terça-feira, 28 de janeiro de 2020



O Parque de Monsanto
MIRADOURO-MOR DA CAPITAL

Já tenho aqui falado, no meu Pai, sobretudo em 19 de Abri de 2010, com uma breve resenha da sua vida, e um retrato, que quem quiser ainda pode ver neste blog - https://fgamorim.blogspot.com/search?q=o+meu+pai
Pesquisando entre muito papel, recortes, recordações que tenho guardado ao longo dos anos, fui encontrar um recorte do Jornal “Diário de Notícias”, Lisboa, de 13 de Junho de 1952, com texto da autoria do Dr. Alberto de Sousa Costa (1879-1961), magistrado e escritor, que a seguir transcrevo.


“Não vou descrever o bosque suburbano, tranquilizem-se. Os actos temerários também têm limite de idade. Desejo, apenas, com prudente regozijo, praticar um acto de desobriga.
Sinto-me obrigado a apresentar cum­primentos, em público, ao Parque de Monsanto - a que chamaria coroa de lou­ros da gloriosa Lisboa de hoje, se não temesse Sª Ex. o Conselheiro Acácio, ainda mais do que os inimigos certos e os amigos incertos, os «impávidos marotos» de Camilo. Tenho por dever trepar ás colunas cimeiras do Diário de Notícias para saudar, deste galarim, a floresta da serra cidadã - tu ca tu lá, com a Cidade, de 'braço dado com elá desde o Aqueduto das Águas Livres. E sinto-me vinculado àquela obrigação, convertida em obcessão após a última e recente visita ao bosque arrabaldino, que não chega a ser rústico, bosque quase urbano, por seu convívio diurno e nocturno com as Sete Colinas da comunidade ulissiponense; e estou cativo daquele dever, por esta razão plau­sível: porque, precisamente do alto das colunas do Diário de Notícias, várias vezes me permiti lembrar aos Mordomos da Cidade, Vereadores da sua fazenda, a efectivação da benfeitoria, por sua larga projecção económica, estética, recreativa e climatérica no património de todos nós.
É verdade. Amigo velho da Árvore, mi­nha irmã. segundo o linhagista S. Fran­cisco de Assis, devoto fiel da Cidade, mãe espiritual a quem devo as escassas luzes que me alumiam, dei-me sempre, desde que me alcandorei no Chiado, ao afã de conjugar o interesse da Cidade com as graças da Árvore. E perdi a conta ao número de vezes que do balcão altaneiro do Diário de Notícias pregoei os bens a colher do amável consórcio.
Daqui soltei brado insistente pela urbanização e arborização do baldio encra­vado no seio da Urbe, a que se dera o nome de Parque Eduardo VII. Afligia-me, como uma vergonha de família, a montueira subversiva, escrupulosamente man­tida no coração do aglomerado citadino - barril do lixo dos moradores do con­torno, baluarte invicto de revoluções e contra-revoluções periódicas, à espera, desde o começo do século, de que o investissem nas dignidades da cidadania.
Daqui supliquei, a quem de direito, in­dulto a favor do arvoredo da Avenida da Liberdade, condenado á morte por sofrer, alegava-se, de não sei que doença bacilosa - como se fosse crime de pena de morte,
para qualquer vivente, aquartelar bacilos no corpo.
A sentença foi publicada em 1937. Os julgadores dignaram-se ouvir a súplica - não por força dela, mas do Pretório que lhe impôs autoridade. Já lá vão quinze anos. E o arvoredo da Avenida, a des­peito do precipitado diagnóstico e da sen­tença sinistra, continua de pé, no seu posto de honra, sadio, risonho, umbroso, viridente, providencial - bálsamo consolador dos grilhetas da carestia da vida sujeitos á lava de Julho; albergue nocturno dos pardais das três freguesias adjacentes; máscara generosa de arquitec­tura pouco digna de lugar ao Sol na artéria primaz da Metrópole.
Em página oportuna, estusiante de hu­morismo, Mestre Francisco Valença, ma­go do riso que nos faz rir pelo menos uma vez cada semana, comentou o aconteci­mento numa caricatura a preceito - o procurador oficioso do arvoredo, nesta Mourama de arboricidas natos, a partir, iracundo, o machado executivo; as árvores a lançarem-lhe os ramos aos ombros, e a murmurarem, e a agradecerem:
- Obrigadas! Muito obrigadas! 
E foi igualmente daqui, desta selecta tribuna, que declinei, embati, e tornei a bater, duas, dez vezes, o acervo de van­tagens da transfiguração dos cabeços e pendores furunculosos da serra quase ur­bana em parque florestal. 
Meseta calcárea erguida á ilharga da urbe magnificente; plaga inóspita desde sempre relaxada ao escalracho e ao malfeitor, arborizá-la seria integrá-la na vida da colmeia humana, convertida á lei da economia colectiva e da sedução paisagís­tica - sedução, consoante rezam os códi­gos do turismo internacional, que repre­senta uma das maiores fontes de riqueza dos povos progressistas. Sim, meus amigos - amigos certos. Dar vida á serra, pela transfusão de vida das selvas, das ramagens, dos ninhos, dos no­vos seres que rompem das entranhas ha­bitadas pelas raízes, das novas espécies que brotam dos
flancos da terra em apojadura, seria a forma de atrair aos ca­beços virentes, aos pendores frondosos o interesse do natural, a curiosidade do es­tranho, o entusiasmo do contemplativo. Seria pôr a serra em perpétuo convívio com a Humanidade - concorrendo para a regularização das correntes atmosféricas do contorno; para a fixação do regime das águas locais; para o crescimento e bara­teamento de lenhas e madeiras a bem do rico e do pobre.
E a pôr em equação o somatório de benefícios da obra de fomento, atrevia-me a beliscar, com irónica irreverência, a fama clássica da visão fomentista de Pombal. Não, Pombal não enxergara, de tão perto, da rua Formosa, do seu palácio de Oeiras, quase debaixo das fraldas da serra. As melhorias e benignidades que a empresa lhe teria prodigalizado a troco de bem pouco, de lhe vestir os bureis, as sedas e os veludos tecidos pelos ramos e frondes.
De súbito, ali por volta de 1930, o Município de Lisboa anuncia a deliberação do povoamento florestal de Monsanto. Depois, dispõe-se a meter ombros ao acto grande na esfera silvícola, E, iniciado o acto grande, em boa entrega o governo da empresa à competência oficial, à sensibilidade requintada, ao coração magnânimo do engenheiro Gomes de Amorim – coração tão bom, com um fim tão mau, por força do trágico e brutal acidente de automóvel que o arrebatou à vida e ao fervor da sua obra, na companhia de Duarte Pacheco, fomentista para aquém e além de tudo.


