domingo, 1 de março de 2020


Encontros Fortuitos e Afortunados

Creio que já contei uma série de encontros, aliás reencontros, com gente que conhecera e deixara de ver durante algumas dezenas de anos. Continuo a recordar algumas passagens da minha vida com esses reencontros, curiosos uns, divertidos outros e alguns emocionantes.
Vou tentar dar-lhes uma ordem, mais ou menos cronológica.
1939/65? - Teria eu uns 8 a 10 anos e sempre passávamos os verões em Sintra na quinta dos meus avós. Quase todos os dias saía de casa com os meus irmãos – os mais velhos – e íamos a pé, pela estrada da Volta do Duche para o Parque Valenças, hoje renomeado Parque da Liberdade, que muita se perdeu desde esse tempo dos idos anos 30 e 40.
Um dia cruzámo-nos com um senhor, ar altivo, a cavalo, que sorriu ao passar ao pé daquelas crianças, e eu, inocentemente, (mais gozador do que inocente!) em voz bem audível, fiz um comentário:
- Hiii! O cavaleiro é mais feio do que o cavalo!
O senhor ouviu, achou graça e seguiu no seu cavalgar enquanto eu devo ter ouvido uns ralhetes dos irmãos.
Passam bem mais de duas décadas e um dia, em Luanda, tive que ir falar a um senhor, que não sei já o que fazia no governo daquela saudosa terra. Recebeu-me, discutimos o assunto que lá me levara, eu olhava aquela cara – sempre feioca – e alguma coisa cutucava as minhas meninges.
Não consegui ficar quieto e acabei por lhe perguntar se costumava passar o verão em Sintra. Disse que sim.
- E andava a cavalo?
- Muita vez.
- Talvez se recorde que um dia um garotinho quando o viu, exclamou que o cavaleiro era mais feio do que o cavalo.
- Lembro muito bem e ainda ri com isso.
- Pois tem na sua frente o atrevido garoto.
­Não lembro o que me levou a procurar o senhor, mas com cerimónia e tudo terminámos a conversa a rir e com um abraço.
1953/64? - Estava eu de perna inteira engessada depois que um trator, delicadamente, me havia passado por cima, recebi um dinheirinho, e apaixonado como estava por um velho Triumph Gloria, que via todos os dias parado em frente ao Clube dos Oficiais da Marinha na Praça Marquês de Pombal, em Lisboa, quando ao ler o jornal vejo que o carro estava à venda, o meu coração teve um baque.
Fui ao tal clube, indicaram-me o dono, bebi um café e talvez algo mais com ele, oficial da ex-Força Aérea da Marinha que tinha sido promovido a comandante e como achava que o carro, de 1934, não dignificava a patente, decidiu vendê-lo. Negociámos – eu, apaixonado, acabei por pagar o que ele pediu - saímos para experimentar a máquina, com ele a conduzir. Negócio fechado, tive que lhe pedir que guardasse o carro, com muito cuidado, durante cerca de um mês mais, até desengessar a perna. Até poder conduzir. Nos entretantos quase todos os dias ia ao clube, jogava xadrez com o ex dono do, agora, meu carro, até que chegou o dia em que fui buscar a belezoca. Exatamente esta que aqui se vê. Azul, mais escuro nos pára-lamas!

Um ano depois decidimos (no plural porque foi decisão a dois) casar (não com o comandante o que parece óbvio), e ir para Angola, tive que vender a bela máquina. Até hoje choro de saudades. Lindão, carroceria de alumínio, 1000 cc. Maravilha.
Uma dúzia de anos mais tarde, em Luanda, na Cuca, tive que ir falar com o comandante da Força Aérea de Angola.
A mesma cena: o comandante sentado na sua mesa de trabalho e eu na frente, para falarmos sobre... não sei o que. Em cima da mesa, virada para o visitante um placa com o nome “Brigadeiro ... Delgado”.
