O Aniversário
da Afilhada
A história começa há
sessenta anos, com a mamãe, no andar de cima, a aguardar, ansiosa e certamente
apreensiva e cansada, para ver o que ia nascer, rodeada por amigas mais
experientes, e os homens, os machos, o
pai da em breve neófita, e mais três amigos, maridos das experientes damas que
acompanhavam o transe, esperavam na sala jogando tranquilos o bridge. Todos
jogadores de 2ª ou 3ª categoria, o que não fazia a menor diferença.
Em cima a parturiente,
além das amigas, vizinhas, estava assistida por uma parteira, ótima, cheia de
prática e com dezenas ou centenas de nenéns tirados dos interiores femininos. A
velha, saudosa e ótima Adriana.
Pelo mapa abaixo, duma
pequena parte da cidade Luanda, estão indicadas as casas dos vizinhos, que
distavam entre si uns 50 a 60 metros, formando um quase perfeito isósceles e
muito percorrido triângulo:
Na nr. 3 vivia a
parturiente, Maria de Magdala, seu amantíssimo esposo, o Nuno António que deveria ter sido arcebispo
mas enganou-se e estudou agronomia, ambos com uma filha de cerca de ano e meio,
já afilhada dos moradores da nr. 1, a Maria.
Na nr. 2 outro agrónomo e
colega de curso do anterior, o Belo António e sua Ana também de barriga
a crescer, amigos desde a mais tenra idade do que relata este importante
acontecimento, já com dois filhotes rapazes, e na casa nr. 1, este vosso
cronista, sua Bela esposa igualmente de prometedor voluminoso ventre, que breve
aliviaria, e seus já três filhos homens, homens a crescer.
Pouco tempo antes haviam
discutido o sexo do neném que cada um aguardava e todos queriam com a certeza
que os seus prognósticos desejos fossem cumpridos. Este, que vos escreve,
apostou que ia ser um belo lote só de meninas. Foi o único que acertou.
Havia um quarto parceiro
no bridge, o Xico d’Água, um medalhista olímpico, colega numa companhia de
petróleos do António da nr. 2.
No andar superior (era um
sobrado!) já não garanto que estivesse também a sua parceira, Graça Maria,
porque certamente deveria ter ficado em casa a cuidar de uns 3 ou 4 filhotes de
ambos os sexos.
Antigo Bairro da CAOP,
hoje Bairro Comandante Valódia, e a ruas, Bernardim Ribeiro, das casas nr. 1 e
2, hoje abandonado o poeta português e a sua Menina e Moça, passou a
chamar-se Custódio Bento de Azevedo (ilustríssimo e grande herói, totalmente
desconhecido) e a nr. 3 sem nome até
hoje, entre esta e outra, a ex El Rei D. Dinis (talvez fosse Travesssa El Rei
D. Dinis ?), a mais apropriada para acolher um preposto arcebispo e a de mais
fácil acesso a esse conjunto, mas que agora homenageia possivelmente um outro herói
da guerra da independência, que desta vez se chama rua Sebastião Desta Vez, um
também ilustre e se possível ainda mais desconhecido, mas com homónimo que tem uma
curiosa página no Facebook!!!
Mas
em Luanda raras vezes as pessoas indicavam alguma casa dando nome de rua e
número de porta. Era mais ou menos assim: "ah, é aquela casa ali perto do
supermercado “x”, na Maianga, perto do prédio da Força Aérea". Ou , "fica na segunda rua à
direita depois do hospital do Prenda, uma casa verde" e assim por diante.
Ou seja , você passava meses e anos em Luanda mal sabendo onde é o endereço de
sua casa e seu trabalho, mas ignorando o dos amigos e colegas.
O
bairro era muito calmo, as portas das casas sempre abertas e o “correrio” entre
as nossas 1, 2, e 3 era constante. Os filhos iam crescendo e corriam para casa
uns dos outros.
Voltemos
ao parto. Tudo isto se passava à noite, a seguir ao jantar.
