AMIGOS – 34
1946 – Estava eu, após um desaire liceal, talvez
há um mês ou pouco mais, a começar nova vida na Escola de Regentes Agrícolas,
em Évora, quando, uma tarde, vi chegar uma elegante charrete, com um senhor a
conduzi-la, coisa que por ali não era hábito ver-se.
O senhor, amigo de alguns professores e
sobretudo do diretor, parou em frente da secretaria, cumprimentou os conhecidos
e perguntou:
- Está aqui um aluno de nome Amorim?
Recebida a afirmativa mandaram chamar-me, e
lá vou eu desconfiado, sem saber o que se passava e não conhecendo o senhor de
lado algum.
Quando cheguei perto, vendo que era a mim que
ele procurava, pergunta-me:
- Tu és filho do malhado?
Fazia três anos que tinha perdido o meu pai,
a ferida aberta, como continua até hoje, não gostei nada do tratamento, e pela
minha cara ele logo viu que me tinha chocado. E volta:
- O teu pai não tinha um sinal preto no
pescoço, do tamanho de uma moeda?
- Tinha, sim.
- Nós estudámos juntos na Escola Académica,
em Lisboa, e era assim que ele era chamado.
Baixei a guarda, e sabia muito bem que o meu pai
ali tinha estudado, até porque no último ano da sua vida tínhamos mudado de
casa e um nosso vizinho antigo diretor daquela Escola guardava um especial
carinho por aquele seu aluno que veio a destacar-se.
Pouca foi a conversa com o cavaleiro, que
pede que me autorizem a ir jantar a sua casa.
Grande proprietário agrícola, tinha a sua
herdade, a Herdade do Barrocal, a uns 5 ou 6 quilómetros dali. Belíssimas
instalações, a casa senhorial quase um palácio, belos cavalos, enfim uma casa
rica.
Lá me encaixou em cima da charrete e num
instante estávamos em sua casa, onde me aguardava nova surpresa: a senhora
dele, muito simpática, logo me diz que tinha andado no mesmo colégio com a
minha mãe!
Coincidências raras. Conversámos um pouco,
sobretudo muitas perguntas sobre a mãe e os meus irmãos, jantámos numa sala
magnificamente arranjada, criado a servir à mesa, uma beleza, e eu por enfim
encantado por ter conhecido tão simpático casal.
Um pouco depois do jantar mandou o feitor
levar-me de volta, mas de carro.
Estive cinco anos em Évora e não nos vimos
muitas vezes porque o casal vivia em Lisboa e raras vezes ia à herdade onde tinha
um feitor, antigo, de confiança.
Com alguns colegas, muitas vezes íamos até
lá, a pé, claro, por aquelas estradas quase sem trânsito, a estudar, porque
além de nos fazer bem ao conhecimento, sempre havia a possibilidade de ver a
filha do feitor que, uma vaga lembrança me diz que valia muito a pena! Nunca
ninguém se meteu com ela, tudo se limitava a um platônico olhar, e a
aproximação das casas não era muito convidativa porque os guardas, uns três ou
quatro magníficos Rafeiros Alentejanos, nos
recebiam com latidos poucos amigáveis e uns belos dentes à vista.
Lembro de uma vez que acabámos todos em cima
das árvores enquanto não veio alguém da herdade recolher as feras!
Passam os anos. Já fora de estudos saio um
dia de casa dos meus avós, que moravam na Praça dos Restauradores, e logo ali
em frente uma porção de gente estacada a olhar para um belo carro americano,
sem ninguém dentro com a buzina a tocar!
Aproximo-me para ver o que se passava e dou
de caras com o meu amigo, o senhor que um dia me levou para jantar em sua casa,
no Barrocal. Também parado, a ver o que se passava!
- Senhor Alberto Rosado! Que
surpresa. O que faz por aqui?
- Chiiiu! Não digas nada. Foi o meu carro que
começou a tocar a buzina sozinho, e como não percebo nada daquilo, saí e fiquei
à espera que aparecesse alguém para resolver o assunto. Sabes: há sempre uns
curiosos e uns entendidos! Espera um pouco e vais ver.
De fato já esvoaçavam de volta uns
“especialistas”! Olharam dentro do carro, abriram o capô, e passado um pouco a
buzina calou! Penso que o técnico deva ter arrancado o fio da buzina! Olhou à
volta, não sei se para receber aplausos dos mirones ou os agradecimentos do
dono, não apareceu ninguém para o felicitar e sumiu, como os outros.
O pessoal todo dispersou, e quando já não
tinha ninguém ele diz-me:
- Eu bem te dizia. Agora podemos ir
embora. Vem comigo que eu levo-te a casa.
Apesar do pouco contato, foi sempre muito
simpático, e um amigo a não esquecer.
*************
Outro amigo da família, amigo e colega do meu
pai, agrónomo, um dos maiores enólogos que Portugal conheceu.
Um dos principais sócios e Presidente da
firma José Maria da Fonseca, solteirão, sempre vestido de forma impecável, uma
simpatia irradiante.
Foi ele quem criou e lançou nos Estados
Unidos o vinho Lancers que durante muito tempo foi o vinho que Portugal mais
exportava. E outro grande vinho o tão conhecido e tão amado no Brasil o
Periquita.