Mexeu comigo. Tive que perguntar se ele não fora da Marinha. Sim, mas quando acabaram com a aviação Naval, a ele, já promovido, deram-lhe a oportunidade de ingressar da Força Aérea única, e num instante chegou a oficial general.
- O senhor teve um Triumph Gloria?
- Tive sim.
- Lembra-se a quem o vendeu?
- Só lembro que foi a um jovem com uma perna de gesso.
- Esse jovem está aqui na sua frente.
Creio que ficámos meia hora mais só a falar do carro!
1954/62 - Estava na Cuca, em Luanda, e fui fazer uma prospecção de mercado ao Congo, Brazzaville. Em dado momento cruzo-me na rua com um indivíduo cuja cara tinha algo de familiar e que se dirige a mim com largo sorriso e grande abraço.
Já não me lembrava do seu nome, nem hoje lembro, mas tinha sido um companheiro de alegres tardes, com cerveja, em Benguela, nos anos de 54 e 55. Angolano, opositor da guerra colonial, visado pela PIDE, refugiou-se no Congo e tinha um programa de rádio dirigido para Angola, que defendia com valor e saudade.
Perguntou-me o que eu estava ali a fazer e lá lhe expliquei. Ficou animadíssimo! A sua querida Angola tinha um fábrica de cerveja que podia exportar! Que progresso!
E levou-me para ser entrevistado na sua rádio; logo de entrada lhe pus como condição não falar de política. Meia hora de entrevista, que não sei quem terá escutado, e depois fomos lembrar os bons tempos daquela cidade, com certeza a melhor de toda a África e, porque não, do Mundo: Benguela.
1954/79 - Vivíamos em São Paulo. Para celebrar as nossas Bodas de Prata, fizemos um convite a todos os amigos que nesse tempo viviam em SP e aos que tinham estado, 25 anos antes, presentes ao enlace em Portugal, quase todos ainda por lá.
Recebemos muitos cartões, cartas, etc., mas, como é óbvio, nenhum se deslocou de Portugal para ir beber uns copos conosco.
Trabalhava eu nessa altura no Rio, para onde me deslocava toda a semana a partir do lar paulista, e administrava uma fábrica/oficina que fazia trabalhos lindos, mas que comia todos os suados centavos para impostos! Eu era muito burro e só vim a aprender como se vive neste país, por um doce acaso no ano seguinte.
Um dos meus trabalhos era caminhar para os bancos, no centro do Rio, ver saldos, levantar dinheiro para salários, taxas, impostos e outras roubalheiras e, evidente pagar aos fornecedores de matérias primas. Um terrível sufoco que deve estar na base dos problemas cardíacos que, mais tarde, quase me derrubaram.
Rua do Ouvidor, no Centrão, milhares de pessoas caminhando em sentidos opostos, um trânsito pedestre imenso, como o calor, e eu a dirigir-me a um dos bancos. De repente pensei que era melhor ir primeiro a outro que tinha deixado atrás. Paro, dou meia volta sobre os calcanhares e... parado, estático, bem na minha frente um dos meus grandes amigos desde crianças – e até hoje – que ia caminhando atrás de mim sem me ter reconhecido pelas costas.
Foi uma imensa alegria. Despachei, rapidinho o que tinha a fazer e fomos para um café falar, falar, falar.
Para ele era a primeira visita ao Brasil; tinha chegado na véspera e ia telefonar-me à noite. Tira do bolso um envelope e diz-me: “Tenho aqui no bolso o teu convite para as bodas. Cheguei um pouco atrasado. Mas amanhã vou para São Paulo e lá nos veremos com tempo”.
O meu muito querido amigo, de toda a vida, Toni Tavares de Carvalho.
Esteve em São Paulo uns 15 dias e todos eles estivemos juntos, e sempre com histórias para contar. Saudade!
