viagem, sem saberem quase que cousa é naufrágios, nem
perderem Galeão da Carreira, e todas as vezes que se encontravam com as nossas
Naus, ficaram superiores na peleja, por serem mais os seus Galeões, que as
nossas Naus, como pela vantagem da ligeireza. Por estas razões lhes rende tanto
o Comércio que todos os anos lhe chega a salvamento nos Galeões, são bastantes
a sustentarem a guerra na Índia, e no Brasil, contra sua Majestade, com tão
grandes Armadas, e número de soldados, que não há Príncipe fora de Espanha, que
até agora pudesse fazer outro tanto.
Além destas cousas, bem sei que há outras
muitas, para se as Naus perderem: porém a demasiada grandeza, e as querenas
são os defeitos mais ordinários, e mais fáceis de remediar, e que têm
ocasionado mais naufrágios que todos os outros juntos. Pelo que totalmente
convém, assim, para conservarmos o Comércio, como para prevalecermos contra os
Holandeses, que se deixem estas fatais Naus de suma grandeza, e tomemos aos
Galeões, e Naus pequenas, com que este Reino alcançou Senhorio da Índia, pois é
axioma certíssimo dos Filósofos, e Políticos, que as cousas permanecem, em
quanto se conservam as causas que as produziram. E deste modo evitará Sua Majestade
ver cada ano perder as suas Naus com tantos milhares de cruzados de cabedal, e
tantos Vassalos seus, que tanto lhes custaram aos pôr na Índia, e tomar a
embarcar para Portugal. E os Oficiais, Marinheiros, e Passageiros das Naus
escusarão de botar com seus mesmos braços ao mar aquelas riquezas que
adquiriram com tão compridos trabalhos, e riscos, e o que é mais, perder as
vidas, despedaçados nos penhascos das Costas bravas da Etiópia, ou escapando
daqui, às mãos dos Cafres, e de cruelíssimas fomes, dando sepultura a seus
corpos nos ventres dos Tigres, e outras semelhantes feras dos ardentes desertos
da Cafraria.”
Querena italiana: método de limpeza
do casco dos navios, “inventado” pelos italianos, sem que fosse necessário
tirá-los da água completamente. Isso, como diz, Severim de Faria, dava
resultado no Mediterrâneo, porque entre cada porto, a navegação durava só
alguns dias, e era fácil a limpeza e fazer alguns reparos. No caso das “naus da
Índia”, depois de meses de navegação, sendo impossível levá-las a um estaleiro
para uma reparação eficaz, era “semi” varada na praia, ficando sempre parte
dentro de água, e o restante só algumas horas até que a maré subisse de novo,
impedindo que o casco secasse. Assim não era possível fazer uma reparação
eficiente, e mesmo a calafetagem não fazia efeito porque a que continuava no
casco estava molhada o que não permitia um resultado durável.
23/05/2016
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