As pedras dos “Sarracenos”
Esta
coisa de ser curioso, de ir atrás do que se apresenta um tanto nebuloso, é uma
“atividade” que me dá prazer e por vezes muita luta.
Uma
delas, como já tenho mostrado é o “porque” das palavras significarem “o que”,
isto é cutucar na etimologia até encontrar o que procuro ou... ficar por isso
mesmo.
A
propósito, “curioso” vem do latim, com base em cura, atenção, cuidado. E depois vem curiosidade, misericórdia,
saúde (cura), o padre cura da aldeia, etc. Que dá muito gozo, a mim, dá.
Há
uns anos ao ler uns livros da história antiga das Ilhas Britânicas, deparei com
algo que me cutucou (desta vez, cutucar é uma palavra brasileira, do tupi cotuca, picada, ferroada).
Em
Avebury, Wiltshire, há um sítio arqueológico sensacional, cuja “construção” se
situa em cerca de 3.000 anos a.C., com uma elevada quantidade de blocos de
pedra, pesando por vezes dezenas de toneladas, dispostas em circunferência por
dentro de um henge.
Henge
a Neolithic or Bronze Age structure found
in British Isles, consisting of a large circular earthwork often enclosing an
arrangement of standing stones, wooden posts, mounds or buri at pils.
Uma
vala de três ou mais metros de profundidade, normalmente circular, por vezes
oblonga, em que a terra dela retirada foi colocada na parte exterior da vala.
Avebury, Wiltshire
Nesta
foto vê-se bem a vala (henge) e os blocos de pedra que permanecem no local, uma
vez que se sabe que ao longo de tantos milénios muitas foram dali retiradas
para...
Compare-se
o tamanho de algumas pedras com as pessoas que lhes estão ao lado!
A estas pedras, lá em Avebury chamam-lhes sarcens: Only twenty seven of the original stones now remain. These stones,
called “sarsens” (meaning “saracen” or foreign to the indigenous chalk), o
que será sarracenos no dialeto local.
Sarracenos?
Para pedras que ali foram colocadas há uns 5.000 anos? Não pode ser. E comecei
a perguntar a alguns ingleses, sem que algum fosse capaz sequer de me
responder.
Há
pouco tempo, noutro livro sobre o mesmo período aparece Stonehenge, mais do que
famoso, mas com uma nota que me veio inflamar outra vez a curiosidade:
“Os sarcens, do anel exterior pesam
cerca de 25 toneladas cada.”
Tu quoque, Stonehenge? Volta à baila o porque dos
sarracenos!
“Histórias”
de sarracenos só poderiam ter chegado à Britânia, por volta do ano 1000,
possivelmente depois que se tomou conhecimento dos desaforos que o tal Al-Hakim
fez em Jerusalém em 1009.
Aqueles pedregulhos eram, mais para
trás, conhecidos por heaten stones, o
que significa pedras dos pagãos,
idólatras, selvagens.
Os historiadores são unânimes em afirmar que estes henge (chamado ao conjunto do local) não
teriam finalidades cerimoniais, apesar de encontrarem evidências que mostram
preciso conhecimento, por exemplo, de solstícios. Mas atribuir a culto de
druidas, quando os druidas foram para às Ilhas Britânicas com os celtas, cerca
de cinco séculos antes da nossa era, é demais. Ninguém sabe para que serviriam
estes monumentos, mas atendendo a que têm no máximo três entradas, normalmente
uma e mais raro duas, pode-se imaginar que seriam praças para mercados, por
exemplo, até pelas largas centenas que se encontram espalhadas pelas ilhas.
Pergunta,
pesquisa, diversos prestimosos colaboradores dando dicas, até que um dia chegou
a resposta.
No final encontramos, por indicação de um clever inglês, Philip Masheter, em www.sarsen.org:
The country folk, always picturesquely minded, call them "Grey
Wethers," and indeed in North Wilts, it is not hard to conjure up their
poetic resemblance to a flock of titanic sheep, reclining at ease upon the
pasturage of the Downs. The alternative name Sarsen, has an interesting
derivation. It is a corruption of the word "Saracen." But what have
Saracens to do with Wiltshire? Frankly nothing. The name has come to the stones
from Stonehenge itself, and is a part of that ever interesting confusion of
ideas, which has been bequeathed to us by our ancestors of the Middle Ages. To
them all stone circles and megalithic monuments were the work of heathens, if
not of the devil himself. Heathenism and all its works was roundly condemned,
whether it be Celtic, Mahomedan, or Pagan; and the condemnation was as concise
and universal as the phrase "Jews, Turks, Infidels, and Heretics" of
the Christian Prayer Book to-day. In the early days of the Moyen Age, the
Saracen stood for all that was antagonistic to Christianity. Consequently the
stones of Stonehenge were Saracen or heathen stones, which the Wiltshire tongue
has shortened in due time to Sarsen.
Traduzindo:
A gente do campo, na sua mentalidade
pitoresca chamava-as de Grey Wethers,
“Carneiros Cinzentos” e não é difícil imaginar a sua semelhança “poética” com
um rebanho de ovelhas titânicas, descansando à vontade nas pastagens das terras
planas do Norte de Wilt. A alternativa para “sarcens” é uma corruptela da palavra Saracen. Mas o que tem sarracenos a ver com Wiltshire? Francamente,
nada. O nome veio para as pedras de Stonehenge, e é parte dessa confusão já
interessante de ideias, que tem sido legada por nossos antepassados da Idade
Média. Para eles todos os círculos de pedra e monumentos megalíticos foram obra
de pagãos, se não do próprio diabo. Paganismo, e todas as suas obras, foi
severamente condenado, seja celta, maometano ou pagão; e a condenação foi tão
concisa e universal, como a frase judeus, turcos, infiéis e hereges do livro
cristão de orações de hoje. Nos primórdios da Idade Média, o sarraceno ficou
por tudo o que era antagônico ao cristianismo. Consequentemente as pedras de
Stonehenge passaram de “pedras de pagãos” a “sarracenos”, que na língua de
Wiltshire se encurtou para sarcens.
Não admira que lhes chamassem
pedras do diabo. Pode-se imaginar o trabalho que deu para as colocarem onde
estão. Milhares de trabalhadores, milhares de horas, dias e anos, só obra dos
demónios. Algumas das pedras de Stonehenge foram levadas de Wales a mais de 240
quilómetros de distância.
São obras da grandeza das
pirâmides, pela sua monumentalidade.
E assim finalmente “descoberto” o
mistério dos sarcens, numa altura em
que os tais fundamentalistas sarracenos estão a dar tanto que falar, e até de
chorar.
Pena não se poderem pô-los a
carregar “pedrinhas” daquelas nas costas!
28/04/2015
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