terça-feira, 17 de março de 2020



           
O Aniversário da Afilhada

A história começa há sessenta anos, com a mamãe, no andar de cima, a aguardar, ansiosa e certamente apreensiva e cansada, para ver o que ia nascer, rodeada por amigas mais experientes, e os homens, os machos,  o pai da em breve neófita, e mais três amigos, maridos das experientes damas que acompanhavam o transe, esperavam na sala jogando tranquilos o bridge. Todos jogadores de 2ª ou 3ª categoria, o que não fazia a menor  diferença.
Em cima a parturiente, além das amigas, vizinhas, estava assistida por uma parteira, ótima, cheia de prática e com dezenas ou centenas de nenéns tirados dos interiores femininos. A velha, saudosa e ótima Adriana.
Pelo mapa abaixo, duma pequena parte da cidade Luanda, estão indicadas as casas dos vizinhos, que distavam entre si uns 50 a 60 metros, formando um quase perfeito isósceles e muito percorrido triângulo:

Na nr. 3 vivia a parturiente, Maria de Magdala, seu amantíssimo esposo,  o Nuno António que deveria ter sido arcebispo mas enganou-se e estudou agronomia, ambos com uma filha de cerca de ano e meio, já afilhada dos moradores da nr. 1, a Maria.
Na nr. 2 outro agrónomo e colega de curso do anterior, o Belo António e sua Ana também de barriga a crescer, amigos desde a mais tenra idade do que relata este importante acontecimento, já com dois filhotes rapazes, e na casa nr. 1, este vosso cronista, sua Bela esposa igualmente de prometedor voluminoso ventre, que breve aliviaria, e seus já três filhos homens, homens a crescer.
Pouco tempo antes haviam discutido o sexo do neném que cada um aguardava e todos queriam com a certeza que os seus prognósticos desejos fossem cumpridos. Este, que vos escreve, apostou que ia ser um belo lote só de meninas. Foi o único que acertou.
Havia um quarto parceiro no bridge, o Xico d’Água, um medalhista olímpico, colega numa companhia de petróleos do António da nr. 2.
No andar superior (era um sobrado!) já não garanto que estivesse também a sua parceira, Graça Maria, porque certamente deveria ter ficado em casa a cuidar de uns 3 ou 4 filhotes de ambos os sexos.
Antigo Bairro da CAOP, hoje Bairro Comandante Valódia, e a ruas, Bernardim Ribeiro, das casas nr. 1 e 2, hoje abandonado o poeta português e a sua Menina e Moça, passou a chamar-se Custódio Bento de Azevedo (ilustríssimo e grande herói, totalmente desconhecido) e a nr. 3 sem nome até hoje, entre esta e outra, a ex El Rei D. Dinis (talvez fosse Travesssa El Rei D. Dinis ?), a mais apropriada para acolher um preposto arcebispo e a de mais fácil acesso a esse conjunto, mas que agora homenageia possivelmente um outro herói da guerra da independência, que desta vez se chama rua Sebastião Desta Vez, um também ilustre e se possível ainda mais desconhecido, mas com homónimo que tem uma curiosa página no Facebook!!!
Mas em Luanda raras vezes as pessoas indicavam alguma casa dando nome de rua e número de porta. Era mais ou menos assim: "ah, é aquela casa ali perto do supermercado “x”, na Maianga, perto do prédio da Força Aérea". Ou , "fica na segunda rua à direita depois do hospital do Prenda, uma casa verde" e assim por diante. Ou seja , você passava meses e anos em Luanda mal sabendo onde é o endereço de sua casa e seu trabalho, mas ignorando o dos amigos e colegas.
O bairro era muito calmo, as portas das casas sempre abertas e o “correrio” entre as nossas 1, 2, e 3 era constante. Os filhos iam crescendo e corriam para casa uns dos outros.
Voltemos ao parto. Tudo isto se passava à noite, a seguir ao jantar.