1965/2005 – Vou transcrever o que escrevi em Agosto de 2005, e foi para o blog:
Um encontro com Cristo
Já, tantas vezes, nos foi dito que Cristo anda por aí, neste mundo, disfarçado, em cada um dos nossos semelhantes, sobretudo naqueles a quem a sorte menos favoreceu, ou no princípio, ou no meio, ou no fim da vida. “Aquilo que fizerdes a cada um dos mais pequeninos...”
Apesar de ver os anos a carcomerem-me o físico, um desafio irrecusável, feito há dias por um sobrinho do coração, filho dum enorme amigo, infelizmente já fora desta terra, veio reacender a esperança de ver realizado um sonho que, talvez infantilmente, fui acalentando desde a mais tenra mocidade: sair um dia, à vela, atravessar esse “mar salgado que é português”, sondar o insondável, e sentir o que os nossos avós sentiram quando se aventuraram ao desconhecido, a unir povos, o mundo, que apesar de tanta aproximação, muitos teimam em querer manter afastados.
O desafio, para um “jovem” da minha idade: acompanhá-lo numa ida de barco à vela, entre o Rio de Janeiro e Luanda, e com a ajuda da Senhora dos Navegantes, regressar! Meu Deus! Que sensação fantástica! Como o físico não dá já para grandes esforços fui “designado” cozinheiro, navegador e contador da história! Porque esta história tem que ser contada. (Deu, sim, um livro!)
Preparativos, estudos de marés, correntes, ventos, navegação astronômica, apesar de obsoleta, aprendida há mais de trinta anos e quase toda esquecida, esmiuçar a necessária segurança, mantimentos, primeiros socorros, distração a bordo, etc.. Uma tarefa grande que deve ser precisa, meticulosa.
Entre os afazeres, encontrar uma bandeira de Angola, para envergar, como cumprimento e cortesia ao entrar em águas territoriais daquele saudoso país. A bandeira de Angola, há anos que estará para ser alterada, mas as discussões sobre o assunto não acabaram ainda. Para me certificar de que não encomendaria a bandeira errada, e obter informações sobre o visto de entrada, fui ao Consulado de Angola, no Rio de Janeiro, e encaminharam-me ao Adido Cultural.
Jovem - da idade dos meus filhos - filho de muxiluandos, foi dizendo que tinha sido educado na Casa dos Rapazes de Luanda! Um tremendo baque me atingiu! Há quase quarenta anos o acaso me levou a visitar aquela instituição, que albergava cento e sessenta rapazes, a maioria dos quais não tinha família. Dediquei algumas horas e dias do meu tempo livre a colaborar para alegrar um pouco a vida daquelas crianças, sempre levando junto os meus filhos para que com elas brincassem e sentissem os seus problemas. Por uma brincadeira (que descrevi no meu livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco” de 1998) fiquei conhecido no meio da garotada pelo apelido de “O caçador”! Atrevi-me a perguntar ao Adido se ele se lembrava de ter ouvido falar num indivíduo a quem tinham posto este nome! Lembrava, sim.
“Parece-me que tinha um Volvo... e morava ali... perto da Igreja da Sagrada Família!”
Fiquei sem fala; e as lágrimas não puderam deixar de aflorar. Naquele tempo rapazinho de talvez oito ou dez anos, lembrava-se de tudo, e até de ter estado em minha casa, para onde às vezes eu levava alguns daqueles rapazes a almoçar conosco!
Quando lhe disse que “o caçador” era eu, foi a vez dele se emocionar!
Num abraço muito forte, muito amigo, senti que estava a abraçar o próprio Cristo, já não num menino, mas num adulto a quem a vida acabara transformando num homem consciente e orgulhosamente reconhecido à Obra que o ajudou a crescer! Um orgulho humilde!
Que belo começo da nossa, em breve, navegação.
(Este texto mereceu na altura uma porção de comentários que ainda hoje me comovo ao lê-los. Bem hajam os que os escreveram.)
O tal Volvo era exatamente igual a este!

