Era uma vez...
Moçambique 1991
A
paz chegou, finalmente, a Moçambique em 1992, mas com tréguas em 1991, para as
negociações que se finalizaram em Roma..
Nesse
ano trabalhei para uma empresa espanhola de projetos – GEIPEX – a serem
financiados por organismos internacionais, como o FMI, Banco Mundial, CEE, etc.,
e a área de que me encarregaram foi, além da agrícola em geral, a das antigas
colónias: Cabo Verde, Guiné, Angola e Moçambique.
Hoje
relembrando a “aventura” moçambicana.
O
caos. Desorganização total, fome por todo o país, escassez de géneros mesmo
para os mais favorecidos, o Hotel Polana, aquela maravilha, comprada havia
pouco por sul-africanos estava em começo de reforma, somente dois ou três
quartos com ar condicionado que pareciam ter dentro um motor diesel de 200 HP, ao
lado um quarteirão inteiro cheio de luxo, sob pesada guarda onde o presidente
vivia num paraíso terreal, e ainda estava em vigorar a “lei” dos primeiros
tempos da independência, proibindo a prostituição. Como se isso fosse
possível em qualquer parte de mundo!
Mas
a fome é mais forte do que as leis, e as simpáticas, e algumas bonitas, meninas
rondavam as portas dos hotéis onde se hospedavam sobretudo visitantes
estrangeiros, os únicos, além dos políticos, que dispunham de algum dinheiro.
Durante
o dia ofereciam-se, “amáveis”, humildes, a quem chegava ou saía do hotel,
perguntando “não queres uma amiga”?
Os
“amigos” recusavam a quase totalidade dessas simpáticas investidas.
Na
primeira noite que ali passei, um dia de excepcional calor de 40°, um quarto
sem ar condicionado, janelas abertas sem preocupações com eventuais mosquitos,
porta aberta para também o corredor, suando, só de cueca em cima do lençol,
carteira com o dinheiro por baixo da almofada (todos por ali roubavam o que
podiam), por volta da 1 ou 2 horas da madrugada ouviu-se grade azáfama pelo
hotel.
Alguns
hóspedes chegaram a pensar que tinha havido ou incêndio, ou algum acidente na obra.
Nada disso.
As
ditas meninas que não alcançavam o almejado sucesso durante o dia decidiram
invadir o hotel, ir bater nas portas dos quartos dos hóspedes a oferecer mais
objetivamente as suas amabilidades e conhecimentos! O pessoal do hotel não as
conseguiu conter e teve que chamar a polícia!
A
“farra” durou quase uma hora e por fim, as beldades tiveram, uma vez mais, que
bater em retirada.
Não!
Não chegaram ao primeiro andar onde eu estava! De manhã o comentário era geral
e os hóspedes aplaudiram a determinação das pobres garotas, que, uma vez mais
parece não terem conseguido alcançar os seus (delas) propósitos.
O
propósito da minha visita ao país era ver com as autoridades locais o que
poderiam precisar, sobretudo no campo da agricultura, mas ninguém sabia nada,
ninguém jamais havia pensado em coisa alguma, e era o mesmo do que falar com
uma parece ou um bloco de pedra.
Pensei
então, face à penúria de alimentos que, com água que em Maputo não falta, se
poderia propor a criação de uma cintura verde para produção de legumes e frutas
e, o mais importante, uma agricultura não de empresas, mas de trabalhadores e
suas famílias.
Ministério
da agricultura nem sei se havia naquele ano, porque não consegui nem descobrir,
nem falar com alguém. Fui então à Faculdade de Agronomia ver se encontrava na
biblioteca algum estudo sobre as terras onde pensava deveria ser instalada a
tal “cintura”.
Talvez
tivesse ao todo uns cem livros! Tudo o que lá terá havido anteriormente...
havido sumido. Entre os inúteis remanescentes, um estudo, notem bem, um
estudo feito por cientistas
suecos, pagos em Euros, e muitos, pela CEE, que em três largos volumes descreviam
as características dum inseto... desconhecido. Utilíssimo para quem precisa
comer, que se pudesse, comeria até o tal inseto.
Uma
vergonha e uma tristeza. E revolta!
Enfim
não conseguia fazer nada de útil.
Um
dia decidi ir almoçar ao velho e magnífico restaurante da Costa do Sol, a
funcionar, creio que com os mesmos e primitivos donos, pouquíssima gente, mas a
mesma maravilha de frutos do mar que eu ainda lembrava de dúzia e meia de anos
atrás! Hoje é um lugar super concorrido. Sempre cheio.
