quinta-feira, 14 de maio de 2015



O velho Januário


Fazia um calor do cão. Seco, de torrar a cabeça de quem não usasse chapéu.
Na casa onde nascera, no sertão da caatinga, o velho Januário, que há anos vivia sozinho, festejava com a família os seus 100 anos, com o sol, implacável como sempre, a castigar os valentes que por ali se atrevessem a estar, pior, a ficar. A perder de vista um juazeiro aqui outro mais além, espinhosas anãs e corcundas com os galhos secos a desafiarem a canícula, a terra vermelha.
Casa velha, velhinha, cheia de remendos, sempre cuidada e limpa, telhado sem goteiras, aliás inúteis porque a chuva ali o seu Januário dizia que não caía coisa que se visse há mais de ano, numa tosca mesa umas imagens da Senhora da Conceição e de Aparecida, ao lado das fotos da mulher e dos filhos e uma em que quase nada já se via, do dia do seu casamento. Na parede um velho crucifixo e um poster amarelado do Bom Papa João XXIII.

Tava rijo e são o bom do velho, cabelinho branco, ralo e de uma alvura linda, calejado e tisnado, cara bem enrugada, sabia que aquela figura, esquelética, escondida debaixo dum capuz e com a foice na mão, há tempos lhe rondava a vida. Não se amedrontava, nem pensava nisso. Esperava, tranquilo, a hora para ir ter com a sua saudosa e querida esposa com quem vivera perto de setenta anos e também com alguns dos filhos que se lembraram de partir mais cedo. Mas continuava todos os dias, sem jamais descansar, a procurar desde antes do raiar da aurora, um pouco de grama ou o que pudesse não deixar morrer de fome três ou quatro de cabeças de gado, já que as cabras bem se desenvencilhavam comendo tudo, e as galinhas ciscavam em todo o canto.
Nesse dia juntou quase toda a família. Filhos e filhas, noras e genros, netos e bisnetos, vieram de todo aquele sertão, uns quantos da cidade, dois até da capital, juntar-se à festa. Naquele grupo havia já um médico, advogados e comerciantes. Raros os que se mantiveram agarrados a um pedaço inóspito e ingrato daquelas terras. Não trouxeram presentes que o velho desprezava, mas comida e bebida para que todos vivenciassem com alegria tão importante momento. Vô Januário matara até o último porco, magro, que comprara ainda leitãozinho já a contar com este dia.
Netos e bisnetos nem todos se conheciam, e o encontro foi motivo de grande satisfação.
Os mais velhos, idosos, aposentados, procuravam relembrar momentos da infância e adolescência vivida naquele casebre onde se criaram, as brincadeiras que inventavam e os trabalhos para ajudar os pais, enquanto a garotada não parava de brincar e correr em volta da casa, procurar “novos” bichinhos pelo ralo mato em derredor, e o anfitrião feliz e agradecendo a vida que teve, dura, privado de conforto, mas que lhe dera uma prole magnífica. Revia-se nos filhos, admirava o tamanho dos netos já adultos e enchia-se de ternura com os bisnetos a quem acariciava e abençoava com as suas mãos calejadas.
Fora da casa estacionavam, pacientes, os vários meios de transporte que os descendentes usaram para ali chegar: uns jegues, uma mula, duas carroças e até, para espanto de alguns, três automóveis.
Bem comidos e bebidos, a conversa começava a perder a vivacidade e diminuir de volume sonoro porque o estômago lhes absorvia parte da necessária energia, alguns roncando num canto do casebre.
Vô Januário desde o ano anterior havia começado a preparar uma boa pinga, da melhor, porque 100 anos não se festejam sem grande festa, e não deixava de acompanhar os vários brindes de “saúde” e os “tchim-tchim” com que os presentes o brindavam, desejando-lhe ainda muitos anos de vida.
Aguentava ele bem o tranco, as peles da face mudavam do tisnado para um bonito tom de rosa escuro, quando pediu que todos se calassem. Queria dizer-lhes alguma coisa que era importante.
Fez-se silêncio, mandaram que se aquietassem as crianças ou fossem para longe, o avô ia falar!
Vô Januário, sentado num banco um pouco mais alto, a família como que em anfiteatro, olhou para todos com um sorriso de alma limpa, e na sua foz rouca:
Meus filho, netos e bisneto. Todos sabem, ou deviam saber que nesta casa, construída com muito suor e sacrifício pelo meu pai que Deus tem, foi onde eu nasci. Nunca daqui saí a não ser as poucas veiz que fui à cidade, onde sentia que não era lugar para mim, habituado a esta simplicidade, pobreza, sim, também, mas onde nunca se viu alguém faltar ao respeito aos pais ou até entre irmãos. Todos cresceram à sombra da palavra que sempre honraram. Nesta casa nasceram os nove filhos, que só seis ainda aqui estão porque o Pai do Céu achou que precisava lá no Alto de mais alguns anjinhos para o ajudarem.
Há algum tempo, que para mim tem sido muito e difícil de suportar, a vossa mãe foi encontrá-los e sei que estão todos Lá à minha espera. Irei quando o Senhor Deus, o Pai do Céu, quiser.
Desta terra seca, cheia de pó voando quando entram os ventos, terra de retirantes e pobreza, com muito esforço e muita fé conseguimos tirar o suficiente para criar os seis filhos e filhas que sobreviveram. E que foram à escola aprender o que os mais velhos nunca conseguimos.
Foi a natureza que nos deu tudo, até a coragem para não baixar os braços e não desanimar na luta permanente.
Falta pouco para a “malvada com a foice” me vir buscar. Há muito que a aguardo, e às vezes, de noite, sonho com ela e sorrio, o que a deve deixar muito desanimada. Prova disso é que não aparece! (Risos da família). Mas ela é teimosa e ninguém pode fugir dela muito tempo.
Uma coisa vos quero pedir, e que levem muito a sério.
Foi esta natureza, seca e dura, que, como disse, nos deu toda a vida que levámos. A ela devo tudo quanto fui e quanto tenho.
Quando eu fechar os olhos, quero que me prometam que me ajudarão a pagar-lhe o muito que recebi.
Não quero funeral, nem caixão, nem velório, nem velas acesas, nem cemitério. Nada disso.
Envolvam o meu corpo, nu, nuzinho, pelado de tudo, num pano velho e vão depositar-me lá no alto daquela elevação. Deitam-me de barriga para o ar, tragam o pano de volta e deixem-me ali ficar.
Aquilo que recebi vou devolver aos urubus, corvos, formigas, minhocas e quem sabe até a um lindo lobo guará, ou mesmo à rainha do mato, a onça pintada. Assim conseguirei saldar parte da minha dívida.
Os ossos, com o sol forte e inclemente e o tempo quente, acabarão também em poeira.
Para o caso da papelada, vocês vão dizer que quando aqui voltaram não me encontraram, ninguém sabia de mim, que há muito não me viam, e que eu deveria ter morrido andando lá no meio do nada.
Também tudo quanto tenho para vos deixar é este pedaço de terra que não vale um mirréis furado!
Não se preocupem. A partir do momento que fechar os olhos, o velho Januário não vai preocupar-se mais com as coisas deste mundo. E vocês, quando pensarem em mim não é para se lembrarem dum velho quase sem dentes, mas do que vos ensinei e do exemplo que procurei dar-vos.
Sois todos gente honrada.
Que mais posso eu pedir a Deus?


31/03/2015

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