segunda-feira, 25 de maio de 2015


Portugas e lisboetas: deixem de se lamentar!


Rio -Lisboa


Magnífica crónica do grande jornalista Joaquim Ferreira dos Santos


O bom de descer as ladeiras de Lisboa é que durante alguns dias você está longe da selvageria carioca, pode sentir a nostalgia de sair flanando como fazia antes nas ruas da sua cidade. Zero de medo. Assim como quem não quer nada, um sorvete da Santini numa das mãos, você vai Rua do Carmo abaixo, passa pela luvaria Ulisses e, quando dá com os cornos no Rossio, o largo monumental po­de fazer a surpresa de oferecer uma festa de máscaras ibéricas, comidas e danças por to­dos os lados, mas nunca a cena de um médi­co ensanguentado no chão do Café Nicola, esfaqueado por algum garoto que em segui­da lhe roubou a bicicleta e foi embora.
Isto aqui é Lisboa, opa. Zero de deslumbra­mento. As escolas de Portugal acabaram de ser avaliadas em trigésimo lugar num ranking de 38 sistemas educacionais europeus, há muita coisa a ser feita, mas o bom listo aqui é que se vive em paz com os pequenos valores da existência. Zero de sobressaltos. A delícia antiga de se ir ali à esquina e, a ordem natural da felicidade das coisas, voltar sem que a polícia lhe tenha metido uma bala perdida nas costas.
Agora, por exemplo, você está na ladeira do Príncipe Real e basta pôr os pés na faixa de pedestres para que os carros parem até você legar do outro lado. Aí é só começar a descer a rua por uma calçada de pedras portuguesas, todas postas em seus lugares, nenhuma solta e chamando os pés para um tropeço que pode para sempre lhe estuporar os joelhos e desgraçar a sobrevivência.
Não está acontecendo nada de muito notá­vel, Lisboa está linda, mas não se faz aqui um regis­tro de qualquer grande marco a se exaltar na re­volução civilizatória moderna. É apenas uma ci­dade que tem se descoberto feliz consigo mesma.
Lisboa está coberta dos caminhos simples, ver­dadeiros yellow-brick-roads para se levar a vida com leveza, essa carência carioca, e num deles você desce o Bairro Alto, atravessa o Largo Luís de Camões, pega a Rua Alecrim e, ao final, apesar de todas as modernidades da Rua Nova do Carvalho, é possível encontrar ainda de pé as tascas da tra­dição gastronómica. Tudo convive sem conflito. Ao contrário do Rio onde toda semana fecham uma mesa na memória do paladar e tiram da bo­ca do cidadão um gosto familiar, em Lisboa é pos­sível sentar num tamborete do quase botequim Sol e Pesca para comer as conservas que há sécu­los apetecem ao apetite local. Ninguém mais sabe ao certo o que é antigo e o que é moderno. As sar­dinhas continuam nas latas, o azeite continua de oliva, mas o estilo de tudo isso agora vem embru­lhado em papéis do mais fino design.
Isto aqui é Lisboa, ó pá, e isto não é o anúncio de que o mundo está sendo reinventado a partir de suas oito colinas. Os políticos corruptos tam­bém estão, como os ratos de sua corja internacional, nas capas do "Expresso" e do "Público". Mas na vida real do dia a dia a cidade encontrou um jeito delicado de lustrar os seus casarões magníficos, parecidos com os que todo mês desabam na Lapa carioca e, ao mesmo tempo em que se orgulha deles, reinventa suas funções. Não há mais loja de roupa, mas de "conceito" e portuguesa de bigode era a vovozinha. Agora as garotas são todas "giras” o termo local para traduzir o "cool"
A sensação em alguns momentos é que você vai sair da Rua Augusta, tomar uma ginja no canto da Praça da Figueira e quando dobrar em direção ao Largo dos Intendentes vai dar na verdade nos Arcos da Lapa. Mas é só impressão. As ruas são limpas, os garçons servem às mesas com presteza, os telhados são os mais bonitos do mundo e as praças estão sempre tomadas por se­nhoras que descansam ou jovens, no Quiosque do Refresco, animados por doses de capilé. Taga­relam, paqueram, o de sempre. Ninguém aporrinha o próximo.
O Cais do Sodré, por exemplo, está basica­mente o mesmo de sete anos atrás. Mas se você prestar bem a atenção, andar para a direita e entrar no Mercado da Ribeira, lá sobrevive o co­mércio tradicional das barracas dos tripeiros, convivendo com os stands da nova culinária portuguesa, tudo redesenhado sob o patrocí­nio da revista "Time Out" - e é impossível ao carioca não pensar que um dia, sem precisar ir tão longe, poderia estar assim, curtindo a vida em paz, comprando suas flores, gastan­do pouco, beliscando o que quisesse, na Cadeg de Benfíca. Depois, sem entrar em pâni­co, passaria pela Barreira do Vasco e chegaria em casa para contar aos que ficaram como foi bom.
Ao carioca-da-semana-passada, um dos períodos mais tristes da vida da cidade, foi preciso ir até Lisboa para recolher histórias de não acontecimentos, comer um bacalhau ao sossego e ter a sensação inenarrável de que não corre o risco de ser assassinado na próxima esquina - é em Lisboa esses so­nhos, essas pataniscas simples, parecem cada vez mais fáceis de se realizarem. A cidade se pacificou com suas tradições, entendeu feliz que um bom jeito de avançar é o da refazenda das suas guarirobas. Ao invés de gourmet, os pastéis de Belém procuram resgatar a receita original. E se em algum momento a cidade tentou esquecer Amália Rodrigues, por causa de suas relações com Salazar, Lis­boa agora, em mais um arroubo de orgulho pelas suas referências, está cercada de moto­ristas de táxi com os carros sintonizados na recente Rádio Amália, um chorrilho de 24 horas de fados da grande cantora.
Na chegada ao Galeão, o carioca-da-semana-passada foi cercado pela notória turba­multa de taxistas. Sonhou que uma Rádio Elizete Cardoso iniciava o processo de pacifi­cação geral e convocava a cidade a guardar suas facas.


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