O
restaurante está a uns 8 ou 9 quilómetros do centro da capital, e a estrada para
lá vai circundando mar e praias. Naquele ano, poucas casas ainda, um caminho
semidesértico. Logo à saída da cidade encontro, caminhando, solitário, um
soldado da Frelimo.
“Quer
uma carona (boleia)?”
Espantado
aceitou logo, e fomos conversando. Ganhava, como soldado, uns 20 dólares por mês,
mas não lhe pagavam há mais de três meses. Então decidiu, de seu próprio risco,
ir para sua casa que ficava um pouco além da Costa do Sol. Levei-o até onde o
caminho dava passagem ao carro. Depois dei-lhe uma quantos meticais (não recordo quanto, mas talvez o equivalente a um mês de
salário... de miséria) o que o deixou comovido. Juntaram-se à volta do carro talvez
uma dúzia, ou mais, de moradores daquele local, sobretudo crianças, mulheres e
poucos homens que muito agradeceram.
Dali
fui almoçar e quem estava comovido, e furioso, era eu!
Naquela
avenida que vai para o Club Marítimo e segue depois para a Costa do Sol, havia
desde o tempo colonial, umas pequenas construções, tipo quiosques, onde foi uma
casa de chá e era agora – 1991 – um pequeno restaurante, onde fui jantar
(marisco, claro) na véspera de ir embora.
Só
uma mesa ocupada com dois casais russos, cada indivíduo pesado umas 6 a 8
arrobas, bem pesados, que bebiam cerveja, riam, falavam alto, enfim, umas
bestas.
Sentei
o mais longe que consegui – talvez dois ou três metros – encomendei os camarões
e cerveja e fui-me deliciando com o petisco e o belo clima que fazia – os 40°
do dia da chegada no dia seguinte estavam já em 25 – mas incomodado com o
rosnar daqueles animais que lembravam os caminhões pesados da antiga URSS, e que
entretanto pediram a conta. Gorilas, machos e fêmeas, todos em conjunto
analisavam a despesa e discutiam. Chamaram o empregado, um humilde e pobre
moçambicano e descompunham o desgraçado porque teria posto algumas cervejas a
mais na conta, o que era mentira.
Veio
o patrão, outro moçambicano, os russos devem ter-lhes chamado alguns palavrões,
tipo filho de stalin ou do putin, e decidiram reduzir o valor da nota e nem um
centavo de gorjeta deram ao rapaz, que ficou com um ar de tristeza incrível.
Pelo insulto, desprezo demonstrado e falta dum dinheirinho.
Eram
os russos que estavam, felizmente por pouco tempo mais, a dar ordens em
Moçambique e, bestas mal educadas, tinham um profundo desprezo pelos nativos.
Revoltado,
mas sem “exército” para dar um monte de porrada naqueles monstros, limitei-me a
dizer ao rapaz que esquecesse, o que era difícil.
Por
fim a minha despesa era ridícula, já que os meticais estavam
desvalorizadíssimos, de modo que não era, nem foi, generosidade alguma dar uma
boa porção de notas ao infeliz que se curvava para me agradecer. Para que não
se humilhasse mais, à saída dei-lhe um abraço.
Voltei
para o Hotel com vontade de me juntar ao exército nazi que invadiu a Rússia!
Nessa
última noite tive ar condicionado no quarto, um dos dois únicos com esse
“conforto”: parecia ter no quarto um dos tais caminhões diesel, e mal preguei
olho!
Negócios
com Moçambique: zero.
Comprei
umas pequenas peças de artesanato, meia dúzia de capulanas, e à saída, no
aeroporto, uma fiscal (ou fiscala?) decidiu embirar com aquele “contrabando”!
Discussão brava porque eu não aceitei que me fizessem pagar taxas pelo que
levava. Uma estupidez! Moçambique nada tinha para vender a não ser aquelas
misérias, e com isso implicavam com os visitantes.
Chamei
o chefe, disse-lhe que podia perder o voo mas que iria dali queixar-me ao
ministério (já nem sei do que), que ao ver-me com ar determinado e imaginando
que eu conheceria alguém importante, lá condescendeu em que levasse aquilo
tudo. O tudo que não era quase nada.
Só
voltei a Moçambique vinte anos mais tarde, mas dessa vez como voluntário para
dar uma ajuda, pequena, à Casa do Gaiato.
Nos
próximos textos: viagens com o mesmo fim a outras ex-colónias!
AQUELE SEU ABRAÇO, FRANCISCO, AQUELE TÃO HUMANO SEU ABRAÇO, NÃO FOI DE URSO...
ResponderExcluir