Na
sala, como disse, com o anfitrião, nervoso também, jogava-se tranquilamente o
bridge, até porque nenhum era mestre nessa arte, mas dava bem para passar umas
horas entre amigos, beber umas Cucas e muito mais a conversar de que a
jogar. Em cima, conversa em voz baixa para não cansar a mamãe nos seus
trabalhos.
De
repente passa na rua uma garotão em cima duma motorizada, escapamento
aberto, a fazer uma berrata ensurdecedora: rrróóóó, rrrróóó... o que sem dúvida
incomodou os jogadores e com certeza muito mais a mamãe a ser, lá em cima. O
garotão virou ali na (ex) Bernardim Ribeiro, seguiu e... sumiu.
Não
tarda um minuto, volta o motoqueiro com o mesmo barulho alto e chato, e repete a
graça ainda mais duas vezes.
Nós
já estávamos com vontade de esticar um arame mais ou menos pela altura do
pescoço do barulhento, mas nem tínhamos o dito arame nem pensamentos
assassinos.
À
quarta passagem o dito e estúpido corredor, ao fazer a curva para a Bernardim,
derrapou, esbarrou num poste de iluminação pública e caiu.
Nós
ouvimos o barulho do acidente, largámos as cartas, corremos para socorrer o
miserável que tínhamos vontade de estrangular! O dito estava caído e a motoca
torcida ainda com uma roda a girar.
Não
parecia ferido. O Xico d’Água perguntou-lhe se estava ferido e se precisava de
ajuda.
O
moleque mexeu-se, sentou-se, mesmo no chão, e disse:
-
Não. Estou bem.
Cerrando
os dentes para conter a raiva, o Xico aproxima a cara do acidentado e, voz
rouca mas muito sonora, diz-lhe:
-
Aarrrr! Que pena!
Já
ninguém sabe dizer ao certo, a que horas, mas pouco depois do motoqueiro se ter
esfolado, quem aparecia neste mundo de tormentos era a segunda menina do “ex-nunca-arcebispo”
e sua Magdala.
Certamente
umas palmadas na bundinha da criança para que ela logo mostrasse que não fazia
tenções de viver de boca fechada, as comadres vizinhas e parteira
cumprimentavam-se, e o honorável
e babado papai abria mais umas Cucas.
Não tardou a ser batizada
e os padrinhos (por delegação) da Maria, apadrinharam também a novel Ana, nome
que, carregado de significado, a colocava sob a proteção da Mãe de Nossa
Senhora.
Todos sabem que os
padrinhos eram de 2ª, mas sempre considerados como os verdadeiros, com primazia,
e como irmãos dos progenitores das mininas.
Quando por qualquer
circunstância em casa de algum faltava, por exemplo, batata, ou açúcar o que
fosse, havia sempre o recurso de pedir ou ao cozinheiro ou a algum dos filhos
que fosse a casa de um dos vizinhos tios e pedisse um empréstimo do bem em
falta. Grande comunidade.
Naquele bairro passavam-se
coisas curiosas. A parede da frente da casa nr. 3, para que a ventilação da dita
se fizesse bem, e fazia, era de tijolo aberto, aqueles em “X”, o que permitia
que volta e meia lhes entrasse na sala um gato que não era nada bem vindo.
Entrava o gato, corria-se com a gato, mas o raio do bicho era teimoso e voltava
todos os dias.
Nessa altura o “patrão”,
além das armas de caça, que muitas e variadas possuia, tinha uma pistola dada
pelo sogro, uma FN 35mm, que não matava nem pensamento ruim, e uma noite
decidiu levar a arma para a mesa, ao jantar, aguardando a hora a que o felino
visitante costumava aparecer.
D. Bela, quem o vê
primeiro, em silêncio faz sinal com a cabeça, indicando que o invasor já ali
estava.
O preposto atirador agarra
na insignificante pistola, mas quando apontou tinha uma cadeira mesmo no meio
da mira!
