O velho Januário
Fazia
um calor do cão. Seco, de torrar a cabeça de quem não usasse chapéu.
Na
casa onde nascera, no sertão da caatinga, o velho Januário, que há anos vivia
sozinho, festejava com a família os seus 100 anos, com o sol, implacável como
sempre, a castigar os valentes que por ali se atrevessem a estar, pior, a
ficar. A perder de vista um juazeiro aqui outro mais além, espinhosas anãs e
corcundas com os galhos secos a desafiarem a canícula, a terra vermelha.
Casa
velha, velhinha, cheia de remendos, sempre cuidada e limpa, telhado sem
goteiras, aliás inúteis porque a chuva ali o seu Januário dizia que não caía coisa
que se visse há mais de ano, numa tosca mesa umas imagens da Senhora da
Conceição e de Aparecida, ao lado das fotos da mulher e dos filhos e uma em que
quase nada já se via, do dia do seu casamento. Na parede um velho crucifixo e
um poster amarelado do Bom Papa João XXIII.
Tava
rijo e são o bom do velho, cabelinho branco, ralo e de uma alvura linda, calejado
e tisnado, cara bem enrugada, sabia que aquela figura, esquelética, escondida
debaixo dum capuz e com a foice na mão, há tempos lhe rondava a vida. Não se
amedrontava, nem pensava nisso. Esperava, tranquilo, a hora para ir ter com a
sua saudosa e querida esposa com quem vivera perto de setenta anos e também com
alguns dos filhos que se lembraram de partir mais cedo. Mas continuava todos os
dias, sem jamais descansar, a procurar desde antes do raiar da aurora, um pouco
de grama ou o que pudesse não deixar morrer de fome três ou quatro de cabeças
de gado, já que as cabras bem se desenvencilhavam comendo tudo, e as galinhas
ciscavam em todo o canto.
Nesse
dia juntou quase toda a família. Filhos e filhas, noras e genros, netos e
bisnetos, vieram de todo aquele sertão, uns quantos da cidade, dois até da
capital, juntar-se à festa. Naquele grupo havia já um médico, advogados e
comerciantes. Raros os que se mantiveram agarrados a um pedaço inóspito e
ingrato daquelas terras. Não trouxeram presentes que o velho desprezava, mas
comida e bebida para que todos vivenciassem com alegria tão importante momento.
Vô Januário matara até o último porco, magro, que comprara ainda leitãozinho já
a contar com este dia.
Netos
e bisnetos nem todos se conheciam, e o encontro foi motivo de grande
satisfação.
Os
mais velhos, idosos, aposentados, procuravam relembrar momentos da infância e
adolescência vivida naquele casebre onde se criaram, as brincadeiras que
inventavam e os trabalhos para ajudar os pais, enquanto a garotada não parava
de brincar e correr em volta da casa, procurar “novos” bichinhos pelo ralo mato
em derredor, e o anfitrião feliz e agradecendo a vida que teve, dura, privado
de conforto, mas que lhe dera uma prole magnífica. Revia-se nos filhos,
admirava o tamanho dos netos já adultos e enchia-se de ternura com os bisnetos
a quem acariciava e abençoava com as suas mãos calejadas.
Fora
da casa estacionavam, pacientes, os vários meios de transporte que os
descendentes usaram para ali chegar: uns jegues, uma mula, duas carroças e até,
para espanto de alguns, três automóveis.
Bem
comidos e bebidos, a conversa começava a perder a vivacidade e diminuir de
volume sonoro porque o estômago lhes absorvia parte da necessária energia,
alguns roncando num canto do casebre.
Vô
Januário desde o ano anterior havia começado a preparar uma boa pinga, da
melhor, porque 100 anos não se festejam sem grande festa, e não deixava de
acompanhar os vários brindes de “saúde” e os “tchim-tchim” com que os presentes
o brindavam, desejando-lhe ainda muitos anos de vida.
