terça-feira, 3 de maio de 2011



Historia da residência dos Padres da
Companhia de Jesu em Angola,
e cousas tocantes ao Reino, e conquista



CAPITULO 2.° DO PRIMEIRO REY,

E PRIMEIRA VINDA DE

PAULO DYAS DE NAVAIS



O numero dos Sobas que se sabe alem de muitos outros de que não ha noticia, he de sete centos e trinta e seis. São como régulos, sõres avsolutos de suas terras. Tinhão repartido o Reyno, e andavão continuamente em guerra entre si. Até que avera obra de oitenta anos se levantou entre elles hum de maiores espíritos, o qual começou de sogeitar alguns vezinhos e pouco a pouco se apoderou das províncias principaes, e tomou nome de Rey. Chamouse Angola Inene que quer dizer o grande Angola.
Este primeiro Rey teve noticia do poder del Rey de Portugal por alguns naturaes de Congo que ia então erão christãos. Quis ter comercio com elle, mandou seus embaixadores ao Reyno, pedio Padres para o instruirem nas cousas de nossa santa fee. Chegarão ao Reyno em tempo que governavão a Rainha Dona Caterina, e o Cardeal Dom Anrique. Os quaes mandarão por embaixador a Paulo Dyas de Navaes a el Rey de Angola. Partio de Lisboa a vinta dous de Setembro de 1559 (1). Chegou a barra do rio Coanza aos três de Maio de 1560. E ali esteve até 2 de Novembro da mesma era. Aonde faleceu o padre Augustinho de Lacerda com alguns purtugueses.
Com o embaixador Paulo Dyas vierão quatro religiosos da Compa¬nhia de Jesu mandados pello Padre Provincial Miguel de Torres, e pedidos pela Raynha, e Cardeal, a saber o Padre Francisco de Gouvea por superior, o Padre Agostinho de Lacerda, e dous irmãos (2). Quando chegarão hera ia morto o Angola Inene e reinava seu filho por nome Dambe Angola (3). Feslhe a saber Paulo Dyas de sua vinda, e prezente que lhe trazia del Rey de Portugal. O Angola mandouo ir a sua cidade de Cabaça. Aonde residem os Reys na província de Dongo, e depois de o ter la, e ao Padre e mais por¬tugueses com o prezente e fazenda de todos, reteveos como cativos seis annos, principalmente ao embaixador, e ao Padre (4). Depois do qual tempo, vendose em necessidade de fato, deu licença que hum delles tornasse a Portugal a buscar mais fazenda. Veose o embaixador, e o Padre Francisco de Gouvea ficou em reféns. Sua ocupação hera dizer missa aos portugueses, confessalos, bautizar pessoas que estavão em artigo de morte, defendelos de perigos, asi da vida como da fazenda, e ter mão no Rey não fizesse algumas injustiças. Porque como o padre o criara tínhalhe o Rey algum respeito ,e tratavao muito bem. Nesta cidade achou o padre manifestos sinaes de terem vindo a este Reyno pessoas eclesiásticas, como forão missaes, sinco pedras dará, e alguns ornamentos de feitio muito antigo. Dizem os omens velhos que ouve ia aqui frades de S. Bento ou de S. Bernardo.

(1) Partiram de Lisboa em Dezembro, como aliás se nota à margem do manuscrito com outra letra. Vejam-se no Boletim da Sociedade de Geografia, IV, páginas 300-302, alguns capítulos da instrução dada pelo rei de Portugal a Paulo Dias, A instrução tem a data de 20 de Dezembro de 1559.
(2) Os dois irmãos chamavam-se António Mendes e Manuel Pinto. O Padre Francisco de Gouveia era natural de Castelo de Penalva e entrou na Companhia de Jesus a 15 de Novembro de 1554. O Padre Agostinho de Lacerda era castelhano.
(3) Dambe Angola ou Ngola Kiluangi.
(4) Não é exacto que todos ficassem seis anos como cativos. ]á em 1562 contava o irmão António Mendes que o rei deixara sair a todos de Angola, menos o embaixador, o Padre Gouveia e ele próprio António Mendes. Só esses três permaneceram «em terra reteudos como captivos». Mas António Mendes, pouco depois teve modo de se livrar do cativeiro, e em 1565 deu o rei permissão a Paulo Dias, que se tornasse a Portugal. O Padre Lacerda falecera na barra do Cuanza em 1560, antes de se porem a caminho para o N'Dongo, côrte do rei negro, e António Pinto foi morrer de doença na ilha de S. Tomé. Cf. Boletim citado, páginas 302-303; Franco, Imagem... Évora, página 460 e seguintes;

