terça-feira, 7 de janeiro de 2014




Tudo certo com seu santo?


De “O Globo” – por João Ubaldo Ribeiro

Acho que quase todo mundo faz alguma coisa para que o ano novo seja propí­cio. Há os que se vestem de branco e lançam oferendas ao mar, os que to­mam banhos de descarrego e ainda os que adotam providências para mim sempre meio con­fusas - enfiar um nhoque na orelha, encher a cueca de sementes de romã, misturar uma nota de cem dólares na salada e comê-la, botar um prato de lentilhas embaixo do travesseiro, não compreendo bem, tento aprender, mas esqueço logo tudo. Entretanto, que eu saiba, são relativa­mente poucos os que, no início do ano, procu­ram o alto patrocínio de um santo. E um bom santo padroeiro é mais que meio caminho an­dado para o contentamento e a prosperidade. Seu esquecimento não diz bem de nossa pru­dência e revela deplorável desleixo para com as tradições nacionais.
Conseguir o amparo e a assistência de um bom santo não costuma ser difícil, mesmo se tratando dos mais solicitados e ocupados. Santo é santo e aí, quando o pecador arrependido chega a ele suplicando uma colher-de-chá, ele pode até fazer umas exigências preliminares, mas não nega a ajuda, seria contra a caridade cristã e o Espírito Santo está de olho nele. Em Itaparica, apenas os mais antigos lembram al­gumas poucas ocasiões em que um santo não aceitou determinado caso, mas, quando isto acontecia, ele passava a questão para um colega de santidade, com mais experiência na matéria. Dizem que finado Edésio Testa Grande, uma certa feita, tantas e tais desgraceiras confessou a São Lourenço, que o santo ficou vermelho de vergonha, se levantou e disse: "Seu Testa Gran­de, o senhor me compreenda uma coisa, eu vou lhe dar um cartão para o senhor procurar Santo Agostinho, que na juventude foi ladrão, menti­roso, escandaloso e femeeiro e, assim mesmo, nunca chegou aos pés dó senhor e, se ele não re­solver seu caso, ninguém mais resolve." E se sa­be que Santo Agostinho, depois de muito traba­lho e vários embargos infringentes, conseguiu livrar Testa Grande do inferno, mas não de oito­centos anos de purgatório em regime fechado, o que foi considerado leve por quem conheceu esse dito Edésio Testa Grande.
Certamente cometerei injustiças e pecarei por omissão, mas me arrisco a citar, assim de cabe­ça, alguns dos santos mais requisitados e presti­giados lá do Recôncavo, como João, José, Pedro, Luzia, as Teresas, Jorge, Roque, Bárbara, Rita, Judas Tadeu, Benedito, Efígênia e tantos outros. Propositadamente, deixei de fora António, pois acho que ele merece destaque especial em nos­sa História, até porque era português e partici­pou diretamente em diversos episódios dela. Claro, não se vai negar a grandíssima importância de um Pedro, um João, uma Teresinha, um José ou uma Rita, todos eles muito festejados e cheios de afilhados e devotos, mas António foi oficial das forças armadas portuguesas, onde uma vez, por não se esforçar devidamente no combate, foi rebaixado, acho que lhe revogaram a patente de capitão. E ainda tomou vários esbregues de seu xará António Vieira, que nem por ser xará aliviava a borduna.
Ele se redimiu esplendidamente dessa falha momentânea e prestou assinalados serviços na guerra contra os invasores holandeses. Mas, mesmo assim, as descomposturas do Padre Viei­ra ainda repercutem no coração dele, de forma que, quando se oferece a ocasião, ele aparece pa­ra mostrar serviço contra os holandeses, como fez no dia em que Vavá Paparrão passou a noite sozinho na Ilha do Medo e surgiu uma porção de fantasmas de holandeses para ali assombrar. Pa­parrão era capoeirista afamado, mas a luta era desigual e foi então que ele gritou "valei-me, meu Santo António!" e o santo na mesma hora despencou lá de cima, já baixando o sarrafo nos holandeses. Quem testemunhou diz que o chão da Ilha do Medo amanheceu coalhado de cadá­veres de almas holandesas. Atualmente, António acumula seu cargo permanente de protetor dos pobres com a prestação de serviços para encon­trar coisas perdidas e, principalmente, para o for­necimento de maridos. Ainda está para nascer aquela que fica para titia depois de fazer boas no­venas para António, sem nunca esquecer a missa dele no dia 13 de junho. Nos raríssimos casos em que o pedido não é atendido, ás pretendentes pegam suas imagens do santo e as põem de ca­beça para baixo no nicho até que apareça um marido, não falha nunca.
Mas, como já disse acima, muitos outros santos prestam diligente atendimento a seus devotos e os que cito estão longe de ser todos. Luzia, por exemplo, até hoje tem a fonte dela em Salvador, para quem quiser lavar os olhos e ficar logo enxer­gando melhor que um gavião. Jorge e Cristóvão, que andaram abalados com a notícia de que a Igreja duvidava de sua existência, receberam ma­nifestações de solidariedade de todos os cantos e continuam firmes, o primeiro matando o dragão da maldade e ajudando os desempregados, e o se­gundo dando apoio aos viajantes. E, consultando um santoral de confiança, o distinto leitor ou a en­cantadora leitora não terá dificuldade em encon­trar um ou mais santos dispostos a ajudar, a partir deste ano novo. Podem ter certeza de que, por trás de cada trajetória de sucesso, estão um ou mais santos de grande valia e muita gente esconde o jo­go, não diz a ninguém qual é seu santo. Desco­briu-se recentemente que até Zecamunista tam­bém tem santo protetor. Confrontado com a sur­preendente revelação, ele não a desmentiu, como se esperava. Tem santo padroeiro, sim, só estra­nha isso quem não conhece o materialista baiano. É o padroeiro dos ateus, um irlandês chamado Oteram, de que pouca gente ouviu falar, porque seus devotos costumam ser muito discretos e só o mencionam quando a necessidade aperta.
— Vocês acham que os ateus iam ficar sem a cobertura de um santo? — disse Zeca. — Ateu também é filho de Deus.

João Ubaldo Ribeiro é escritor


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