terça-feira, 25 de fevereiro de 2020



           
A cadeira do “Garrett”
História que começa no sec. xvi ou xvii

Começo por repetir o que escrevi há dez anos, e segue com novas descobertas.
Vou aproveitar e contar a “aventura” de uma cadeira, que envolve um bocado bom de história.
O rei D. Fernando II, marido da D. Maria, também II para não destoar, filha de D. Pedro I e IV (a razão de ser 1º no Brasil e 4º em Portugal tem por base a diferença dos fusos horários entre os dois países, nas épocas do ano em que, oficialmente, no Brasil, o sol nasce três horas depois de Portugal ou de Greenwich), quando o grande poeta Almeida Garrett morreu, terá adquirido a cadeira onde este se sentava para escrever, e querendo homenagear o meu bisavô, o poeta, dramaturgo e o grande biógrafo do Garrett, Francisco Gomes de Amorim (1827-1891) ofereceu-lhe essa cadeira de presente.
E em casa do meu avô tinha lugar de destaque, sempre referida como “a cadeira do Garrett”.
Um dia essa cadeira veio para as minhas mãos, conservado o nome de “batismo” e estimada como sendo verdadeiramente a cadeira do Garrett. Uma cadeira trabalhada, de espaldar, com assento, costas e encostos dos braços estofados, que nos acompanhou para Angola. O estofo, velhinho, entretanto foi-se acabando. Em finais de 1960 comprámos uma bonita seda chinesa, que deveria ter emprestado à dita um ar quase museológico, e mandámo-la para o estofador.
De repente a Cuca decidiu que eu ia para a Europa fazer diversos cursos e estágios, e a cadeira ficou no estofador e marceneiro, que não a aprontou antes de sairmos de Luanda.
Enquanto estávamos na Europa, em Março de 1961, começou o chamado terrorismo, que no primeiro embate afetou profundamente todas as estruturas, tranquilas, estabelecidas em Angola, e o estofador, comigo ausente, sem sequer saber se eu regressaria a Luanda, como aconteceu com muita gente, pendurou a cadeira no vigamento do telhado da marcenaria à espera de...
Logo após o meu regresso, em Julho, a cadeira que padeceu uns quantos meses ali pendurada, perto das telhas, com o calor e umidade do clima, um dia despencou lá do alto, as peças descoladas, pernas para um lado, braços para outro, encosto... etc., e assim foi deixada pelo confuso e desarrumado chão da tal marcenaria. Com a preocupação do salve-se quem puder que era a lei em Luanda naqueles tempos tresmalhados, meia dúzia de paus do que tinha sido uma cadeira, foram totalmente ignorados. Quando fui saber dela, o homem olhou para o telhado, ar de idiota e diz-me:
- Estava ali!
- E agora?
Tudo quanto conseguimos salvar foram estes pés.
Corremos a marcenaria toda, mas nada mais apareceu. Confesso que tive um desgosto grande com o desaparecimento dessa herança.
Mas como não há bem que sempre dure nem mal que não acabe, acabámos esquecendo a dita cadeira.
Há pouco tempo, entre os papéis do espólio do bisavô que só muitos anos depois do desastre cadeirífero me foram entregues, encontrei a descrição pormenorizada da dita cadeira, e como o D. Fernando lha tinha oferecido.
Analisei e rememorei com cuidado a defunta, e conclui que a descrição não coincidia, porque faltavam algumas características importantes, como os braços terminarem em cabeças de leão, quando a nossa tinha os braços simplesmente torneados.
Moral da história: a cadeira que morreu no estofador de Luanda não era a cadeira do Garrett!
Onde andaria? Não sei que sumiço terá levado, muitos, muitos anos antes, até porque nos apontamentos do meu avô, não o bisavô poeta (isto é um tanto confuso porque era tudo Francisco G. de A.), não consta qualquer móvel que tivesse pertencido a Garrett.
Depois de mais pesquisar acabei descobrindo nos mesmos apontamentos do avô, que ele tinha um cadeirão de braços, a que chamava cadeira Farrobo, por ele comprada em Abril de 1912 por 5.690 reis! Terá sido do Conde de Farrobo, o homem que criou o Jardim Zoológico, e que um dia, como acontece a todos... morreu? Os animais do zoológico ficaram entregues a ninguém, o palácio abandonado e as mobílias devem ter-se vendido. Seria esta cadeira dali?  Qui lo sai?
Que a tal cadeira tinha mais cara de Conde de Farrobo do que de Visconde de Almeida Garrett, lá isso tinha!
Foi minorado o desgosto histórico, tranquilizou-se-me o espírito que se sentia comprometido perante o bisavô, mas ficámos na mesma sem uma cadeira. Bonita e com razoável presença, que se estivesse hoje no meu escritório me emprestaria um ar mais austero, quem sabe se até romântico do século já repassado!
Desse romantismo o único detalhe que me resta é a barba que já tenho há mais de quarenta anos!
Nota.- Salvou-se a seda, linda, que ainda hoje jaz, impecável, numa gaveta... sem qualquer serventia! Mas que é bonita, lá isso é.