Torceu-se, tentou mirar
melhor, disparou, um bom estrondo, porque o chão era de azulejo e não havia
tapetes (nem razão para isso) que ecoou por toda a casa. O felino deu um
elegantíssimo salto, apanhou um tremendo susto e saiu correndo. Nunca mais o
vimos. A inspeção que se seguiu encontrou a bala alojada na porta de entrada...
sempre aberta!
Os anos foram passando,
todos mudaram para casas maiores e melhores, os petroleiros, um foi
mandado para os Açores e o outro para Nova Lisboa e depois Portugal, Magdala e
António ainda tiveram mais uma cria, o Zé, que só não teve os mesmo padrinhos
porque estes estavam em Portugal, e os padrinhos por sua vez ainda viram
aparecer-lhes mais cinco filhos, ficando com uma carga notável.
Tudo foi correndo até que
o miserando vinteecincobarraquatro lhes acabou com aquela vida de
África. Todos saíram de lágrimas nos olhos e o Brasil foi quem logo os acolheu.
Nessa altura a menina Ana
estava já com uns 15 anos. Bonitona. Estudou e psicologou.
Não demorou a aparecer-lhe
um príncipe Gonçalves com quem trocou juras de amor eterno, papai
e mamãe arranjaram-lhes um principesco casamento em Portugal, onde estava o “grosso”
de ambas as famílias, mas após as luas meladas, voltaram ao “país do futuro”.
Esperaram um pouco para
que ambos se estabilizassem nos competentes trabalhos e ela criasse mais
experiência nas psicologuices. Uns poucos anos depois, ainda na capital industrial
do Brasil, São Paulo, chega-lhes a primeira minina, seguida de uma outra.
Do lado do escrevente e
sua Belíssima esposa que já começavam a capengar, a turma também crescia e se
multiplicava, apresentando netos e netas aos, babados com a descendência
brasileira, e continuam os neófitos luandenses um a ser padrinho de uma, outra
a ser madrinha de um, fortalecendo uma amizade que ultrapassa os foros de amigos
para continuarem irmãos.
E a terceira geração nunca
mais viu Angola! Nasceram no Brasil, aprenderam o requebro do samba, e só sabem
da vida de África pelas histórias contadas, não à fogueira, mas talvez no ar
condicionado.
Mais anos passam.
Menina Ana mais seu Gonçalves,
duas filhas invejáveis, surge-lhes uma oportunidade e se mandam para a velha
metrópole, onde prosseguem com sucesso as suas profissões.
As mininas crescem e dois jovens
de qualidade e nacionalidades diversificadas, não tardaram a conquistar as
atraentes garotas.
Chegou entretanto uma data
a comemorar e decidem que é aqui, no Brasil, onde vivem os dois padrinhos das
duas filhas, que vêm festejar a entrada no sexagenarismo matriarcal.
Ainda há dias andava o
motoqueiro a perturbar o descanso da mamãe/vovó que se preparava para aliviar o
barrigão, e aquela menina que nasceu no bairro da CAOP, veio festejar
importante data, com o seu clã e com os compadres-irmãos no Brasil.
Chegou no Carnaval.
Desfilou numa Escola de Samba (aguentou, divertiu-se e resistiu) diz que
apareceu até nos jornais e na Tv e quase assinou contrato de Porta Bandeira com
uma das famosas Escolas de Samba, depois deu um passeio de mar alto no glorioso
“Mussulo” com outro compadre o grande mestre doutor e navegador de longo curso Guilherme
Manim.
Isso é festejar a vida.
Vivê-la com intensidade, porque passa tão depressa...
Longa vida a todos.
Já aqui não estarei, mas
quando os últimos afilhados fizerem, eles, 60 anos, que se juntem em outra grande farra.
Pode ser em Portugal,
Canadá ou, porque não, novamente no Brasil e seu Carnaval. O tempo passa
rapidinho e faltam só uns 30 anos!
É fácil: manter a amizade,
cada vez mais viva.
Beijo a todos. E que ainda
por aqui possamos estar quando a minina da CAOP festejar os oitenta! Os cem... não
vai ter os padrinhos!
01.03.2020
SABOROSÍSSIMA CRÓNICA! SAÚDE E VENHAM MAIS!
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