quinta-feira, 1 de agosto de 2019



O Calcanhar do Aquiles
ou
A Saga do Joelho Esquerdo

Coitado do Aquiles! Dizem que o cara era lindão, o mais belo dos heróis gregos, mas, enquanto o J. F. Kennedy foi a Dallas e levou-as, o Aquiles foi a Troia e levou uma flechada no calcanhar; morreu de morte matada.
É evidente que o calcanhar do Aquiles nada tem a ver com o meu joelho. No entanto este parece ser um dos meus, muitos, pontos fracos.
Vamos à história.
- 1 -
1953, mais ou menos aí por Maio.
Já despachado de estudos e dever cumprido como brioso militar, para defesa da pátria (que se veio a revelar pior que madrasta!) e, de acordo com a opinião de algumas gatinhas, ainda mais lindão que o famoso Aquiles, trabalhava então no Herold, com máquinas agrícolas, Massey-Harris.
Uma grande exposição de máquinas foi organizada num terreno da Tapada da Ajuda, Instituto de Agronomia, e lá vamos nós, numa bela área expor tratores, ceifeiras debulhadoras (colheitadeiras no Brasil) e outras interessantes máquinárias.
Fomos os maiores, e melhores expositores, alinhámos as máquinas todas, fez-se uma espécie de “corredor” para os visitantes circularem, e como o terreno era em declive, instrui o mecânico que estava comigo, que todas as máquinas deviam ficar engatadas (caixa de velocidades ou caixa de marchas) para maior segurança.
A exposição ia ser inaugurada pelo ministro da agricultura, ou algo similar, e vieram pedir-nos que, à sua chegada, todos os expositores pusessem os motores das suas máquinas a trabalhar, para saudar o insigne inaugurante.
Assim se fez. Refiz as instruções e mandei pôr todas as máquinas em ponto morto e com as chaves de ignição no respectivo lugar.
Eu estava “fardado” com o macacão do Herold e o meu tio e patrão mandou-me trocar e vestir traje social de calça, camisa, gravata e casaco, o que não gostei. Era preciso cumprimentar o inaugurante que tinha sido amigo do meu pai o que requeria... quase ismoke!
Como não se encontrava uma das chaves dos tratores, deixou-se esse engatado.
Chega o ministro, e lá... em baixo, na entrada, no começo do terreno, deram sinal para se fazer a manifestação motorizada. O mecânico corre para um dos lados, eu para o outro, e sem subir nas máquinas ligava-se o motor. Tudo muito bonito, exceto que o nosso mecânico entretanto encontrara a chave perdida e vai colocá-la no único trator. Engatado. E não me avisa.
Lá fui pondo uns quantos a funcionar e quando cheguei a este fiz o mesmo. Trator engatado, uma charrua pendurada no engate hidráulico, pegou num instante e começou a andar sozinho! De lado, tentei desligar a chave, ia recuando ao lado da roda grande, quando tropeço e o monstro passa por cima das minhas pernas. A primeira preocupação foi ver-me livre da grande roda traseira e sair fora para não ser arado... nas ditas pernas.
O mecânico corre, pára o bicho, eu levantei-me, pernas doridas e roupinha de ver ministro... rasgada!
Voltei a vestir o macacão, e esperei o cerimonial da visita, que vinha acompanhada pelo meu tio, que logo:
- Eu não te disse para tirares o macacão?
- Disse, sim, e eu até fui a casa vestir-me, mas... o trator passou por cima das minhas pernas e rasgou tudo!
Aí o tio engoliu em seco. Era médico e fez logo um monte de perguntas. Quebrado não tinha nada.
Veio o ministro, viu tudo, cumprimentou todos, achou muito interessante, conversou um pouco, etc., e a dor aumentava.
O dito ministro foi embora e eu para casa da futura, a coxear.
O meu sogro, futuro, chamou um médico amigo que foi lá a casa e constatou rotura dos ligamentos do joelho. O esquerdo. A perna abanava um pouco para os lados!
Solução: ficar deitado umas três semanas. Mínimo.
Impossível. Morreria de tédio, ainda por cima a viver em casa duma tia, e madrinha, que era pior que o primeiro sargento do meu regimento, e pontificava em tudo. (Época em que a minha mãe mudava de casa e nós, irmãos, fomos “pulverizados” por várias tias. Mas não deixo de ser grato pelo acolhimento.)
Solução: engessar.
Hospital de São José, um médico amigo do tal tio, disse-me que fosse comprar ligaduras e gesso, porque senão teria que esperar já nem sei o porque, e que assim que tivesse tudo se faria o resto.
Fui a uma farmácia (creio que era farmácia) comprei o que mandou e num instante estava com a perna toda engessada, desde a virilha a meio do pé. Trabalho de enfermeiro.
Quando me quis por em pé e andar, a perna esquerda não andava! Parecia que estava grudada no chão. Era o peso, imenso, de todo aquele gesso.
Lá me fui arrastando até à saída, com a ajuda dum enfermeiro, e chamei um dos taxis que ali aguardavam os maltratados da vida.
Amável o taxista abriu a porta de trás. Meti a cabeça dentro, depois, com a ajuda do dito motorista a perna direita, mas logo verifiquei que a esquerda, não entrava. De jeito nenhum. Batia na lateral, não levantava o suficiente, enfim, um drama!
- Vamos entrar pelo outro lado.
Mesma cena. Agarrando a perna engessada, ainda foi possível entrar com ela no carro, mas o resto do corpo... nada.
- Bom, vamos nos sentar ali naquela mureta para eu pensar como entrar.
Taxista e eu que fazia gestos equacionando a estratégia da penetração (Honni soit!) taxística, e o dito do volante olhava para mim com ar de espanto. Parecia assistir a uma sessão de espiritismo!
