domingo, 28 de julho de 2019




Amigos – 32 a


Antes de qualquer procedimento de caça é preciso ir cumprimentar o chefe da aldeia. Conversar com ele sem pressas, oferecer-lhe alguma coisa, sendo o mais comum um ou dois garrafões de vinho, dizer-lhe ao que se vai, e pedir-lhe que arranje um pisteiro bom.
Chefe, sentado numa quibaca, os restantes homens no chão. Conversa lenta, pausada, dando a sensação de ser assunto que necessita de muito pensar! Isso levou a manhã toda.
Ali ao lado, o rio Cubango, a mais de quinhentos quilômetros da nascente, era já um rio largo, volumoso, apesar da época não ser de chuvas. Por vezes atravessa área pedregosa transformando o seu leito tranquilo numa série de rápidos, que deixam para montante as águas mais paradas formando como um lago, onde as margens se afastam uma ou duas centenas de metros.
Não só o pisteiro como todo o povo mostraram-se desde logo muito interessados em falar sobre os muitos hipopótamos que viviam ali, nesses rápidos. Não era intenção dos caçadores caçar hipopótamos, animal tranquilo, por essa ocasião uma das espécies cuja extinção estava já ameaçada, mas sim elefantes. Todavia um daqueles imensos hipopótamos seria uma magnífica prenda para aquela gente. Ficariam abastecidos de carne por um bom tempo, e por isso tanto interesse em falarem neles. O peso médio dum macho é de duas toneladas e meia. Caçar esta montanha de carne seria a melhor maneira de cair nas graças das gentes daquela sanzala, e o chefe mostrou-se nisso vivamente interessado, porquanto seria sempre ele a proceder à divisão da carne. E quem parte e reparte...
Foi decidido aproveitar o resto da tarde desse primeiro dia para ir procurá-los. Lá estavam, a razoável distância de tiro, parecendo tomar banho em piscina, mais de uma dúzia desses enormes bichos.
A aproximação, cautelosa, mas os caçadores eram seguidos não só pelo pisteiro e por umas dezenas de garotos, que todos queriam ver caçar um bichão, a cautela foi só teórica.
Os animais pressentindo a aproximação de gente vinham à superfície muito rapidamente respirar, não mostrando por mais de escassos segundos a ponta das narinas e os olhos, dificultando assim a hipótese de tiro, que para ser fatal deve atingir uma área muito restrita atrás da orelha. Esperou-se algum tempo para ver se algum mais curioso se expunha melhor, porque também a curiosidade é uma das características destes simpáticos monstros. Não estava fácil, mas assim mesmo arrisquei atirar assim que vi alguma possibilidade de sucesso, com a carabina equipada com óculo. Tiro preciso, o animal sente o impacto da bala, revolve-se na água, ferido e muito agitado, entusiasmando todo o grupo que já antevia comida farta, mergulha e desaparece. O resto da manada sumiu também, submergindo para ir depois aparecer bem longe, em lugar mais abrigado, sem perigo aparente.
Começava o dia a declinar e como já não valia a pena tentar procurar os animais, ficou decidido voltar na manhã seguinte. Se o animal tivesse sido ferido de morte algumas horas mais tarde apareceria a boiar, quando não teria que ser procurado. À noite, à roda do fogo, entre outras conversas, comentou-se a precisão do tiro. Fora bom, e pelo modo como o animal o acusou devia estar morto. De qualquer modo não duraria muito.
Manhã cedo, ainda mal se preparava o matabicho, uma porção de garotos de roda dos caçadores avisava que os cavalo-maria haviam subido o rio. Já os tinham localizado e igualmente alertado. Volta a equipa, sempre acompanhada por uma pequena multidão de garotos, ao local onde tinham atirado na véspera, para começar a procurar o animal. Ninguém queria perder o espetáculo. Se estivesse morto a corrente do rio já o teria arrastado para as pedras dos rápidos. Ali não estava. De acordo com a informação pré matinal, a manada tinha subido o rio e estavam ali, a cerca de mil metros.
- Vamos lá ver se encontramos o ferido.
Para a hipótese de terem que atravessar o rio, tínhamos levado um barco.
O meu amigo tinha uma carabina 9,3 mm com dois gatilhos, um primeiro para soltar a folga do segundo que depois ao mais leve toque dispara, o que dá maior precisão de tiro. Propõe:
- Eu vou para a outra margem, e atira aquele de nós que tiver os animais mais perto!
- Cruzar fogo por cima da água? Tá louco! Nunca.
- Porquê? Qual é o problema?
- Porque a bala faz ricochete na água e nós vamos ficar a atirar um no outro.
