Prefixo
+ Verbo + Sufixo
ou
a Assunção das Estevas
Por
diversas vezes já manifestei a minha antipatia pelo ensino da gramática
portuguesa nos primeiros anos do primário e até do secundário, que, a bem da
verdade é complicada “toda a vida”.
A
gramática deveria ser para o aprendizado da língua portuguesa o mesmo que
anatomia para os médicos: no ensino superior. Antes disso basta saber que temos
uns quantos ossos, uns aparelhos, digestivos, conjuntivos e sanguinários e até
para alguns, raros, cabeça.
Mas
de quando em vez surgem nos horizontes intectualóides algumas frases e palavras
que nos obrigam a procurar mestres não só em semântica, como em interpretação,
frases essas proferidas por aqueles a quem a antomia privou da tal cabeça. Pelo
menos por dentro.
Convenhamos,
a ignorância humilde tem pelo menos a vantagem de saber quando é hora de
procurar os mestres que ajudem a interpretar aquela linguagem que, em princípio
deveria ser simples, clara, precisa e
concisa tal como o determinavam os manuais de instruções militares in illo tempore, pelo menos no meu tempo! É certo que os mesmos manuais, pelo menos os da cavalaria,
estimulavam os cavaleiros, em galope de ataque, a dar gritos selvagens, tais como Viva a Pátria e outros”.
Mas
a Pátria está adormecida, entregue a circenses primários que nem sequer sabem
fazer o povo sorrir, só chorar.
Numa
assunção das estevas (pode ler-se arrebatamento
das flores da família das Cistáceas) em solene pronunciatura (ou
pronunciamento?) uma ilustre madama dona presidente (ou presidenta?) duma
assembléia de ineptos e penduras, do alto dos seus profundos conhecimentos de
línguas mortas e confusas declarou peremptoriamente perante o país perplexo o
seguinte e brilhante pensamento:
“O meu medo é o do inconseguimento, em
muitos planos: o do inconseguimento de não ter possibilidade de fazer no
Parlamento as reformas que quero fazer, de as fazer todas, algumas estão no
caminho; o inconseguimento de eu estar num centro de decisão fundamental a que
possa corresponder uma espécie de nível social frustracional derivado da
crise.”
Esta pronunciatura penetrou nos meus ouvidos como um misto de sânscrito
clássico, assírio-babilónico e um pedacinho de português, e, eis senão quando,
me dou conta dos resquícios actuais do castigo de Jeová aos construtores da
Torre de Babel: confundamos a sua
linguagem!
O inconseguimento de interpretar esta
gramatical bomba, com o prefixo in, que
o dicionário designa como negação de
interioridade – pode levar a crer que a pronunciatriz (feminino de
pronunciador) teria querido dizer que se nega interiormente...!
Depois o
verbo conseguir, cuja origem latina
significaria vir após, seguir com,
mas, antecipado com uma negativa de interioridade, já confunde os neurónios de
qualquer ser de inteligência mediana.
Remata o
vocábulo (será mesmo um vocábulo?) com um sufixo lindo: mento, que os gramáticos propõem que se use como resultado de ação.
Então,
tentando decifrar esta maravilha da semântica privada das estevas, parece que
seremos levados a concluir que a dita pronunciatriz quis dizer:
“não posso vir após porque uma negação de
interioridade me impede o resultado da acção”.
E
aqui temos o que a senhora pretendeu transmitir: NADA! O que o velho,
maravilhoso e saudoso Cantinflas teria achado merecedor do prémio Nobel da
arrogância.
Mas
tem mais uma frase, essa também digna de fazer corar os zigomáticos dos crâneos
de Camões ou do Padre António Vieira. E do mais eloquente congressista do
século XIX, Garrett. Camilo ao ouvir semelhante sentença certamente teria farta
inspiração para escrever um segundo volume de O Que Fazem Mulheres, ou de Coisas
Espantosas, talvez sobre A Enjeitada ou A Mulher Fatal!
A frase
fatal: “o inconseguimento de eu estar num centro de decisão
fundamental a que possa corresponder uma espécie de nível social frustracional
derivado da crise.”
Sobressai
nesta faladura, NOMEADAMENTE, o conteudo - “uma
espécie de nível social frustracional derivado da crise” – que se pode
considerar uma tirada platónica, aristotélica ou epicurista. É uma pérola linda
do palavreado inutil, falso, a que Renan talvez respondesse “a estupidez humana é a única coisa que nos
pode dar a noção do infinito”!
Mas
que me perdoem Renan, Aristoteles ou Camões, porque a verdade é que eu
simplesmente adorei “o nível social
frustracional”. Através dos longos anos de vida tenho presenciado diversos
níveis sociais, mas um frustracional... nunca. Aquele sufixozinho “al” dá-lhe um toque sublime, mais ainda
quando constatamos que acrescenta à frustração a noção de quantidade, de
coleção.
Então eu
traduziria esta frase com a complicada palavra certamente retirada do Avesta,
com o sentido de “nível social de
frustrações em quantidade”. Beleza
pura.
Tudo
isto... “derivado da crise”!
E que
crise!
Crise
de bom senso, de simplicidade, e de gente que não pense que todos os outros são
tão idiotas quanto eles!
Muitas palavras não indicam necessariamente muita sabedoria, disse Tales de Mileto. Mas prefiro
fechar o comentário pensando num homem de quem tive a sorte de ser amigo e conhecer de
perto, o grande Raul Solnado, que numa hora destas comentaria simplesmente:
“Pois! Como dizia a minha prima, que
gostava muito de dizer coisas”!
15/01/2014
Muito bom
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