Tudo certo com seu santo?
De “O
Globo” – por João Ubaldo Ribeiro
Acho
que quase todo mundo faz alguma coisa para que o ano novo seja propício. Há os
que se vestem de branco e lançam oferendas ao mar, os que tomam banhos de
descarrego e ainda os que adotam providências para mim sempre meio confusas -
enfiar um nhoque na orelha, encher a cueca de sementes de romã, misturar uma
nota de cem dólares na salada e comê-la, botar um prato de lentilhas embaixo do
travesseiro, não compreendo bem, tento aprender, mas esqueço logo tudo.
Entretanto, que eu saiba, são relativamente poucos os que, no início do ano,
procuram o alto patrocínio de um santo. E um bom santo padroeiro é mais que
meio caminho andado para o contentamento e a prosperidade. Seu esquecimento
não diz bem de nossa prudência e revela deplorável desleixo para com as
tradições nacionais.
Conseguir
o amparo e a assistência de um bom santo não costuma ser difícil, mesmo se
tratando dos mais solicitados e ocupados. Santo é santo e aí, quando o pecador
arrependido chega a ele suplicando uma colher-de-chá, ele pode até fazer umas
exigências preliminares, mas não nega a ajuda, seria contra a caridade cristã e o Espírito Santo está de olho
nele. Em Itaparica, apenas os mais antigos lembram algumas poucas ocasiões em
que um santo não aceitou determinado caso, mas, quando isto acontecia, ele
passava a questão para um colega de santidade, com mais experiência na matéria.
Dizem que finado Edésio Testa Grande, uma certa feita, tantas e tais
desgraceiras confessou a São Lourenço, que o santo ficou vermelho de vergonha,
se levantou e disse: "Seu Testa Grande, o senhor me compreenda uma coisa,
eu vou lhe dar um cartão para o senhor procurar Santo Agostinho, que na
juventude foi ladrão, mentiroso, escandaloso e femeeiro e, assim mesmo, nunca
chegou aos pés dó senhor e, se ele não resolver seu caso, ninguém mais
resolve." E se sabe que Santo Agostinho, depois de muito trabalho e
vários embargos infringentes, conseguiu livrar Testa Grande do inferno, mas não
de oitocentos anos de purgatório em regime fechado, o que foi considerado leve
por quem conheceu esse dito Edésio Testa Grande.
Certamente
cometerei injustiças e pecarei por omissão, mas me arrisco a citar, assim de
cabeça, alguns dos santos mais requisitados e prestigiados lá do Recôncavo,
como João, José, Pedro, Luzia, as Teresas, Jorge, Roque, Bárbara, Rita, Judas
Tadeu, Benedito, Efígênia e tantos outros. Propositadamente, deixei de fora
António, pois acho que ele merece destaque especial em nossa História, até
porque era português e participou diretamente em diversos episódios dela.
Claro, não se vai negar a grandíssima importância de um Pedro, um João, uma
Teresinha, um José ou uma Rita, todos eles muito festejados e cheios de
afilhados e devotos, mas António foi oficial das forças armadas portuguesas,
onde uma vez, por não se esforçar devidamente no combate, foi rebaixado, acho
que lhe revogaram a patente de capitão. E ainda tomou vários esbregues de seu
xará António Vieira, que nem por ser xará aliviava a borduna.
Ele
se redimiu esplendidamente dessa falha momentânea e prestou assinalados
serviços na guerra contra os invasores holandeses. Mas, mesmo assim, as
descomposturas do Padre Vieira ainda repercutem no coração dele, de forma que,
quando se oferece a ocasião, ele aparece para mostrar serviço contra os
holandeses, como fez no dia em que Vavá Paparrão passou a noite sozinho na Ilha
do Medo e surgiu uma porção de fantasmas de holandeses para ali assombrar. Paparrão
era capoeirista afamado, mas a luta era desigual e foi então que ele gritou
"valei-me, meu Santo António!" e o santo na mesma hora despencou lá
de cima, já baixando o sarrafo nos holandeses. Quem testemunhou diz que o chão
da Ilha do Medo amanheceu coalhado de cadáveres de almas holandesas.
Atualmente, António acumula seu cargo permanente de protetor dos pobres com a
prestação de serviços para encontrar coisas perdidas e, principalmente, para o
fornecimento de maridos. Ainda está para nascer aquela que fica para titia
depois de fazer boas novenas para António, sem nunca esquecer a missa dele no
dia 13 de junho. Nos raríssimos casos em que o pedido não é atendido, ás
pretendentes pegam suas imagens do santo e as põem de cabeça para baixo no
nicho até que apareça um marido, não falha nunca.
Mas,
como já disse acima, muitos outros santos prestam diligente atendimento a seus
devotos e os que cito estão longe de ser todos. Luzia, por exemplo, até hoje
tem a fonte dela em Salvador, para quem quiser lavar os olhos e ficar logo
enxergando melhor que um gavião. Jorge e Cristóvão, que andaram abalados com a
notícia de que a Igreja duvidava de sua existência, receberam manifestações de
solidariedade de todos os cantos e continuam firmes, o primeiro matando o
dragão da maldade e ajudando os desempregados, e o segundo dando apoio aos
viajantes. E, consultando um santoral de confiança, o distinto leitor ou a encantadora
leitora não terá dificuldade em encontrar um ou mais santos dispostos a
ajudar, a partir deste ano novo. Podem ter certeza de que, por trás de cada
trajetória de sucesso, estão um ou mais santos de grande valia e muita gente
esconde o jogo, não diz a ninguém qual é seu santo. Descobriu-se recentemente
que até Zecamunista também tem santo protetor. Confrontado com a surpreendente
revelação, ele não a desmentiu, como se esperava. Tem santo padroeiro, sim, só
estranha isso quem não conhece o materialista baiano. É o padroeiro dos ateus,
um irlandês chamado Oteram, de que pouca gente ouviu falar, porque seus devotos
costumam ser muito discretos e só o mencionam quando a necessidade aperta.
—
Vocês acham que os ateus iam ficar sem a cobertura de um santo? — disse Zeca. —
Ateu também é filho de Deus.
João Ubaldo Ribeiro é escritor
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