F. Rodrigues, Historia da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Tomo I, vol. I, pag 557.


CAPITULO 3.°. DA 2ª- VINDA DE

PAULO DYAS A ESTE REINO,

DO FRUTO ESPIRITUAL

QUE SE FEZ NAS ALMAS E MORTE DO

 PADRE FRANCISCO DE GOUVEA

Veo a segunda vês Paulo Dyas de Navaes com o titulo de governador de Angola, com doações, e provisões mui importantes dei Rey Dom Sebastião que ia governava o seu Reyno de Portugal (1). Partio de Lisboa a 23 de oitubro de 1574. A frota hera de dous Galeões, duas caravelas, dous pataxos, e huma galeota. Troixe sete centos homens de guerra, toda gente muito honrrada, e luzida. Pôs na viagem três meses e meio, não ouve mortos nem doentes. Troixe mais 4 religiosos da Companhia mandados pello Padre Jorge Sarrâo a petição dei Rey a saber o Padre Garcia Simões por Superior, o Padre Baltesar Afonço, os Irmãos Cosme Gomez, e Constantino Rodrigues (2).
Com os ministérios da Companhia se fez nesta viagem muito serviço a Deus Nosso Senhor em as pregações. Missa (ainda que seca) todos os domingos, e santos, e cada dia a doutrina, faziãose amizades, atalhou-se a discórdias, e iuramentos, pêra o que pôr ordem do Governador erão penitenciados na regra os que erão nesta parte mais soberbos, muita gente se confessou por ocasião de huma tormenta que durou oito dias.
Aos onze dias de Fevereiro de 75 chegou a Armada a este porto da ilha Loanda (3) do qual dizem os mareantes ser hum dos melhores que até agora se tem achado. Porque esta da ilha para dentro não muito longe da terra emparado de todos os ventos, limpo de pedras, e de altura capaz de grandes galeões, e outros navios menores. Tem agoa que se tira de poças que se fazem no areal a que chamão Quicimas. Todos os dias se pode entrar nele pollas menhaas com o terral e a tarde sair com as virações que sempre cursão.
Nesta ilha moravão quarenta homens portugueses muito ricos que se tinhão recolhido do Reyno de Congo por causa dos Jacas ferocissimos bárbaros que se mantém de carne humana, e tinhão destruído, e comido todo aquele Reyno. Aiuntarãose no porto 14 navios a saber: 7 darmada e 7 de S. Thomé que vinhão ao resgate. Sahio o Governador em terra com toda a gente das naos muito lusida, com suas trombetas diante, e postos em prosição acompanharão com muita devoção humas relíquias das onze mil virgens que o Padre Garcia Simões levava debaixo de hum palio até a Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Ao som das trombetas acudio muita gente preta que na ilha vive, e tem por oficio tirar zimbo do mar que he o dinheiro na Etiópia mais estimado (4).
Por ser entrada a Quaresma começarão os Padres de fazer seo oficio pregando aos domingos, e confessando a gente do mar, da terra e de S. Thome no que se fez muito serviço a Nosso Senhor, e particularmente em arrancar hum abuzo muito periudicial as conciencias que noutras partes reina, e por ventura não sem muita culpa daqueles, que tendo obrigação de atalhar, e estrovalo, com desimularem o deixão hir cresendo com muito perigo das almas da observância christaa, e preceitos da Santa Igreia. Custumavão comer carne as sestas e sábados do anno, e pela Quaresma, e ainda querião meter medo aos Padres que se ieiuacem não havião de chegar a Páscoa, e com iso elles andavão lastimosos, cheos de lepra, e de doenças incuráveis. Contudo os Padres apertavão com elles nas pregações, e não nos querião confessar. Emendarãose, ninguém mais comeo carne na Quaresma, e no cabo della se acharão melhor, e forão sarando de suas doenças. Muitos delles tomarão por devação confessaremse cada oito dias no que perseverarão muitos anos. Começarão os Padres aos domingos as tardes a iuntar com campainha os pretos, e ensinarlhes a doutrina com que também se fez muito fruito nas almas. E este santo exercício se continuou sempre ate agora asi nesta vila de S. Paulo como na de Maçangano, e no arrayal quando nelle andão alguns da Companhia.
Neste tempo avia ia 14 anos que o Padre Francisco de Gouvea estava como cativo do Rey de Angola, por o não deixar chegar ao porto do mar dizendo que não podia viver sem elle. Escreverão o Governador e o Padre Garcia Simões ao dito Padre lhes mandasse dizer que modo averia pêra o livrarem daquele cativeiro, respondeo que se não falasse em fazer guerra porque corria risco a sua vida e a dos portugueses, e asi não se tratou por então de a fazer. Porem nem isto foy bastante para estarem muito tempo quietos, porque o demónio que nunca dorme uzando das armas de sua malícia pêra inquietar aos bons levantou a tempestade donde senão esperava. Mandou hum Rey vezinho embaixadores ao Angola os quaes diante do Padre e portugueses lhe derão o rrecado, e hera que como amigo o man¬dava avizar senão fiase do Governador nem dos Portugueses que tinham em sua corte porque tratavão de lhe tomar o Reyno, e minas de prata. O Rey ficou espantado, e os nossos frios de tão cruel traição de hum Rey a que não tínhamos agravado. Derão suas razões, respondeo o Angola ficase o negocio para se tratar outro dia. Forão se logo os portugueses com o Padre a Igreia a rezar humas ladainhas, e pedir a Deus defendese sua ino¬cência. Aiuntou se o Padre com alguns homens de autoridade e bem entendidos na lingoa e derão taes razões em contrario, que o Rey em mostra de estar satisfeito tomou aos embaixadores, e presos os entregou aos portugueses. Vierão a esta Loanda, e daqui forão a S. Thomé aonde o Governa¬dor Diogo Salema que ali estava com alçada os mandou iustiçar (5).
Deste grande aperto, e excesivo trabalho que o Padre tomou em pacificar o Rey lhe sobrevoo huma grande doença da qual foi Deus servido levalo pêra si aos 29 dias do mês de julho de 1575, depois de viver 14 annos como cativo do Angola. Sepultarãono os portugueses na Igreia que o Padre tinha feita na Cidade de Cabaça. Foy sua morte sentida asi dos nossos como do mesmo Rey; dos nossos porque tinhão nelle amparo em seus trabalhos, e perigos da vida, e fazendas; do Rey pello muito amor, e respeito que lhe tinha por o Padre o ter criado e doutrinado de pequeno. E deste sentimento deu o Rei alguma mostra ao uso de Etiópia. Primeiramente quando o Padre estava doente lhe mandou seus cantores e tangedores que de dia, e de noute lhe andavão ao redor da casa cantando e tangendo para espantarem a morte que não chegasse ao Padre. No dia do seu enterramento mandou dar muitos bois aos portuguezes para que o chorassem. E por entender que aquela embaixada fora ocasião da morte do Padre, mandou tomar os caminhos para que nenhum homem branco nem preto viesse mais daquelle Reyno a sua corte, pois lhe matarão seu pae que o criara.