Maio de 1938. À esquerda, o meu pai explicando ao Gen. Carmona, o projeto do reflorestamento de Monsanto.
À esquerda de Carmona o eng. Duarte Pacheco, na ocasião Presidente da Câmara de Lisboa

Perdão. Um parêntesis de dois segun­dos. Acreditai-me: ao evocar, nestas colu­nas, o nome de Gomes de Amorim, supe­rintendente dos parques e jardins do Município lisbonense, tenho a sensação de que todos os troncos, todas as ramagens da cidade e seu termo estremecem de co­moção e se quedam em sentido - gratos à memória do chefe que os isentou dos tor­mentos vandálicos do serrote da tesoura, que os emancipou dos tratos impostos por bárbaros escultores de monstros.
São veros escultores de monstros os podadores municipais que por esse País fora, de uma das mais belas obras da Criação, fazem obra cruel, horrenda e sacrílega - ruas, avenidas e praças povoadas  de troncos mutilados, de colégios de aleijadinhos, de procissões de penitentes, implorando em vão a misericórdia do Senhor!   
Em 1939, nas vésperas da minha reti­rada de Lisboa, Gomes de Amorim, sensível aos brados frequentes da minha pena no sentido da urbanização de Monsanto, conduziu-me lá acima, de automóvel. Fez-me observar, um por um, os talhões já cobertos de ramos - á data nos assomos tímidos da idade infantil. Subiu comigo ao coruto das lombas - proporcionando-me o encantamento panorâmico dos miradouros abertos nas cumeeiras. Levou-me aos viveiros do Município - dando-me a conhecer a maioria das  espécies lenhosas consignadas à florestação.
Tornei ao Parque de Monsanto no Abril deste ano - treze anos rodados sobre a primeira visita. E outra sensação, como­vedora como aquela anteriormente regis­tada, me acompanhou no curso da jor­nada. Percorri todo o vasto território na impressão de que seguia a meu lado, no carro que me transportou aos cerros ar­borizados, que subia e descia comigo a «montanha russa» das estradas e aveni­das entalhadas no cerne dos maciços, o arquitecto ilustre que delineou e lançou as bases do grande monumento silvícola e panorâmico da cidade.
Subimos a autoestrada, gilvaz rasgado no flanco da serra, sobranceiro ao Tejo. Entramos no dédalo sinuoso de carre­teiras e arruamentos que sulcam pendo­res e cabeços do Parque - giestas flori­das, todas ouradas!, em ranchos debru­çados dos taludes. Galgamos, rodopiando, serpenteando, os maciços lenhosos de cota superior. Assentamos pé, deslumbra­dos, no miradouro-mor da capital, com sua casa de chá a oferecer o beberete ao viandante. Inclinámo-nos á visão magnífica de Lisboa a escorregar das Sete Colinas, à esquerda. Observámos, em frente, Almada, a Arrábida; à direita, Carnaxide, Linda-a-Pastora, Linda-a-Velha. Deleitámo-nos a admirar o Tejo, ao fundo, no rodapé das quebradas, além inchado de glória, aqui mirrado de angústia – na majestosa soberbia da glória, ao depar-se-lhe a sumptuosidade de Lisboa, sua Senhoria, a encolher-se na dor e angústia suprema, quando mete a caminho de Cascais e da morte, que o aguardam lá em baixo, na baía fagulhante de lumes...”

Além da muita, imensa, saudade, é sempre reconfortante “ouvir” estas palavras.
Quando faleceu deixou sete filhos. O mais velho e o mais novo já estão em sua companhia. Os outros, velhotes, por aqui continuamos penando, e recordando.

18/01/2020



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