Portugas e lisboetas:
deixem de se lamentar!
Rio -Lisboa
Magnífica
crónica do grande jornalista Joaquim
Ferreira dos Santos
O bom de descer as ladeiras de
Lisboa é que durante alguns dias você está longe da selvageria carioca, pode
sentir a nostalgia de sair flanando como fazia antes nas ruas da sua cidade.
Zero de medo. Assim como quem não quer nada, um sorvete da Santini numa das
mãos, você vai Rua do Carmo abaixo, passa pela luvaria Ulisses e, quando dá com
os cornos no Rossio, o largo monumental pode fazer a surpresa de oferecer uma
festa de máscaras ibéricas, comidas e danças por todos os lados, mas nunca a
cena de um médico ensanguentado no chão do Café Nicola, esfaqueado por algum
garoto que em seguida lhe roubou a bicicleta e foi embora.
Isto aqui é Lisboa, opa. Zero de
deslumbramento. As escolas de Portugal acabaram de ser avaliadas em trigésimo
lugar num ranking de 38 sistemas educacionais europeus, há muita coisa a ser
feita, mas o bom listo aqui é que se vive em paz com os pequenos valores da
existência. Zero de sobressaltos. A delícia antiga de se ir ali à esquina e, a
ordem natural da felicidade das coisas, voltar sem que a polícia lhe tenha
metido uma bala perdida nas costas.
Agora,
por exemplo, você está na ladeira do Príncipe Real e basta pôr os pés na faixa
de pedestres para que os carros parem até você legar do outro lado. Aí é só
começar a descer a rua por uma calçada de pedras portuguesas, todas postas em
seus lugares, nenhuma solta e chamando os pés para um tropeço que pode para
sempre lhe estuporar os joelhos e desgraçar a sobrevivência.
Não está
acontecendo nada de muito notável, Lisboa está linda, mas não se faz aqui um
registro de qualquer grande marco a se exaltar na revolução civilizatória
moderna. É apenas uma cidade que tem se descoberto feliz consigo mesma.
Lisboa
está coberta dos caminhos simples, verdadeiros yellow-brick-roads para
se levar a vida com leveza, essa carência carioca, e num deles você desce o
Bairro Alto, atravessa o Largo Luís de Camões, pega a Rua Alecrim e, ao final,
apesar de todas as modernidades da Rua Nova do Carvalho, é possível encontrar
ainda de pé as tascas da tradição gastronómica. Tudo convive sem conflito. Ao
contrário do Rio onde toda semana fecham uma mesa na memória do paladar e tiram
da boca do cidadão um gosto familiar, em Lisboa é possível sentar num
tamborete do quase botequim Sol e Pesca para comer as conservas que há séculos
apetecem ao apetite local. Ninguém mais sabe ao certo o que é antigo e o que é
moderno. As sardinhas continuam nas latas, o azeite continua de oliva, mas o
estilo de tudo isso agora vem embrulhado em papéis do mais fino design.
Isto
aqui é Lisboa, ó pá, e isto não é o anúncio de que o mundo está sendo
reinventado a partir de suas oito colinas. Os políticos corruptos também
estão, como os ratos de sua corja internacional, nas capas do
"Expresso" e do "Público". Mas na vida real do dia a dia a cidade encontrou um jeito
delicado de lustrar os seus casarões magníficos, parecidos com os que todo mês
desabam na Lapa carioca e, ao mesmo tempo em que se orgulha deles, reinventa
suas funções. Não há mais loja de roupa, mas de "conceito" e
portuguesa de bigode era a vovozinha. Agora as garotas são todas "giras” o
termo local para traduzir o "cool"
A
sensação em alguns momentos é que você vai sair da Rua Augusta, tomar uma ginja
no canto da Praça da Figueira e quando dobrar em direção ao Largo dos
Intendentes vai dar na verdade nos Arcos da Lapa. Mas é só impressão. As ruas
são limpas, os garçons servem às mesas com presteza, os telhados são os mais
bonitos do mundo e as praças estão sempre tomadas por senhoras que descansam
ou jovens, no Quiosque do Refresco, animados por doses de capilé. Tagarelam,
paqueram, o de sempre. Ninguém aporrinha o próximo.
O Cais
do Sodré, por exemplo, está basicamente o mesmo de sete anos atrás. Mas se
você prestar bem a atenção, andar para a direita e entrar no Mercado da
Ribeira, lá sobrevive o comércio tradicional das barracas dos tripeiros,
convivendo com os stands da nova culinária portuguesa, tudo redesenhado sob o
patrocínio da revista "Time Out" - e é impossível ao carioca não
pensar que um dia, sem precisar ir tão longe, poderia estar assim, curtindo a
vida em paz, comprando suas flores, gastando pouco, beliscando o que quisesse,
na Cadeg de Benfíca. Depois, sem entrar em pânico, passaria pela Barreira do
Vasco e chegaria em casa para contar aos que ficaram como foi bom.
Ao
carioca-da-semana-passada, um dos períodos mais tristes da vida da cidade, foi
preciso ir até Lisboa para recolher histórias de não acontecimentos, comer um
bacalhau ao sossego e ter a sensação inenarrável de que não corre o risco de
ser assassinado na próxima esquina - é em Lisboa esses sonhos, essas
pataniscas simples, parecem cada vez mais fáceis de se realizarem. A cidade se
pacificou com suas tradições, entendeu feliz que um bom jeito de avançar é o da
refazenda das suas guarirobas. Ao invés de gourmet, os pastéis de Belém
procuram resgatar a receita original. E se em algum momento a cidade tentou
esquecer Amália Rodrigues, por causa de suas relações com Salazar, Lisboa
agora, em mais um arroubo de orgulho pelas suas referências, está cercada de
motoristas de táxi com os carros sintonizados na recente Rádio Amália, um
chorrilho de 24 horas de fados da grande cantora.
Na
chegada ao Galeão, o carioca-da-semana-passada foi cercado pela notória turbamulta
de taxistas. Sonhou que uma Rádio Elizete Cardoso iniciava o processo de pacificação
geral e convocava a cidade a guardar suas
facas.
OBRIGADO PELO PETISCO!
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