Aguentava
ele bem o tranco, as peles da face mudavam do tisnado para um bonito tom de
rosa escuro, quando pediu que todos se calassem. Queria dizer-lhes alguma coisa
que era importante.
Fez-se
silêncio, mandaram que se aquietassem as crianças ou fossem para longe, o avô
ia falar!
Vô
Januário, sentado num banco um pouco mais alto, a família como que em
anfiteatro, olhou para todos com um sorriso de alma limpa, e na sua foz rouca:
“Meus filho, netos e bisneto. Todos sabem, ou
deviam saber que nesta casa, construída com muito suor e sacrifício pelo meu
pai que Deus tem, foi onde eu nasci. Nunca daqui saí a não ser as poucas veiz
que fui à cidade, onde sentia que não era lugar para mim, habituado a esta
simplicidade, pobreza, sim, também, mas onde nunca se viu alguém faltar ao
respeito aos pais ou até entre irmãos. Todos cresceram à sombra da palavra que
sempre honraram. Nesta casa nasceram os nove filhos, que só seis ainda aqui
estão porque o Pai do Céu achou que precisava lá no Alto de mais alguns
anjinhos para o ajudarem.
Há algum tempo, que para mim tem
sido muito e difícil de suportar, a vossa mãe foi encontrá-los e sei que estão
todos Lá à minha espera. Irei quando o Senhor Deus, o Pai do Céu, quiser.
Desta terra seca, cheia de pó
voando quando entram os ventos, terra de retirantes e pobreza, com muito
esforço e muita fé conseguimos tirar o suficiente para criar os seis filhos e
filhas que sobreviveram. E que foram à escola aprender o que os mais velhos
nunca conseguimos.
Foi a natureza que nos deu tudo,
até a coragem para não baixar os braços e não desanimar na luta permanente.
Falta pouco para a “malvada com a
foice” me vir buscar. Há muito que a aguardo, e às vezes, de noite, sonho com
ela e sorrio, o que a deve deixar muito desanimada. Prova disso é que não
aparece! (Risos da
família). Mas ela é teimosa e ninguém
pode fugir dela muito tempo.
Uma coisa vos quero pedir, e que
levem muito a sério.
Foi esta natureza, seca e dura,
que, como disse, nos deu toda a vida que levámos. A ela devo tudo quanto fui e
quanto tenho.
Quando eu fechar os olhos, quero
que me prometam que me ajudarão a pagar-lhe o muito que recebi.
Não quero funeral, nem caixão, nem
velório, nem velas acesas, nem cemitério. Nada disso.
Envolvam o meu corpo, nu, nuzinho,
pelado de tudo, num pano velho e vão depositar-me lá no alto daquela elevação.
Deitam-me de barriga para o ar, tragam o pano de volta e deixem-me ali ficar.
Aquilo que recebi vou devolver aos
urubus, corvos, formigas, minhocas e quem sabe até a um lindo lobo guará, ou
mesmo à rainha do mato, a onça pintada. Assim conseguirei saldar parte da minha
dívida.
Os ossos, com o sol forte e inclemente
e o tempo quente, acabarão também em poeira.
Para o caso da papelada, vocês vão dizer
que quando aqui voltaram não me encontraram, ninguém sabia de mim, que há muito
não me viam, e que eu deveria ter morrido andando lá no meio do nada.
Também tudo quanto tenho para vos
deixar é este pedaço de terra que não vale um mirréis furado!
Não se preocupem. A partir do
momento que fechar os olhos, o velho Januário não vai preocupar-se mais com as
coisas deste mundo. E vocês, quando pensarem em mim não é para se lembrarem dum
velho quase sem dentes, mas do que vos ensinei e do exemplo que procurei
dar-vos.
Sois todos gente honrada.
Que mais posso eu pedir a Deus?
31/03/2015
ASSIM FALOU JANUÁRIO. VENHAM MAIS FALADURAS!
ResponderExcluirASSIM FALOU JANUÁRIO CENTENÁRIO. VENHAM OUTRAS FALADURAS!
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