Rio, 25/09/00

Conforme a data atrás assinalada, e verdadeira, era isso o que eu sabia naquele tempo.
Mas continuando a rebuscar dali e daqui encontrei agora a
História (quase toda) da Cadeira do Garrett

Quando o FGA (bisavô) mandou encadernar o poema
A FLOR DE MARMORE ou AS MAVILHAS DA PENA EM CINTRA
 editado em 1878, encadernou junto uma CARTA FAMILIAR escrita pelo seu amigo ABÍLIO AUGUSTO DA FONSECA PINTO (1831-1893) dedicada ao amigo deste, Doutor José Epiphanio Marques (1831 - 1908) em 1879
Uma pequena passagem na Advertência que FGA à laia de prólogo do seu poema
O encadeamento dos montes, de que se compõe  a serra de Cintra, visto das maiores alturas. Tem o aspecto de um imenso ramalhete irregular. A maioria dos seus cabeçosou picos apresenta a forma de flores pyramidaes, mas nenhuma com tanta similhança como aquele em que foi edificado o palácio real de Cintra.
Assim explica o autor d’este modestíssimo poemeto a razão porque lhe deu o titulo de Flor de Marmore.  
... Seria monstruosa ingratidão calar aqui os motivos que inspiraram a dedicatória d’este humilde poemeto. Por pedido da ilustre e generosa dama, para quem ele foi expressamente escripto, dignou-se Sua Magestade El-Rei o Senhor Dom Fernando brindar o autor com um objeto histórico preciosíssimo...
Na página seguinte:
À  ILLUSTRISSIMA  E  EXCELLENTISSIMA  SENHORA
CONDESSA D’EDLA

A Carta de A.A. da Fonseca Pinto, depois de fazer rasgados elogios ao poeta e ao poema, onde reproduz boa parte dele, termina assim (guardada a ortografia da época!)

Meu amigo.
Tenho-lhe falado de Cintra e dos seus poetas; não digo bem, de alguns dos seus poetas. E citando-lhe A FLOR DE MÁRMORE, produção d’um prezado amigo meu, consinta que lhe explique, nos limites circunscritos d’uma carta, as origens deste poemeto.
Ora ouça a invocação, dirigida a senhora Condessa d’Edla:

Senhora: se os colossos da floresta
Aos céos enviam divinaes perfumes,
Também o agreste cheiro da giesta
Ousa humilde subir aos pés dos Numes. *

Se o sol, que é vida e alma do universo,
Não desdenha aquecer o ínfimo insecto,
A vós do rude bardo implora o verso
Calor e luz de generoso affecto.

Gota d'água levada pelo vento;
Modesto aroma d'uma flor cahida;
Nem tanto valerá meu pensamento;
Mas inspira-o uma alma agradecida.