Na sala, como disse, com o anfitrião, nervoso também, jogava-se tranquilamente o bridge, até porque nenhum era mestre nessa arte, mas dava bem para passar umas horas entre amigos, beber umas Cucas e muito mais a conversar de que a jogar. Em cima, conversa em voz baixa para não cansar a mamãe nos seus trabalhos.
De repente passa na rua uma garotão em cima duma motorizada, escapamento aberto, a fazer uma berrata ensurdecedora: rrróóóó, rrrróóó... o que sem dúvida incomodou os jogadores e com certeza muito mais a mamãe a ser, lá em cima. O garotão virou ali na (ex) Bernardim Ribeiro, seguiu e... sumiu.
Não tarda um minuto, volta o motoqueiro com o mesmo barulho alto e chato, e repete a graça ainda mais duas vezes.
Nós já estávamos com vontade de esticar um arame mais ou menos pela altura do pescoço do barulhento, mas nem tínhamos o dito arame nem pensamentos assassinos.
À quarta passagem o dito e estúpido corredor, ao fazer a curva para a Bernardim, derrapou, esbarrou num poste de iluminação pública e caiu.
Nós ouvimos o barulho do acidente, largámos as cartas, corremos para socorrer o miserável que tínhamos vontade de estrangular! O dito estava caído e a motoca torcida ainda com uma roda a girar.
Não parecia ferido. O Xico d’Água perguntou-lhe se estava ferido e se precisava de ajuda.
O moleque mexeu-se, sentou-se, mesmo no chão, e disse:
- Não. Estou bem.
Cerrando os dentes para conter a raiva, o Xico aproxima a cara do acidentado e, voz rouca mas muito sonora, diz-lhe:
- Aarrrr! Que pena!
Já ninguém sabe dizer ao certo, a que horas, mas pouco depois do motoqueiro se ter esfolado, quem aparecia neste mundo de tormentos era a segunda menina do “ex-nunca-arcebispo” e sua Magdala.
Certamente umas palmadas na bundinha da criança para que ela logo mostrasse que não fazia tenções de viver de boca fechada, as comadres vizinhas e parteira cumprimentavam-se, e o honorável  e babado papai abria mais umas Cucas.
Não tardou a ser batizada e os padrinhos (por delegação) da Maria, apadrinharam também a novel Ana, nome que, carregado de significado, a colocava sob a proteção da Mãe de Nossa Senhora.
Todos sabem que os padrinhos eram de 2ª, mas sempre considerados como os verdadeiros, com primazia, e como irmãos dos progenitores das mininas.
Quando por qualquer circunstância em casa de algum faltava, por exemplo, batata, ou açúcar o que fosse, havia sempre o recurso de pedir ou ao cozinheiro ou a algum dos filhos que fosse a casa de um dos vizinhos tios e pedisse um empréstimo do bem em falta. Grande comunidade.
Naquele bairro passavam-se coisas curiosas. A parede da frente da casa nr. 3, para que a ventilação da dita se fizesse bem, e fazia, era de tijolo aberto, aqueles em “X”, o que permitia que volta e meia lhes entrasse na sala um gato que não era nada bem vindo. Entrava o gato, corria-se com a gato, mas o raio do bicho era teimoso e voltava todos os dias.
Nessa altura o “patrão”, além das armas de caça, que muitas e variadas possuia, tinha uma pistola dada pelo sogro, uma FN 35mm, que não matava nem pensamento ruim, e uma noite decidiu levar a arma para a mesa, ao jantar, aguardando a hora a que o felino visitante costumava aparecer.
D. Bela, quem o vê primeiro, em silêncio faz sinal com a cabeça, indicando que o invasor já ali estava.
O preposto atirador agarra na insignificante pistola, mas quando apontou tinha uma cadeira mesmo no meio da mira!
