domingo, 8 de março de 2020


Um pouco de

Um pouco de música e reescrevendo um texto de 1997.
Porquê? Quem não gosta de música... boa?
Jovem, adolescente, comecei cedo a gostar de música clássica, possivelmente influenciado por minha mãe que em jovem tinha sido exímia no piano mas nunca quis seguir a vida de pianista. Ainda hoje fazem parte da minha escolha os grandes músicos de que todos gostam, como Tchaikovsky, Rimsky-Korsakov, Borodin, os Cossacos do Don e outros conjuntos corais, lá das bandas onde depois os bolcheviques tudo ou quase deterioraram... menos a música, a seguir  ninguém passa pela Polónia sem os Noturnos e as Polonaises de Chopin, ou na Hungria com Liszt, na Alemanha uma fartura desde Bach a Mozart e Wagner um tanto pesado, mas com coisas magníficas) o Grande Beethoven e o modernista Carl Orff, e o alemão-inglês Haendel, em França pouco mais do que Bizet e Massenet (o Bolero de Ravel, tão tocado, é uma chatice), a Itália com os magníficos barrocos Vivaldi, Pachebel e outros e depois com os grandes das óperas, Verdi, Rossini, Puccini, Leoncavallo, Turandot, Mascagni e mais uns tantos, da Espanha o mais que estupendo Flamenco e Joaquin Rodrigo, e chegando a Portugal, o Fado. Fado que vivi tanto que até cheguei a ser um medíocre guitarrista!
Tenho ainda três discos 33 rpm, com o “Messias” de Haendel, comprados em saldo, em Benguela em 1956, com a melhor gravação de tudo quanto tenho ouvido. Da PYE, inglesa!
Já mais adolescente, nas festinhas, eram minhas favoritas músicas calmas para dançar aconchegadinho: slow, tango, passo-doble e pouco mais. Nada de rocks ou twists.
É evidente que depois entraram Jacques Brell, Aznavour, Piaff e tantos outros...
“Descendo” para África, por organização geográfica de latitudes, começo por sonhar com as Mornas e Coladeiras de Cabo Verde, uma beleza.
Por fim cheguei a Angola indo, em 1954 para Benguela. E vou repetir um pouco do que escrevi em 1997.
Falar da musicalidade de África, sobretudo do ritmo dos negros, é pleonasmo! O africano tem o ritmo no corpo, na alma, na vida. Levou com ele essa musicalidade que lhe é congénita para todos os lugares do mundo para onde a diáspora os carregou.
Criou nos Estados Unidos os blues, o jazz, o samba, o reggae, o bolero, a rumba e o mambo de Cuba, guardou em sua casa de Luanda a massemba, aquela sensacional dança das sembas, umbigadas, a rebita em Benguela, que ainda não há muitos anos se dançava em baile mandado por um marcador, às vezes em francês, como En promenade, Encore, etc., os batuques espantosos, a marrabenta em Moçambique, e muito mais ainda, que os eruditos de música já devem ter contado para quem se interessou em ouvi-los.
Mas há situações a que possivelmente poucos estudiosos de música tenham tido oportunidade de assistir, como eu, na África do Sul, numa fábrica de equipamento agrícola, seção de caixotaria, de onde praticamente tudo era expedido embalado em caixotes ou grades de madeira.
Num armazém grande, meia dúzia de operários, preparavam esses caixotes. Recebiam as tábuas já cortadas, e de acordo com planos estabelecidos só tinham que as pregar para as transformar em caixas.
Cada homem em sua caixa, martelo e pregos para cada um. Todos em silêncio. A voz ali não fazia falta.
Um deles, à vez, dava a primeira martelada e logo em seguida, em ritmo de batuque, de dança, todos martelavam o mesmo número de pancadas nos pregos. Quando um terminava, terminavam todos. Novo prego, novo sinal de partida, mais um pouco de batuque, e por aí adiante.
Na visita que fiz a essa fábrica, acompanhado de mais oito visitantes, foi tal o meu espanto, admiração e entusiasmo por esse concerto de música que me deixei ali ficar uma porção de tempo, e acabei por me perder do grupo. Mas foi um espetáculo sensacional, e único, que não dá para esquecer.
Se fosse numa caixotaria de europeus, seis homens a martelar, ao fim de algumas horas esse pessoal deveria ficar surdo, com uma barulheira infernal, e mais os que tivessem a infelicidade de os ouvir. Mas em África não era assim. Aquele martelar não era barulho, era música.
Em Benguela, no pequeno cais do caminho de ferro, cinco homens, filhos da África negra, fortes, descalços, descarregando um vagão de milho ensacado, cada saco pesando sessenta quilos. Tiravam os sacos do vagão para os colocar num caminhão.
O mesmo tipo de música dos carpinteiros da África do Sul, só que desta vez os instrumentos musicais eram os pés! Sim, os pés.
