terça-feira, 19 de maio de 2015



As pedras dos “Sarracenos”

Esta coisa de ser curioso, de ir atrás do que se apresenta um tanto nebuloso, é uma “atividade” que me dá prazer e por vezes muita luta.
Uma delas, como já tenho mostrado é o “porque” das palavras significarem “o que”, isto é cutucar na etimologia até encontrar o que procuro ou... ficar por isso mesmo.
A propósito, “curioso” vem do latim, com base em cura, atenção, cuidado. E depois vem curiosidade, misericórdia, saúde (cura), o padre cura da aldeia, etc. Que dá muito gozo, a mim, dá.
Há uns anos ao ler uns livros da história antiga das Ilhas Britânicas, deparei com algo que me cutucou (desta vez, cutucar é uma palavra brasileira, do tupi cotuca, picada, ferroada).
Em Avebury, Wiltshire, há um sítio arqueológico sensacional, cuja “construção” se situa em cerca de 3.000 anos a.C., com uma elevada quantidade de blocos de pedra, pesando por vezes dezenas de toneladas, dispostas em circunferência por dentro de um henge.
Henge a Neolithic or Bronze Age structure found in British Isles, consisting of a large circular earthwork often enclosing an arrangement of standing stones, wooden posts, mounds or buri at pils.
Uma vala de três ou mais metros de profundidade, normalmente circular, por vezes oblonga, em que a terra dela retirada foi colocada na parte exterior da vala.

 Avebury, Wiltshire

Nesta foto vê-se bem a vala (henge) e os blocos de pedra que permanecem no local, uma vez que se sabe que ao longo de tantos milénios muitas foram dali retiradas para...
Compare-se o tamanho de algumas pedras com as pessoas que lhes estão ao lado!
A estas pedras, lá em Avebury chamam-lhes sarcens: Only twenty seven of the original stones now remain. These stones, called “sarsens” (meaning “saracen” or foreign to the indigenous chalk), o que será sarracenos no dialeto local.
Sarracenos? Para pedras que ali foram colocadas há uns 5.000 anos? Não pode ser. E comecei a perguntar a alguns ingleses, sem que algum fosse capaz sequer de me responder.
Há pouco tempo, noutro livro sobre o mesmo período aparece Stonehenge, mais do que famoso, mas com uma nota que me veio inflamar outra vez a curiosidade:
“Os sarcens, do anel exterior pesam cerca de 25 toneladas cada.”


 Tu quoque, Stonehenge? Volta à baila o porque dos sarracenos!
“Histórias” de sarracenos só poderiam ter chegado à Britânia, por volta do ano 1000, possivelmente depois que se tomou conhecimento dos desaforos que o tal Al-Hakim fez em Jerusalém em 1009.
Aqueles pedregulhos eram, mais para trás, conhecidos por heaten stones, o que significa pedras dos pagãos, idólatras, selvagens.
Os historiadores são unânimes em afirmar que estes henge (chamado ao conjunto do local) não teriam finalidades cerimoniais, apesar de encontrarem evidências que mostram preciso conhecimento, por exemplo, de solstícios. Mas atribuir a culto de druidas, quando os druidas foram para às Ilhas Britânicas com os celtas, cerca de cinco séculos antes da nossa era, é demais. Ninguém sabe para que serviriam estes monumentos, mas atendendo a que têm no máximo três entradas, normalmente uma e mais raro duas, pode-se imaginar que seriam praças para mercados, por exemplo, até pelas largas centenas que se encontram espalhadas pelas ilhas.
Pergunta, pesquisa, diversos prestimosos colaboradores dando dicas, até que um dia chegou a resposta.
No final encontramos, por indicação de um clever inglês, Philip Masheter, em www.sarsen.org:
The country folk, always picturesquely minded, call them "Grey Wethers," and indeed in North Wilts, it is not hard to conjure up their poetic resemblance to a flock of titanic sheep, reclining at ease upon the pasturage of the Downs. The alternative name Sarsen, has an interesting derivation. It is a corruption of the word "Saracen." But what have Saracens to do with Wiltshire? Frankly nothing. The name has come to the stones from Stonehenge itself, and is a part of that ever interesting confusion of ideas, which has been bequeathed to us by our ancestors of the Middle Ages. To them all stone circles and megalithic monuments were the work of heathens, if not of the devil himself. Heathenism and all its works was roundly condemned, whether it be Celtic, Mahomedan, or Pagan; and the condemnation was as concise and universal as the phrase "Jews, Turks, Infidels, and Heretics" of the Christian Prayer Book to-day. In the early days of the Moyen Age, the Saracen stood for all that was antagonistic to Christianity. Consequently the stones of Stonehenge were Saracen or heathen stones, which the Wiltshire tongue has shortened in due time to Sarsen.
Traduzindo:
A gente do campo, na sua mentalidade pitoresca chamava-as de Grey Wethers, “Carneiros Cinzentos” e não é difícil imaginar a sua semelhança “poética” com um rebanho de ovelhas titânicas, descansando à vontade nas pastagens das terras planas do Norte de Wilt. A alternativa para “sarcens” é uma corruptela da palavra Saracen. Mas o que tem sarracenos a ver com Wiltshire? Francamente, nada. O nome veio para as pedras de Stonehenge, e é parte dessa confusão já interessante de ideias, que tem sido legada por nossos antepassados da Idade Média. Para eles todos os círculos de pedra e monumentos megalíticos foram obra de pagãos, se não do próprio diabo. Paganismo, e todas as suas obras, foi severamente condenado, seja celta, maometano ou pagão; e a condenação foi tão concisa e universal, como a frase judeus, turcos, infiéis e hereges do livro cristão de orações de hoje. Nos primórdios da Idade Média, o sarraceno ficou por tudo o que era antagônico ao cristianismo. Consequentemente as pedras de Stonehenge passaram de “pedras de pagãos” a “sarracenos”, que na língua de Wiltshire se encurtou para sarcens.

Não admira que lhes chamassem pedras do diabo. Pode-se imaginar o trabalho que deu para as colocarem onde estão. Milhares de trabalhadores, milhares de horas, dias e anos, só obra dos demónios. Algumas das pedras de Stonehenge foram levadas de Wales a mais de 240 quilómetros de distância.
São obras da grandeza das pirâmides, pela sua monumentalidade.
E assim finalmente “descoberto” o mistério dos sarcens, numa altura em que os tais fundamentalistas sarracenos estão a dar tanto que falar, e até de chorar.
Pena não se poderem pô-los a carregar “pedrinhas” daquelas nas costas!

28/04/2015


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