De repente:
- Eureka! Já sei. Vou entrar de costas pelo outro lado (o direito). Mas preciso da sua ajuda.
Lá fomos. Entrei de bunda. A perna esquerda era um trambolho imenso, pesadíssimo, mas com a boa vontade do parceiro, e o recuo sistemático e bundístico, o assunto resolveu-se e o motorista sorriu feliz.
Fomos. Novamente para casa da futura, que morava, felizmente, só num primeiro andar, SEM elevador.
Chegados, foi uma outra aventura sacar-me para fora do carro. Sempre o amável motorista pegou na perna foi puxando, bunda escorregando no assento, acabei por sair.
E subir as escadas?! A “gatinha” e mais que prometida parceira até c’a morte nos separe, quase pegou em mim no colo, ajudava a levantar a perna para alcançar o degrau acima, até que finalmente, sentindo-me como o famoso Edmund Hillary que, mais ou menos na mesma data tinha atingido o Everest, alcancei uma confortável poltrona onde consegui resfolgar!
Durou um mês a perna de gesso. Fui-me habituando e até já apanhava o autocarro com ele a andar (o bus) e ouvia o pobre trinca bilhetes a xingar-me, com toda a razão, até que finalmente fui tirar aquela carapaça.
De novo no Hospital de São José. Dois enfermeiros. Um pega na tesoura de cortar gesso e vá de cortar! Quando eu lhe dei um grito:
- Pára. Você está a cortar a minha perna!
- Não estou, não.
- Está sim, que eu sinto. Pára.
Tomou mais cuidado e quando o gesso saiu, finalmente, lá estavam uns 7 ou 8 centímetros de pele cortada na canela! Pela tesoura.
Mas isso foi o de menos. Depois do gesso todo cortado por um dos lados, metem-lhe as mãos e arrancam-no. Aí quem deu outro grito fui eu. Não foi grito, foi berro, que nem o Quincas Berro d’Água.
Os miseráveis, quando puseram o gesso “esqueceram” de me vestir uma meia para o gesso não agarrar. Agarrou, e por isso durante todo o tempo que andei com ele sempre tinha uma coceira danada, porque ia arrancando uns pêlos. Quando o arrancaram com um esticão saíram duma vez só todos, TODOS os pêlos da perna! Os que restavam.
Quando olhei para a perna só me lembrei de Auschwitz: pele e osso! Com a inatividade os músculos tinham, também, sumido!
Novamente uma tourada para recomeçar a andar, qualquer movimento a perna doía pra valer, entrar no taxi foi uma segunda sessão já ensaiada, bem como para sair, e uns seis meses de auto-fisioterapia.
Vinte e poucos anos de idade curam até cabeça cortada fora e voltei à vida normal.
Ano seguinte, 1954, casados, fomos para Benguela. Muito ténis joguei, muito andei pelo mato em trabalho e à caça, com o joelho ótimo.
- 2 -
1964, férias, em Portugal.
No aniversário do filho de um dos sócios das cervejas fui convidado para lá ir com o nosso filho mais velho que teria 9 anos.
Casa boa, rica, sala de ping-pong (ou ténis de mesa!) onde a garotada brincava à sua volta.
Lembrei de entrar na brincadeira para distrair os garotos.
Escorreguei naquele chão polido e encerado, caí abrindo as pernas tipo bailarina, e... voltei a romper os mesmos, os mesmíssimos ligamentos.
Ortopedista. Um amigo.
- Tens duas opções. Uma é operação, complicada; de entrada fica tudo bem e com os anos vai piorando. Outra, não se faz nada, amarras agora por algum tempo com uma ligadura até te sentires melhor, ficas bem, e com o tempo vai piorando.
­Optei pela segunda.
Em algum tempo voltei a jogar ténis e fazer a vida normal. Mas os anos iam somando.
- 3 -
1969. Luanda. Trabalhava no banco BCCI.
Com o meu querido amigo Fernão Dornellas, entramos de parceiros num torneio de ténis, interbancários.
Fomos jogando e ganhando, e o joelho xiando. E já coxeando durante o dia.
Chegámos até à finalíssima do torneio. Entrei de bengala numa mão e raquete na outra, e avisei:
- Fernão! Não vou aguentar. Eu fico na rede e tu corres como puderes.
Aos já 3 x 0 a favor dos adversários, capitulei.
- Meus amigos: não tenho condição de prosseguir.
É evidente que não ganhámos e o Fernão ainda me barafustou, o que não afetou a nossa amizade.
Nunca mais joguei ténis. Passei para a vela e golf. Nunca ganhei torneios nem regatas mas tinha um prazer enorme no que fazia.
(Nota: Olhem como se fica podre: em Portugal, 1990, cada vez que ia jogar golf ficava uns dias com as costas quase imobilizadas. Problemas da 5ª coluna! Deixei o golf!)
- 4 -
2012. Rio de Janeiro. Em casa.
Ao sair do escritório, dois degraus a descer e dois para subir, errei a pontaria dos para cima. Tropecei, caí que nem um bêbado. Era de manhã e não tinha bebido nada!
O miserável do joelho, sempre o mesmo, bate em cheio na quina do degrau. Dessa vez a cara decidiu acompanhar e foi de encontro à borda do passeio. Nada quebrou. Doía o joelho, a cara e o ombro, também esquerdo, não deixando o braço mover-se totalmente. RM: só uma pequena luxação, rachadura ou qualquer outro nome estranho (talvez craquelé!) no ombro esquerdo que levou à fisioterapia. E uma leve torcedura no pé esquerdo, mas, mixuruca.
Resultado: Joelho amarelou, depois o amarelo escureceu e ócrou, passou por um verde oliva velha e finalmente roxou, até ficar bom. O olho direto e o queixo seguiram a escala cromática do joelho. Só o ombro não roxou! Uma lindeza.