- Qual ricochete, qual quê! Eu caço há mais de vinte anos e nunca vi tal coisa. Pelo contrário, a água amortece a bala.
- Eu sei que faz ricochete. Já vi muita bala bater na água e seguir viagem. Portanto se você quer atravessar o rio vai que eu fico aqui à espera.
- Não, senhor. A caçada é sua, e o hipopótamo ferido foi também um tiro seu. Vamos seguir as suas instruções.
- Que fique bem assente: não só não vamos cruzar tiros por cima da água como ninguém vai para o outro lado, porque como sabe o diabo disparou uma tranca, e eu vou atirar deste lado.
- Está certo. Então eu aguardo aqui.
Deixei os companheiros sentados debaixo duma frondosa árvore, e seguido ainda por uns quatro ou cinco garotos fui subindo pela margem do rio para me aproximar da manada. Como na caça todo cuidado na aproximação é pouco acabei correndo com a garotada. Só atrapalhavam. Caminhei com cautela bem junto à água, afundando por vezes os pés na terra encharcada. Por fim lá estavam os bichos, longe, junto à margem oposta, a uns cento e cinquenta metros, o que não aconselhava a atirar, dada a precisão que o tiro requer. Cautelosos como na véspera, continuavam atentos, até porque a garotada os havia alertado, e nesta situação mantêm-se submersos o máximo de tempo possível, e só sobem à superfície para respirar a intervalos de largos minutos, mal aparecendo, tornando assim a espera muito morosa e cansativa. Era necessário esperar com paciência. Num lugar meio escondido, sentei num tranco caído, e para dar mais precisão ao tiro cortei um galho da mesma árvore para servir de apoio ao cano da arma.
Ao fim de uma hora e tanto as cabeças começaram a mostrar-se um pouco mais fora e, mirando com todo o cuidado através do óculo, arrisquei um tiro. Estando quase ao nível da água e atirando a uma distância grande, o ângulo formado com a superfície era mínimo. A bala, blindada, rasou e tocou na água, seguiu, voltou a bater na água um pouco mais adiante, e pensei pena o meu amigo não estar aqui que teria visto o tal ricochete.
Ainda tentei um segundo tiro, sem senso, porque àquela distância e sem ângulo era praticamente impossível atingir um alvo de cinco centímetros de diâmetro, a parte vulnerável do hipopótamo, e matá-lo. Felizmente não parece ter acertado em nenhuma das duas tentativas. Ferir e não matar era pouco digno de um caçador. Desisti e levantei-me para retornar. 
Neste momento chega o outro parceiro, no jeep, lívido:
- Venha depressa. O seu amigo levou um tiro numa perna. E acho que foi um tiro seu.
- Um tiro??? Como? Um tiro meu?
- Sim. O primeiro.
- Não me diga que vocês atravessaram o rio e subiram a outra margem, contrariando o que havíamos combinado?
- Foi. Quando ficámos ali sozinhos, ele disse que essa coisa de ricochete era conversa, e fomo-nos colocar mesmo em frente dos hipopótamos.
- Meu Deus! Atingiu algum osso? Sangra muito?
- Não. Quase não sangra.
Num instante estávamos no local onde os tinha deixado. O ferido sentado no chão debaixo da mesma árvore frondosa, perna estendida, ar de profunda desolação, duas lágrimas na cara magra, ainda por secar. Pisteiro e garotada à volta com ar de espanto.
- Oh! Homem! Que maneira estúpida de aprender que as balas fazem mesmo ricochete na água!
- Pois é. Tem razão.
- Deixe ver a perna.
Calça abaixo. Ferimento milagroso! Por muita sorte foi uma bala blindada, com forte poder de penetração, que não espalha nem estilhaça. Entrou na parte superior da coxa e saiu uns doze centímetros adiante. Não apanhou o fêmur nem a artéria femoral, que naquele local, longe de tudo e de todos, teria sido fatal! Fez um pequeno buraco na entrada, ligeiramente maior na saída, mas a velocidade com que atravessou o músculo deixara o caminho como que cauterizado e sem aparente perigo de infecção. De qualquer modo havia que o levar a um posto de enfermagem para ser visto. O mais perto, perdido no meio daquela imensidão, ficava a cinquenta quilómetros dali.
Quando lá chegamos a perna estava um tanto escura do hematoma causado pela pancada do tiro potente, mas o enfermeiro limitou-se a fazer um pequeno penso na entrada e na saída da bala, passar uma ligadura para segurar os pensos e recomendar uma medicação simples, que faria bom efeito porque o ferido, homem saudável, nunca até aquela altura da sua vida tinha tomado um único comprimido!