Arrastando os pés no chão, o barulho que faziam era uma espécie de sshhii-ffuu.... sshhii-ffuu.... sshhii-ffuu. Difícil explicar por escrito um som diferente. Pior ainda um ritmo para quem nada sabe de música, nem ler uma pauta! Tentem lembrar o som que faz uma locomotiva de caminho de ferro, das antigas, a vapor, que no Brasil chamam de Maria Fumaça. É algo como sshhii...ffuu... sshhii...ffuu... e aí vai o trem! No mesmo ritmo e imitando maravilhosamente essas locomotivas, assim aqueles homens iam descarregando o vagão. Um, dentro do vagão para ajudar a levantar os sacos que os outros colocavam nas costas. Quando todos estavam prontos um deles fazia o primeiro sshhii... com o pé, e lá iam os quatro imitando o Maria Fumaça lá da terra, começando por compasso mais espaçado para irem acelerando até ao caminhão! Tal como faz o comboio quando começa a andar!
Fiquei ali um bom tempo, esquecido do resto do mundo que me rodeava, a apreciar este outro espetáculo, aquele ritmo incrível, inusitado, super original, que os homens faziam com a mesma naturalidade com que respiravam! Lembro que acharam graça ver-me a apreciá-los e ainda capricharam mais, se possível isso fosse! Trabalho pesado que a música aliviava e disfarçava. Quem já viu brancos fazer isto?
E os Marimbeiros do Zavala? Em Moçambique, a uns trezentos quilómetros para norte da capital, fica a região do Zavala, célebre pelos seus marimbeiros. Marimbas, xilofones, feitas de madeira, algumas com dois metros de comprimento. Instrumentos lindos, com uma elegância e beleza de fazer roer de inveja os mais renomados designers! O som, o ritmo, a musicalidade dessas marimbas é alguma coisa que precisa ser ouvido. Não dá para descrever.
Um grupo de cinco, dez, vinte homens tocando todos ao mesmo tempo as suas marimbas é um concerto inesquecível, digno de se apresentar em qualquer Carnegie ou Albert Hall por esse mundo fora. Entusiasmaria um Bach, um Mozart e até Beethoven.
Em África até o vento quando passa nas imponentes mulembas nas banzas dos sobas, agita as suas folhas ao ritmo quente e tranquilo do sol poente. Sem cadência é que não se pode passar. Seria uma ofensa ao compasso do coração d’África.
Quissange é um pequeno instrumento de música africano. A descrição deste instrumento para quem nunca o viu é o mesmo que descrever o gosto de um fruto a quem também nunca o viu nem provou.
A minha primeira ida para África, para Angola, foi de navio. A viagem de Lisboa para Luanda demorava dez dias, passando ao fim de dia e meio na Ilha da Madeira, no Funchal, e seis dias depois em São Tomé.
A Madeira é um jardim acidentado, florido, alguns lugares mais altos com vistas deslumbrantes, comida e vinho de primeira ordem, magníficos hotéis, um clima temperado sempre muito agradável o ano inteiro e por ser uma das jóias da coroa portuguesa foi objeto de diversas tentativas de roubo por parte da Inglaterra que chegou um dia a apoderar-se da ilha. Roubou-a, ocupou-a, hasteou ali a sua bandeira, mas pouco tempo depois foi obrigada a arriar a sua arrogância e devolver aquela maravilha. Os ingleses sempre foram uns grandes sócios, ladrões, de Portugal!
São Tomé é outro jardim, mas um jardim em plena linha do equador. Parece um cone perdido no meio do oceano, com o seu ponto mais alto que se eleva a 2024 m. Devido ao calor equatorial tem sempre nuvens mantendo as terras baixas abafadas, muito úmidas. A temperatura não é muito elevada, mas o ambiente sempre saturado de umidade, permite que se desenvolva uma vegetação exuberante. Exuberante e luxuriante.
Quando se avista do mar aparece por cima dessas nuvens o pico, e lembra, visto de longe um imenso chapéu mexicano. Vive, mal, da agricultura, tendo já sido o maior produtor mundial de cacau. No meio das plantações nascem antúrios, begónias e outras maravilhas que se capinam para limpar o terreno! Ao longo dos caminhos daquelas plantações, sobretudo de cacau e café, cheira a baunilha, apanham-se cocos e bananas, e vê-se a água correr encosta abaixo, sempre límpida, mesmo nas épocas em que pouco chove. É inesquecível um passeio por dentro de São Tomé. É como entrar numa estufa de plantas exóticas, só que ali os únicos exóticos somos nós! Os homens.
Quando embarquei em Lisboa, fui convidado para me sentar durante as refeições à mesa do comissário, o mais antigo de todos os comissários dos navios portugueses, que poucos anos passados se aposentou. Era um homem que conhecia o mundo, por onde navegou dezenas de anos.