Aqui temos a gratidão servindo de musa; o poema é um bilhete perfumado de agradecimento. As aguas de Hippocrene aquecem-se sob o influxo d'um nobre affecto. Seria monstruosa ingratidão, diz o auctor, calar os motivos que inspiraram a dedicatoria d'este humilde  poemeto. Por pedido da illustre e generosa dama, para quem elle foi expressamente escripto, dignou-se sua majestade el-rei o senhor D. Fernando brindar o auctor com um objecto historico, preciosissimo como obra d'arte e como recordação saudosa - a  cadeira  monumental  de seu mestre, o grande poeta Almeida Garrett.
Mas ha melhor ainda; ainda melhor do que o autor, explana numa carta que ha dias recebemos a historia do poemeto e a descripção da cadeira abbacial. É de pessoa  d'elle  muito  conhecida, e a nós ambos muito cara.  D'ella  extractamos  os  períodos seguintes:
“... Esta cadeira abbacial, como a denominava  Garrett,  dizia elle que pertencera a seu tio o bispo D. Frei Alexandre da Sagrada Familia, e ao ultimo ou penultimo abbade do mosteiro de S. Bento, de Lisboa. Adquirindo-a, o poeta restaurou-a e deu-lhe mais grandiosa fórma do que tinha  primitivamente. Gomes de Amorim, em vida de Garrett, teve  sempre especial predilecção pela belleza artística d'este movel e sua commodidade; e apossava-se d'elle de preferencia, quando entrava no escriptorio d'aquelle que foi o seu melhor amigo e mestre,  que  lhe  serviu até de pae.
Antes de cahir de cama, foi nessa cadeira que o immortal auctor do Camões e D. Branca, depois de ter regressado de Belém para a rua de Santa Isabel, casa que hoje mostra o numero 78, suportou as primeiras agonias do doloroso drama com que terminou a sua gloriosa existencia.
“Por morte de Almeida Garrett foi a cadeira comprada em leilão para el-rei D. Fernando. Durante vinte annos sonhou Gomes de Amorim com a posse d'este objecto, tão precioso para as suas recordações e saudades. Ouvimos-lhe dizer que, apezar de pobre, teria feito todos os sacrificios para adquiri-lo, se estivesse noutras mãos. Obte-lo, porém, do rei-artista, sincero admirador de  Garrett, e amador de todas as preciosidades dignas de estima, pareceu-lhe sempre impossível. A Condessa  d'Edla, sabendo  d'estes  desejos, e da enfermidade que o poeta ha longos annos padece, inspirou compadecida a seu marido generoso pensamento de lhe offerecer a cadeira monumental de seu mestre, tornando-se assim a boa fada que realisava uma aspiração, considerada como sonho ou devaneio de poeta. Era isto em janeiro de 1876. D. Fernando foi immediatamente com  a Condessa ao palacio real da Pena, onde estava a cadeira, remetteu a para Lisboa, e brindou com ella a Gomes de Amorim. E quando este foi agradecer-lhe tão valioso mimo, dirigiu-lhe palavras benevolas e delicadas, com o intuito generoso de diminuir a importancia da dadiva, asseverando-lhe que possuía outros objectos do immortal poeta, e que a cadeira a ninguem  devia pertencer com mais direito e justiça do que áquelle que fôra seu discípulo predilecto e amigo dedicado, em cujos  braços expirara o auctor de Fr. Luiz de Sousa.
Só os príncipes, verdadeiramente grandes pelo coração e pela intelligencia, sabem practicar d'estes actos.”
“Desejoso o poeta de mostrar-se reconhecido a este testemunho de consideração e benevolencia, e sabendo quanto D. Fernando ama a sua magnifica residencia da Pena, lembrou-se de celebrar num pequenino poemeto, consagrando-o á Condessa d'Edla, aquella encantadora vivenda”.
“Em quanto a cadeira é toda de páo sancto, estofada de  damasco de seda carmezim, e de alto espaldar, formado por duas grossas columnas, torneadas em espiral, unidas em cima por um bello ornato que representa um barrete de abbade. As costas têm 1 metro e 60 centimetros de altura. A frente é composta de dois formosos leões, de pé, que são de primorosa esculptura, tendo 71 centímetros de altura, com azas que formam uma especie de segundo braço, o que torna o movel commodo e confortavel. A moldura que compõe o assento mede, na frente, 68 centímetros de intervallo entre os peitos dos dois leões. O aspecto geral é elegante e majestoso, e ostenta a apparencia d'um throno. Este movel, verdadeiramente historico e monumental, pertenceu a Garrett por espaço de dezoito annos; vinte annos ao senhor D. Fernando, e há quasi tres que pertence a Gomes de Amorim »
Nunca fui a Cintra, meu amigo; e tenho-lhe escripto d'ella como se fosse de velho conhecimento! Conheço a serra apenas pela fama, o que não é pouco, porque a tradição e a poesia a enfeitam e descrevem de modo que o mesmo é vê-la que ouvir as duas. O Camões imagina-a com as suas naiades escondidas nas fontes, e ainda assim accendendo nas aguas fogo ardente sem lhes valer o asylo contra enredos do amor. O Garrett embrenha-nos por bosques onde o louro inda viceja com a gloria de D. João de Castro, ou sentado no musgo das encostas espairece olhos satisfeitos por larga extensão de plainos. E nós, que ainda juramos sobre taes evangelhos de tão queridos poetas, phantasiamos na mente fontes encantadas e Dodonas venerandos, um eden glorioso, como lhe chama e attesta o poeta inglez.
Não devo por isso adeantar-me mais. Se ainda um dia subir á afamada Cynthia... então... pode ser que lhe escreva nova carta.
O que desejei principalmente foi recommendar-lhe o poemeto de Gomes de Amorim, que é um poeta notavel pela espontaneidade, e prosador muito ameno. Temos d'elle versos, dramas, romances  e  viagens.  Antes  de  conhecer  o  homem,     conhecia o escriptor. Era eu criança, e nas minhas primeiras leituras quasi que aprendia o meu abecedario poetico com poesias d'elle, insertas no Jardim Litterario. Continuei a vê-lo depois noutros jornaes e livros, na Revista Universal, no Panorama, no Archivo Pittoresco, nas Artes e Lettras, e nas ultimas publicações com que tem adornado a nossa litteratura.
Ha annos fui  pela  primeira vez a Lisboa, e na primeira recita a que assisti no theatro de D. Maria II foi o Odio de Raça que me patenteou o merito artistico de Tasso, de Delphina, de Emilia Adelaide e Theodorico, interpretando os magníficos characteres, que estão dispostos com rara habilidade naquelle lindíssimo drama. E é effectivamente no drama que mais se distingue o nosso poeta; o Odio de Raça, o Cedro vermelho e Os herdeiros d'um millionario honram singularmente a litteratura, tanto portugueza como brasileira.
Mas leia o poemeto, meu amigo, e depois me dirá a sua opinião. Desculpe a extensão da minha carta, e creia-me  sempre  seu  devoto, grato e affectuoso,
A .  A.  da  Fonseca Pinto.