Regresso ao acampamento em silêncio. A caçada estava estragada. Não sendo responsável pelo disparate do amigo, sentia-me mal, e quis saber exatamente como se tinha passado tudo aquilo. O acompanhante fez o relato.
- Ele disse que isso de ricochete na água era conversa! Então atravessámos o rio no barco, e subimos pela outra margem até que avistámos os hipopótamos, e fomo-nos colocar o mais perto possível. Aí uns trinta metros. Escondemo-nos atrás dum muxito, sentados de cócoras. Os animais estavam tão perto que ele carregou a arma, e preparou-se para atirar. Tirou a folga soltando o primeiro gatilho, e apoiou a arma na perna. Logo a seguir ouvimos um tiro, a arma dele sacode, sente uma pancada na perna, que lhe deu a sensação de ser o coice do tiro da sua própria arma e espantado diz:
- Olha, disparou-se a minha arma! - levanta-a e vê o percutor armado.
- E esta? O percutor armado! - abre a culatra e a bala estava lá dentro! - Como é possível? A bala está aqui! Como é que isto disparou?
Nessa altura eu olhei para o lado para tentar descobrir o mistério do tiro que não havia saído da arma dele, e vejo a perna a sangrar.
-Oh! Você levou um tiro na perna, e foi uma bala do Francisco!
O ferido sem acreditar: - Levei um tiro onde?
- Aí na sua perna.
Vê a sua perna ferida, porém continua sem entender o que se passava.
- Vamos embora daqui. Dê-me a mão que eu o ajudo a levantar-se.
- Não é preciso. Estou bem. Não sinto nada.
Levantámo-nos e começámos a andar. Uns poucos metros adiante ele senta-se no chão e com as lágrimas a romperem-lhe dos olhos diz:
- Ai! Que eu vou morrer!
Eu fiquei aflito, mas não me parecia que fosse caso para isso, perguntei-lhe:
- Vai morrer porquê? Foi só um tiro na perna e até sangra pouco!
- É sim. Mas eu já vi antílopes levarem um tiro que a gente pensa que não acertou, continuarem a correr como se nada fosse com eles, e de repente caírem para o lado, mortos! Comigo vai acontecer o mesmo!
Esta descrição fez o riso voltar aqueles rostos tensos. Até o ferido de perna atada teve que rir!
De volta ao acampamento, a vontade de caçar tinha-os abandonado. A ceia, sempre um bom momento de alegria e descontração foi comida em silêncio. Triste. No dia seguinte o doente ficou deitado no acampamento e eu fui só caçar um ou dois antílopes para arranjar comida para eles e aquele povo.
Entretanto o pisteiro já não apareceu naquela manhã. Tinha sumido! Quando perguntamos por ele as respostas eram evasivas que ele não podia ir mais, tinha outras coisas para fazer, etc. Nova conferência com o chefe da aldeia para arranjar outro pisteiro, e este do mesmo jeito, com os mesmos rodeios, não tinha outro capaz, estava ausente, e mais isto e aquilo, etc., a verdade é que ficamos sem guia.
Ainda mais um dia nesse acampamento, para descansar da emoção do acidente, mas como não se podia esperar mais apoio do povo dali, fomos obrigados a ir procurar outro local para continuar a caçada.
Desfaz-se o acampamento, carrega tudo de volta nos carros e aí vão eles, picada fora tentar continuar a caçada que tão mal começara. Percorreram algumas dezenas de quilómetros até outra sanzala, bem longe da primeira.
Mesma cena de início, conversar com o chefe da nova sanzala onde se depararam com as mesmas respostas, não tinha nenhum pisteiro bom, os animais andavam muito longe, a época não era a melhor, etc. etc.
Estranho. Muito estranho. Ninguém mais queria ir caçar com eles. Afinal o que se estaria passando?
Conseguiram a custo saber que naquela região, imensa, se tinha rapidamente espalhado a notícia de que andavam por ali uns brancos que se queriam matar uns aos outros! E como é evidente ninguém queria colaborar com essa guerra!
Para compreender esta atitude é necessário conhecer um pouco a mentalidade daqueles povos simples. Os mais simples, os mais manhosos! Analfabetismo não é sinônimo de burrice.
Quando por qualquer circunstância um homem quer vingar-se de outro, nunca o faz declaradamente. Tem que ser pela calada, sem que jamais possa levantar suspeita. A vingança pode provir de um caso de amor, da perca de uma posição mais influente, de uma acusação publica, até de simples inveja, se inveja pode ser coisa simples.