Naquele tempo a Europa não estava, como hoje, abastecida de frutos tropicais frescos, com exceção da banana que se cultiva em zonas temperadas como Madeira, Açores e Canárias.
Em todas as escalas o navio se reabastecia de produtos locais para alimentar passageiros e tripulação, e apresentar novas alternativas para variar e melhorar o cardápio.
Depois de sairmos de São Tomé, à noite, durante o jantar, o comissário, sabendo que alguns dos convivas da sua mesa nunca tinham estado em África, disse:
- Creio que aqueles que vêm para África pela primeira vez vão comer um fruto tropical que lhes é desconhecido. Só queria pedir-lhes um favor: que o provem e me digam a que sabe.
Ficámos curiosos, e quando serviram a sobremesa lá apareceu uma espécie de melão vermelho, que de fato alguns dos convivas, como eu, nunca tinham visto. Cor bonita, muito mais que o melão de cor insípida, e quantas vezes de gosto também, e apesar de não ser muito polido cheirar a comida à mesa, havia que fazê-lo face à novidade e ao pedido do comissário. Para dar opinião sobre o paladar tem que se associar o olfato! Cheiro agradável. Provámos, e a todos soube muito bem. Era diferente. Ótima textura, fresco, sabor muito agradável. Está-se mesmo a ver que era mamão, ou papaia, como queiram.
- Digam-me lá a que sabe.
- A mim sabe-me a... flores.
- Tem graça - diz o comissário - ando por aqui há mais de trinta anos e nunca me souberam responder a esta pergunta. Realmente sabe mesmo a flores!
Foi a melhor comparação que consegui encontrar porque todo o aroma agradável normalmente provém de flores. Hoje sei muito bem que sabe mesmo é a mamão, que como todos os dias!
Algo parecido se passa com um quissange. Um instrumento tipicamente africano, só com oito ou nove notas musicais, sem nada que se lhe possa comparar no chamado mundo ocidental, nem me consta que seja tocado em orquestras ou conjuntos mesmo os modernos.
E o som? O som é produzido pela vibração das nove ou dez pequenas hastes de ferro forjado amarradas com arame recozido a uma base de madeira. Numa das bordas dessa base tem, enfiadas num arame mais forte, umas pequenas argolas de folha metálica que recebem a vibração e a transmitem à caixa de som. Toca-se com os polegares nessas hastes, como quem toca uma corda de violão, ficando os restantes dedos com o encargo de segurar a base de madeira que se pressiona encostada a meia cabaça, seca, que funciona como caixa de ressonância.
Deu para entender? É difícil.
O som produzido é dolente, tranquilo e suave como a brisa daquele mar generoso de Angola que todas as tardes sopra para terra.
Pouco tempo depois de ter chegado a Luanda, onde desembarquei, fui para Benguela, primeira cidade onde vivi em África. Cidade antiga, fundada em 1617, com porto pesqueiro e linha férrea, que naquela época teria poucos mil habitantes. Cidade pequena, plana, calma, e que ficava ainda mais bonita quando a maioria das árvores que sombreavam as suas ruas se cobriam de flores.
Cidade que descansava de noite com o silêncio e a brisa fresca vinda do mar.
Enquanto não aluguei casa para morar, hospedei-me num hotel que ficava no mesmo prédio do meu local de trabalho. Edifício novo, de dois pisos, sendo o térreo metade comercial, a outra metade com o restaurante do hotel e em cima os quartos. Hotelzinho simples, limpo, confortável.
Durante a noite à entrada do hotel ficava um guarda. Não havia necessidade de guardar o que quer que fosse, porque a vida era muito tranquila. A vida em Benguela era simples.
A primeira vez que me sentei numa esplanada para beber uma cerveja, ainda só importada porque não havia fabricação local, alemã ou holandesa, St. Pauli Girl ou Heinneken, as mais comuns nessa época, quando perguntei quanto devia, o criado, que não sei se alguma vez me tinha visto, traz-me um pequeno bloco de folhas em branco e um lápis.
- Para que é isto?
- P’ra pô na conta.
- Para pôr na conta de quem? perguntei brincando.
Mostrou os dentes alvíssimos, rindo.
- Na conta do pátrão.
Nesse caso o patrão era eu! Toda a gente punha na conta, e no final do mês peregrinava pelas lojas onde tinha feito despesa, e pagava. Pagavam quase todos, uns com mais pontualidade do que outros, como sempre ocorreu e vai continuar. Raro alguém andar com dinheiro no bolso, e mais raros os que tinham o crédito... desacreditado. Tudo era feito na base da confiança. Imaginem como eram belos esses tempos.
Voltemos ao guarda do hotel. Talvez fosse para guardar a segurança psicológica dos hóspedes. Quem sabe? Ou como diz o grande Neves e Sousa num poema de sobre Benguela que

