segunda-feira, 30 de maio de 2011



Desencarnação e morte!

O Retrato de D. Brites



Cópia de uma carta que mandou o Dr. Manuel Soares Corrêa, juiz de fora, que foi de Penamacôr, ao seu amigo Francisco Alves, pintor na vila da Covilhã, pedindo-lhe que lhe pinte num quadro o recebimento e baptisado de sua filha, e a morte de sua mulher a Ilma. D. Brites.

“A pena com que pego na pena é tão grande e tão publica, que escuso de lhe contar: pois vocemecê saberá que quiz Deus levar a D. Brites onde ela só sabe; mas é certo que foi para o céu, que é a morada dos anjos, qual ela foi neste mundo; e como a tenho em presença na minha memória, quero também retratá-la em casa; e assim remeto a vocemecê um pano de estopa para que vocemecê pinte n’elle com as tintas mais finas, que tiver, três representações em um só quadro, que se ha de pôr na sala para memória deste infausto caso, com as figuras seguintes:

Recebimento

Vocemecê bem viu a D. Brites de marca ordinária; grossinha de corpo; o rosto não era comprido nem largo; entre clara e morena; os olhos entre azuis e pretos, com a cor de chumbo desmaiado; o nariz à flor do rosto; cova na barba; dentes brancos; beiços grossos, e alguns sinais de bexigas; o cabelo era louro e castanho, toucada como na corte, vestida de cor de goivo (veja que ha de ser de seda e não de lã).
Ao pé della ponha vocemecê duas moças vestidas de creadas; a mais velha de escada acima, e a outra de escada abaixo e a mim me há de pintar tal qual eu sou, com as feições que tenho, e vocemecê sabe; porem vestido honestamente, pela razão do meu cargo, com o meu vestido encarnado, véstia bordada; e calção com liga de prata; não se esqueça de pôr pluma no meu chapéu.
O acompanhamento é escusado dizer-lhe; vocemecê o sabe porque o viu. Ponha vocemecê uma igreja de pedra, que é a freguesia, com três clérigos, um deles vestido de ex sacramentis para nos receber; e veja que o dito padre não era alto mas sim clérigo de marca. Deixe vocemecê um campo em branco na pintura para se lhe pôr um dístico em verso, que ainda não passei.
 
Baptismo da minha filha

Pinta vocemecê d. Brites, doente em um pavilhão pardo, e ao pé d’ella uma mulher velha, vestida de moça; e a Oliveira, criada antiga da casa, e vestida de forma, que você já a tem visto por aqui; e mais algumas pessoas que assistiram ao parto, com os olhos chorosos e caras tristes por causa do aperto em que D. Brites se viu; o mais fica à sua disposição.
Segue-se logo a um canto a parteira de manto com minha filha D. Maria Soares Corrêa, recém nascida nos braços, involvida n’um corte de primavera tostada, e por diante guarnecida de prata. O acompanhamento que vocemecê viu seja o mais luzido que poder debuxar; lembre-se também de pôr todos ao redor a parteira, e os dois padrinhos juntos d’ella, vestidos de encarnado um d’elles com uma vela na mão junto à pia que há de ser de pedra dentro da igreja, o que vocemecê pintará da mesma sorte que fez no recebimento. Aqui deixará também lugar em branco para se lhe pôr uma legenda que há de ser feita em verso por mim.

Falecimento de minha mulher
 
Pintará vocemecê D. Brites deitada ma mesma cama; o cirurgião sangrando-a assistindo-lhe as mesmas criadas; ponha uma d’ellas com cara mudada por falta de somno, de sorte que se perceba que é por não dormir quasi uma semana; pinte uma a pegar na bacia, e outra a deitar água nas mãos; pinte a Oliveira, com uma almotolia de azeite virada com a boca para baixo, dando a entender que vai buscar mais à despensa; pinte D. Brites com a cara macilenta, enchada, e com os olhos papudos, com um círculo negro por cima, e outro por baixo; enfim cor de defuncta doente já morta, e as mulheres compondo-a com o hábito de freira vestia em um caixão rico, a cera acesa, quatro cavalheiros de preto para pegarem no caixão, e clérigos em quantidade.
Peço a vocemecê isto como obra sua, e sobre tudo a brevidade para que este coração sinta algum descanso em magua tão grande, de que vocemecê me há de aliviar como amigo. Não se esquecendo de pintar na freguesia uma torre com sinos a dobrarem, só dois dias e meio de manhã até à noite

Penamacor, 12 de Março de 1748

O dr. Manuel Soares Corrêa


N.- Dá-se um prêmio a quem for capaz de pintar este quadro! Sobretudo com os sinos a dobrarem só dois dias e meio!!!



24 mai. 11



Nenhum comentário:

Postar um comentário