Sendo a paciência uma das virtudes dos povos simples, a espera não tem pressa porque tempo pouco conta. O momento oportuno sempre acaba por surgir, sobretudo nas reuniões de todos os homens que, em ocasiões especiais, se sentam a noite toda, em círculo, à roda do fogo, discutindo, pouco, e bebendo muito. Bebidas fermentadas, por eles mesmos preparadas, sempre de elevado teor de álcool para estas quizombas, reuniões a que preside o soba acompanhado pelo quimbanda, o feiticeiro e curandeiro e todos os homens da sanzala.
Para consecução desse ato, o vingador precisa da colaboração de um ajudante, a quem todavia não põe ao corrente do que pretende fazer. Escolhe um dos seus amigos, de amizade consolidada, que sem saber vai ser o cúmplice. Entretanto começa por procurar cativar a confiança de quem se quer vingar, tornando-se seu amigo, o mais prestável, mais humilde, mais íntimo, para afastar quaisquer suspeitas entre todos na aldeia, que passam a ver que eles são mesmo amigos.
Com o aproximar do dia da ação, prepara um veneno forte, coisa que não é segredo para ninguém que vive no meio da natureza, e na noite da assembléia acaba se sentando no meio dos dois amigos. A vítima de um lado, o cúmplice do outro, com o objetivo de afastar ainda mais qualquer suspeita. Ele fica entre os dois maiores amigos, o que é natural.
A bebida é servida em cabaças, continuamente, uma só estando na roda de cada vez, que vai passando de mão em mão, sempre num mesmo sentido de rotação. Cada um bebe uns quantos goles e passa ao seguinte. Do lado por onde ela há-de vir senta-se o cúmplice, do outro a vitima. O veneno, bem forte, vai embutido na unha de um polegar. A cabaça com a bebida alcóolica roda a noite toda, passada invariavelmente da esquerda para a direita, só parando quando vazia, para se encher de novo. Numa dessas rodadas a cabaça há-de chegar às mãos do cúmplice só com bebida suficiente para um ou dois beberem. O vingador está atento, e logo que percebe que o momento é chegado, sem que alguém note, o que não é difícil porque o álcool já tolda a maioria deles, não deixa o cúmplice beber, para não perder a oportunidade de receber a cabaça quase vazia. Nessa altura ele bebe um pouco, finge que bebe, enquanto mergulha bem o dedo com o veneno que se vai misturar aos últimos goles da bebida. Feito isto passa a cabaça para o lado, tendo o cuidado de fazer o parceiro beber até a derradeira gota, o que também não é difícil, porque a cabaça já vai quase vazia e todos gostam bem de se embriagar. A festa continua, o álcool vai fechando os olhos de alguns e a mente de todos, mas assim mesmo só pára alta madrugada quando caem os últimos bêbados.
No dia seguinte a ressaca é geral, mais sentida por alguns. A vítima tem uma ressaca muito mais forte, o que a ninguém causa espanto porque há sempre uns a quem a bebida faz pior. Mas a ressaca dele não passa, e ao fim do dia piora. Sente-se mal, com diarréia, febre, fraqueza. Ninguém o mandou beber tanto! Em menos de quarenta e oito horas está morto! O vingador perdeu um amigo! E leva a encenação até ao fim, mostrando-se muito sentido com a falta do amigo!
Foi este mesmo quadro que aquele povo viu naqueles brancos que foram caçar! Muito amigos, mas caçadores com boa pontaria como vai um acertar o outro? De certeza que querem matar-se! Até o tal cúmplice estava presente possivelmente para ajudar a posicionar a vítima no melhor local para levar o tiro! Não puderam convencê-los que entre brancos as coisas não funcionam desse jeito! Não houve maneira.
E esta caçada nas terras do fim do mundo que tinha tudo para ser uma maravilha, acabou por ser um tormento. O objetivo eram os elefantes. Tentaram depois procurá-los, mas sem pisteiro. Andaram muito perto deles, mas nunca em posição de tiro. Ao fim de uma semana foram obrigados a abandonar a região, tristes, tensos, com a perna dolorida ainda, mas sem dar preocupação de maior.
Levámos dessa caçada esta versão de costumes, estranha, mas autêntica.
Foi um grande parceiro. Amigo. Sempre com uma ótima disposição.
O Carlos Vieira da Maia, que perdi de vista quando fui para Moçambique em 71 e mais no pós 25/4.


Soube vagamente por um amigo comum, aí pelos anos 80, que viveria lá para as Beiras. Mas não o consegui localizar. Talvez agora um dos filhos venha a ler isto. Quem dera.
Um grande abraço onde quer que estejas.

10/07/19

Um comentário:

  1. Adorei. A descrição é tão real que parece que a estamos a viver. Os costumes do povo são estranhos, traiçoeiros e muito bem descritos. Obrigado.

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