Ainda na sequência da Casa dos Rapazes. Quem dirigia aquela Obra era um padre, Freitas, de quem me tornei amigo e bem chegado. Em 71 fui para Moçambique, depois o 25/4 acabou a Casa dos Rapazes e perdi este amigo de vista.
1965/1990 ia eu de comboio de Cascais para Lisboa, quando alguém se aproxima e pergunta: É o sr. Francisco Amorim?” –
Olhei bem quem se dirigia a mim e vi que  havia alguém conhecido atrás duma “feroz” barba! E respondi: “Estou a reconhecer alguém, mas sem barba! – E de repente caiu a ficha! “É o Padre Freitas!”
P padre da Casa dos Rapazes de Luanda! Já não era mais padre, lecionava numa Universidade em Lisboa. Mas foi uma enorme alegria, grande abraço.
Ainda nos vimos mais umas vezes, veio a nossa casa ao Brasil, mas já doente, e, sofrendo muito, descansou.
1958/2006 - Quando em Luanda, na Cuca, me entregaram um alvará e umas máquinas esquecidas num depósito e me disseram para montar uma fábrica de rações para animais... tive que correr Angola de lés-a-lés para me informar que animais existiam, tipos, raças, como se alimentavam, etc., e uma das cidades visitadas foi Moçamedes, que depois se chamou Namibe e hoje voltou a ser Moçamedes, onde encontrei gente sensacional, como por exemplo um Dolbeth e Costa.
E, para variar as tardes eram esgotadas em esplanadas onde se esgotavam também cervejas bem geladas, acompanhadas com marisco daquele mar, o melhor do mundo.
Num sábado estive com uma terrível diarreia, metido no hotel a comer só arroz cozido mas foi-me ver um dos amigos que tinha acabado de conhecer, viu que eu estava a melhorar e desafiou-me para no dia seguinte ir com ele e mais um grupo de jovens dos 20/30 anos até à Baía das Pipas, a uns 30 kms da cidade. (Foi ali que conheci um homem de quem fiquei muito amigo e já descansa como os justos, o Grande, em todos os sentidos, Alberto Gomes).
Avisou-me que vinham buscar-me ao hotel às 5 da manhã.
Lá estava eu pronto, e tive um dia de sonho, no meio de companhia admirável. Também escrevi sobre isto no meu livro “Contos Peregrinos...”.
Não lembro do primeiro nome do meu “condutor”, mas dos sobrenomes da família: Mac-Mahon Vitória Pereira.
Quando voltei a Angola em 2006, depois de cruzado a Atlântico, à vela no “Mussulo”, no Namibe, aqueles que tinha conhecido quase meio século antes já lá não estavam, mas alguns descendentes ficaram, como eu, emocionados quando lhes disse que tinha conhecido ou o pai ou um tio dos que nos acolheram.
Depois, saímos do Namibe e fomos para Luanda. Um dia estava sentadão no Club Naval, onde passámos a maior parte do tempo, e vejo chegar um senhor, já de barba branca, acompanhado de um jovem adolescente que tinha sido avisado por um amigo do Namibe que um dos navegadores tinha sido amigo do pai dele.
O senhor, filho do Mac-Mahon Vitória Pereira que eu havia conhecido, Agostinho Vitória Pereira, professor da Universidade, fez questão de conhecer-me e levar o filho que parece não terá conhecido o avô.
Nestes encontros os olhos pouco vêm porque ficam embrulhados em lágrimas que se querem também manifestar.
Ainda em Luanda o Club de Regatas Nun’Álvares quis homenagear a tripulação do Mussulo com um jantar. O presidente do Club, dr. Paulo Múrias, filho de um outro amigo com quem nos tempos antigos eu tivera uma vivência especial, a edição de livros escolares que pela primeira vez se podiam fazer em Angola, o professor Manuel Múrias.
É verdade que tudo isto pela vida fora foram emoções muito fortes, extremamente gratificantes, e recordá-las mexem ainda, com força, na nossa alma. Ainda houve outros mas ficam para outro dia!

31/01/2020

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