O ocre a descer pela perna e as manchas roxas a enfeitarem o lindo rosto

Mas não fica por aqui.

- 5 -
2013. Ushuaia. A cidade mais ao sul da América.
Com filha, genro e netos, um com 16 e o outro com 11, aí vamos nós para o frio. Um tempo bonito, mas um friaco valente.
Os netos queriam esquiar. Eu queria comer bem e beber melhor, passear pelos arredores e gozar a paisagem.
Lá onde se ia esquiar, um belo restaurante servia um cordero fueguino de chorar por mais, e tudo à volta neve e gelo.
À saída do dito comedor, uma pequena passarela de madeira para que os clientes não escorregassem. Acabada a passadeira... gelo. Escorregadio. Aí fui eu, num aparatoso escorregão bater com o bendito joelho esquerdo em cima do gelo durrérrimo.
Coxeia, procura diclofenato na farmácia, e lá vem aquela paleta de cores, que eu já tão bem conhecia! E as dores para andar.
Felizmente não cortou o apetite e atacámos a maravilhosa merluza negra¸ o melhor peixe que comi em toda a minha – longa – vida, e as big santollas ( que os argentinos pronunciam santoja). Entrava e saía do restaurante a coxear, mas sempre de papo bem fornido!
- 6 -
2019. Julho. São Paulo
Um semana em casa da filha e netos paulistas.
Durante a noite costumo me levantar uma ou duas vezes para... para isso mesmo.
Conheço bem o caminho do quarto até ao banheiro, não acendo a luz.
Mas, aqui é que está o busílis: a Joana tem em casa uma esteira para fazer um pouco de, teórica, caminhada. Faz talvez uma vez por ano, ou duas. A maquineta é grandinha e jaz lá num quase canto à saída do banheiro.
Aqui o cegueta, sai do dito banheiro, descalço, como sempre, dá um violento chuto com o dedo mindinho, um miserável minúsculo, bem na base da esteira, forte e pesada, e aí vai ele esparramar-se no chão.
O que machucou mais e até esfolou? O joelho esquerdo.
E lá vai ele a doer, esfolado e a percorrer aquela escala cromática à volta do ferimento!
Já decidi: vou comprar duas joelheiras, daquelas que usam os gool keepers  do hóquei americano no gelo.
Ou será melhor uma armadura de ferro medieval? Bem acolchoada por dentro, como é de supor.

27/07/2019


4 comentários:

  1. Cuidado tio com essas mazelas. Sabe que o Zé vai ser o responsavel pela grande expoaicao agricola para o ano na tapada de agranomia, já lhe li o seu relato de 1953.bjs

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  2. Olá Tio, estava aqui a pensar em como reduzir as possibilidades de novos traumas.
    De “caras” tem que arranjar um penico ou algo parecido tem que parar com essas aventuras de ir à casa de banho no meio da noite….
    Segundo, nada de escadas…
    Terceiro, equipamento completo de defensor de futebol americano.
    Quarto, uma sociedade com a firma do Hirudoid para os matizes coloridos desaparecerem mais rápido
    Esses são os conselhos do seu sobrinho médico ressaltando que o mais importante é acabar com essa vida aventureira de se levantar à noite, de subir e descer escadas como se fosse um rapaz, etc etc…
    Abraços
    Manim
    PS não ia perder a oportunidade … não é mesmo meu querido Tio

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