...os guardas da noite só guardam a noite
morna e negra, comprida noite tropical...

Sékulo, preto véio, chegava silencioso ao princípio da noite e com a mesma humilde mansidão ia embora de manhã.
Sentava-se em cima de um velho luando no degrau da entrada do prédio, encolhido, os joelhos quase encostando nos queixos, e envolto num também já coçado cambriquito ali ficava a noite toda.
Para não adormecer tocava no seu quissange. Música? É difícil chamar música ao que ele tocava. Talvez melodia ou ritmo. Nem isso. Simplesmente sons com uma cadência agradável mas monótona. Sempre muito igual acabava sendo incrivelmente monótono. Um chorinho triste, não o Chorinho musical brasileiro, este sim, alegre, mas, como dizia Vinícius de Morais, um chorinho de velhinho moribundo, né?
A janela do meu quarto ficava bem por cima da entrada. África, calor, no tempo em que ar condicionado estava a dar os primeiros passos só no mundo dos ricos, e Angola era dos pobres, só se podia dormir com a janela toda aberta. Apesar dos meus vinte e poucos anos, boa saúde e somente algum nervosismo, normal para quem chega a um novo continente e vai começar nova vida profissional, sem conhecer vivalma naquela cidade, o sono não era tão profundo que não desse para escutar de vez em quando aqueles sons, uma espécie de gemidos, mesmo que suaves, mas sons, ininterruptos, e de timbre desconhecido. Sons que de começo até davam sono, mas o melhor som para dormir sempre foi o silêncio total, depois que se calaram as canções de ninar das nossas mães.
Acabei por ir à janela espreitar o que se passava, e ali mesmo por baixo, um vulto escondido debaixo de um pano, de formato estranho, emitia esses sons. Não disse nada, não fosse interromper a criatividade de algum génio musical, mesmo ignorado pela crítica, e adormeci.
De manhã cedo quando fui matabichar ainda ali estava o músico.
- Bom dia.
- Bom dia, pátrão.
Elogiei a sua aptidão musical, e pedi que me mostrasse o instrumento.
- Como se chama isto?
- Quissange, pátrão.
- Gostei. Toca mais um pouco para eu ver como é, toca?
Sorridente se prontificou. Deve ter sentido o mesmo orgulho de Chopin quando príncipes lhe pediam, por favor, que tocasse para eles! Eu estava curioso para ver como se fazia sair som de tão estranho objeto.
Depois de mais uma pequena exibição, interessante, perguntei-lhe se me venderia o quissange. Hesitou, mas por fim, uma nota já não sei de quantos angolares não teve dificuldade em convencê-lo.
É ver a ilustração. O meu quissange há 66 anos!


A partir dessa noite o silêncio na rua foi magnifico, apesar da alguma falta que faziam aqueles lamentos!
Esse quissange até hoje faz parte daquilo a que enfaticamente chamo a minha pequena coleção de recordações, curiosidades, para mim preciosidades, africanas. Meia dúzia, mas minhas, e importantes.
Não tardou a arranjar casa que aluguei, e o mesmo guarda, que eu via quase todos os dias por ter o meu trabalho no prédio do hotel, continuou tocando a sua melodia com um novo quissange, feito por ele, e assim voltou a embalar as noites de outros hóspedes com sono mais pesado e menos interessados em colecionar objetos curiosos.

Escrito em 1997
Reescrito em 26/02/20


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