Desde 1954 que eu fui viver para fora de
Portugal, mas raras as vezes que eu passava em Lisboa e não tinha lá à minha
espera um caixa do famoso branco “Branco Seco Especial”, que o “tio” António
(eu também lhe chamava tio apesar de não ser da minha família) não se esquecia
de mandar entregar em casa da minha mãe.
Olhem só e... bebam quando
puderem
Um dia chego de Luanda e levava uns 10 kilos
daquelas maravilhosas gambas, que, nesse tempo (belos tempos!) amavelmente as
hospedeiras do avião guardavam no frigorífico de bordo.
Em casa, à espera de verem o emigrante,
irmãos, cunhado, um primo e um tio, abraços e muitas perguntas, entrego à minha
mãe o precioso pacote com as gambas.
“Mamãe”, orgulhosa com o presente do filho, lembrou-se
de pegar pelos bigodes um dos camarões grandes, e ir exibi-lo toda contente à
família presente.
-- Que maravilha. Quero provar um. Eu também...
e eu... etc., e a mãe teve a infeliz, ou feliz ideia
de pôr as gambas, que viajaram cozidas, numa travessa em cima da mesa e dizer
que tinha ali o tal vinho.
Uma festa. As gambas foram-se todas e a dúzia
de garrafas do famoso “Branco Seco Especial” acabaram condizendo com o rótulo: secas.
Os parentes... saíram com alguma dificuldade,
no tempo em que não havia bafómetros e conseguiram chegar a casa, todos salvos
e... com muito sono.
A minha mãe, magnífica cozinheira não chorou
a perca dos camarões. No dia seguinte fez uma sopa com as cabeças que ficou de
chorar por mais.
O vinho é que tivemos que ir reforçar
comprando numa loja perto de casa.
Em 1961 passei três meses na Europa (França e
etc.) fazendo cursos e visitas a empresas, e numa das vezes a caminho já não
sei de onde tivemos (eu levava a minha mulher) que passar a noite na bonita
cidade de Heidelberg, depois de termos percorrido quase 600 quilómetros.
Lembro que atravessamos a ponte (sobre o Neckar?)
e escolhemos logo o hotel à entrada da cidade. Hotel antigo (era 1961!!!) muito
confortável. Depois de deixar as malas no quarto descemos para jantar.
Não lembro o que terá sido a “papa”, mas
lembro que pedi vinho e vinho da região. Mostraram-me a lista dos vinhos, mas
para mim era tudo chinês, e como serviam vinho a copo, nuns copos lindos de 25
dl, achei que um copo daria para o jantar, e pedi um com um nome curioso, mais
ou menos Barnabé! Não era assim , mas...
Provei. O vinho era uma delícia, obriguei a
minha mulher a apreciar o néctar, e depois ainda bebi mais dois copos. Total: o
equivalente a uma garrafa de 0,75 !
Estava uma noite agradável, saímos do hotel
para dar um giro a pé por aquele centro.
Não tardou que eu sentisse dificuldade a
andar. Doíam-me as articulações! Coisa estranha, que atribui a ter feito quase
600 kms. sem parar. Fomo-nos deitar, aquilo passou e nunca mais pensei nisso.
Uns anos depois conversava com o “tio”
António, falámos de vinho como é evidente, quando lhe contei esta história.
Ele, grande conhecedor explicou-me o
fenómeno. Naquela região o vinho tem não sei já que propriedades (talvez um
pouco mais de ácido úrico !?) que afeta as articulações! Quem sabe, sabe.
O vinho era muito bom, mas... se eu lá
voltar, o que me parece pouco provável, vou beber menos.
Bom amigo, grande figura, grande enólogo António Porto Soares Franco.
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Outro amigo, desses tempos e dessas idades,
engenheiro, responsável em Portugal pela famosa fábrica de vidros Saint-Gobin,
homem tranquilo, solteirão, muito culto, era uma das pessoas com quem dava
gosto conversar. A sua vasta cultura, ligada a uma personalidade simples,
tornavam as conversas sempre muito interessantes.
Recordo-o muito de passagem porque só
estávamos juntos em poucas das ocasiões que eu ficava em Portugal, mas a
família era conhecida, sobretudo uns seus sobrinhos que, no verão, eram nossos
vizinhos em Sintra e alguns amigos de infância.
Descendente de português, advogado nascido em
Goa, e neto de uma senhora também goesa, brâmane, da estirpe mais alta da Índia,
nasceu em Lisboa e por ali fez toda a sua vida.
Uma das curiosas passagens da sua vida deu-se
quando aluno de engenharia no Instituto Superior Técnico em Lisboa. Ali teve um
professor também se origem goesa mas de estirpe, ou casta inferior, que, respeitando
ainda a velha hierarquia indiana, fazia questão de esperar que o aluno brâmane
entrasse na aula à frente dele.
Um dia o aluno foi ter com o professor e
pediu-lhe por favor para esquecer essas questões de castas. Isso era coisa
obsoleta, indigna e nem sequer tinha razão de existir em Portugal. Além disso como
professor tinha que tratar todos os alunos do mesmo jeito.
O professor, sempre respeitosamente, acatou
“o recado”.
Lembro este amigo, este senhor, com saudade e
admiração. Sempre no seu belo Citroen preto, Traction Avant, impecável,
a alavanca de marchas no painel, uma delícia de carro.
Chamou-se Guilherme Andersen da Costa,
filho do famoso médico Dr. Alfredo da Costa, e só me resta esta foto dele.
16/08/2019
Texto admirável
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