Notas finais:
Resumindo um pouco: se a cadeira pertenceu primeiro a um abade, e atendendo a que as Ordens Religiosas foram extintas em 1834, a cadeira seria no mínimo do século XVIII.
Se FGA, bisavô, recebeu a cadeira em 1876, seu filho, meu avô e também homónimo, deve tê-la conhecido e, certamente admirado, uma vez que só em 1877 emigrou para o Brasil.
Quando o poeta morreu, em 1891, meu avô, já com dinheiro, escreveu de imediato às irmãs que nada vendessem. Ele lhes pagaria o que fosse necessário.
Mas... naquele tempo não havia correio de avião, nem e-mails. Como a viúva e uma ainda filha solteira ficaram sem recursos, logo foi feito o leilão da biblioteca (valiosíssima) e de alguns móveis, E nessa voragem famosérrima cadeira do Garrett foi vendida a... quem? Perdeu-se lhe o rastro e nunca mais se soube dela.
Meu avô regressa definitivamente do Brasil a Portugal em 1899. Imagino, talvez sonhe, que ele terá procurado o paradeiro dessa relíquia, mas em vão.
Então em 1912, como está acima, comprou uma cadeira de espaldar que teria pertencido ao Conde de Farrobo, e por graça ou para manter a ideia viva, em sua casa ela passou a ser chamada a cadeira do Garrett.
Estamos a chegar ao fim da HISTÓRIA DE UMA CADEIRA, mas no fundo é a História De Duas Cadeiras.
Se o meu avô não conseguiu a cadeira do Grande Amigo de seu pai, Visconde... comprou a de um Conde!
E o 25 de Abril também com esta acabou!
21/01/2020

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