(1) O Reverendo Padre Ruela Pombo no opúsculo Paulo Dias de Novais e a Fundação de Luanda, Luanda 1926, páginas 37-51 e o senhor Coronel Alfredo de Albuquerque Felner, no livro Angola, Coimbra, 1933, páginas 407-412, publicam integralmente a carta de 6 de Setembro de 1571, em que D. Sebastião faz «doação irrevogável» do reino de Angola a Paulo Dias e seus herdeiros. A carta encontra-se na Torre do Tombo, Chancelaria de D. Sebastião (Doações), Livro 26, folhas 295 a 299.
(2) Baltazar Afonso, natural de Portel, do arcebispado de Évora, entrara na Companhia de Jesus a 30 de Novembro de 1559. Depois de 28 anos de missão em Angola morreu na vila de Luanda a 29 de Março de 1603. Franco, Ano Santo, 167. O Padre Garcia Simões apenas logrou trabalhar na missão durante pouco mais de três anos, por falecer em 12 de Maio de 1578. Alistara-se na Companhia em Coimbra a 5 de Março de 1556. Era natural de Alenquer. Franco, Ob. cit; pág 254.
(3) Garcia Simões diz em carta de 20 de Outubro de 1575 que aos 20 de Fevereiro tiveram vista do porto de Luanda. Boletim e volume citado, página 340.
(4) Sobre o zimbo, concha univalve, assim escreve o Padre Garcia Simões: «Esta Ilha de Luanda he mina do Congo, porque aqui se pesca o busio, que he dinheiro que corre em toda esta terra... O mais grosso e o mais miúdo vale pouco preço e assi o joeirão, os meãos é o que mais vale...». Boletim e volume citado, página 340. Carta citada de 20 de Outubro de 1575.
(5) Conta este facto Garcia Simões na carta de 20 de Outubro de 1575, assim como o que segue da morte do Padre Francisco de Gouveia e sentimento do Rei. Ob. cit., páginas 345-346.

Mais um apontamento sobre a tão sonhada e alardeada prata de Cambambe:
Mas no século XVIII escrevia, para desengano, o padre António Franco: «Assistiu [P. Baltazar Afonso] por vezes no exército dos portugueses, que andava na conquista das minas de Cambambe, em que a cubica tinha fingido montes de prata, mas por fim de largos anos e guerras, conquistada a terra, nada se encontrou do que se sonhava». Ano Santo, página 167. Cf. Felner, Angola, página 189-190.





















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