Torceu-se, tentou mirar melhor, disparou, um bom estrondo, porque o chão era de azulejo e não havia tapetes (nem razão para isso) que ecoou por toda a casa. O felino deu um elegantíssimo salto, apanhou um tremendo susto e saiu correndo. Nunca mais o vimos. A inspeção que se seguiu encontrou a bala alojada na porta de entrada... sempre aberta!
Os anos foram passando, todos mudaram para casas maiores e melhores, os petroleiros, um foi mandado para os Açores e o outro para Nova Lisboa e depois Portugal, Magdala e António ainda tiveram mais uma cria, o Zé, que só não teve os mesmo padrinhos porque estes estavam em Portugal, e os padrinhos por sua vez ainda viram aparecer-lhes mais cinco filhos, ficando com uma carga notável.
Tudo foi correndo até que o miserando vinteecincobarraquatro lhes acabou com aquela vida de África. Todos saíram de lágrimas nos olhos e o Brasil foi quem logo os acolheu.
Nessa altura a menina Ana estava já com uns 15 anos. Bonitona. Estudou e psicologou.
Não demorou a aparecer-lhe um príncipe Gonçalves com quem trocou juras de amor eterno, papai e mamãe arranjaram-lhes um principesco casamento em Portugal, onde estava o “grosso” de ambas as famílias, mas após as luas meladas, voltaram ao “país do futuro”.
Esperaram um pouco para que ambos se estabilizassem nos competentes trabalhos e ela criasse mais experiência nas psicologuices. Uns poucos anos depois, ainda na capital industrial do Brasil, São Paulo, chega-lhes a primeira minina, seguida de uma outra.
Do lado do escrevente e sua Belíssima esposa que já começavam a capengar, a turma também crescia e se multiplicava, apresentando netos e netas aos, babados com a descendência brasileira, e continuam os neófitos luandenses um a ser padrinho de uma, outra a ser madrinha de um, fortalecendo uma amizade que ultrapassa os foros de amigos para continuarem irmãos.
E a terceira geração nunca mais viu Angola! Nasceram no Brasil, aprenderam o requebro do samba, e só sabem da vida de África pelas histórias contadas, não à fogueira, mas talvez no ar condicionado.
Mais anos passam.
Menina Ana mais seu Gonçalves, duas filhas invejáveis, surge-lhes uma oportunidade e se mandam para a velha metrópole, onde prosseguem com sucesso as suas profissões.
As mininas crescem e dois jovens de qualidade e nacionalidades diversificadas, não tardaram a conquistar as atraentes garotas.
Chegou entretanto uma data a comemorar e decidem que é aqui, no Brasil, onde vivem os dois padrinhos das duas filhas, que vêm festejar a entrada no sexagenarismo matriarcal.
Ainda há dias andava o motoqueiro a perturbar o descanso da mamãe/vovó que se preparava para aliviar o barrigão, e aquela menina que nasceu no bairro da CAOP, veio festejar importante data, com o seu clã e com os compadres-irmãos no Brasil.
Chegou no Carnaval. Desfilou numa Escola de Samba (aguentou, divertiu-se e resistiu) diz que apareceu até nos jornais e na Tv e quase assinou contrato de Porta Bandeira com uma das famosas Escolas de Samba, depois deu um passeio de mar alto no glorioso “Mussulo” com outro compadre o grande mestre doutor e navegador de longo curso Guilherme Manim.
Isso é festejar a vida. Vivê-la com intensidade, porque passa tão depressa...
Longa vida a todos.
Já aqui não estarei, mas quando os últimos afilhados fizerem, eles, 60 anos, que se  juntem em outra grande farra.
Pode ser em Portugal, Canadá ou, porque não, novamente no Brasil e seu Carnaval. O tempo passa rapidinho e faltam só uns 30 anos!
É fácil: manter a amizade, cada vez mais viva.
Beijo a todos. E que ainda por aqui possamos estar quando a minina da CAOP festejar os oitenta! Os cem... não vai ter os padrinhos!

01.03.2020

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