Amigos - 31
Para vos falar de um amigo
que muito me marcou, é preciso contar algumas histórias de caçadas.
Gerente regional de vendas
da Mac-Mahon, a 2M, Coca-Cola e outros, desenvolvia um trabalho a todos os
títulos louvável. A sua região crescia em vendas e organização e era pessoa
querida de todos os que o conheceram.
Moçambique, Sul do Save,
para cima do Chibuto, em Chicualacuala, tentativa de caçar elefantes. O mesmo
procedimento ao chegar, conseguir as boas graças do chefe local, por onde se
começa a estadia. Como deferência para com os brancos, o chefe, que se sentava
num banco ou cadeira, e o resto do povo no chão, manda buscar bancos para os
visitantes. Com o parceiro, e grande caçador, homem ainda novo, robusto que nem
um carvalho, recusam educadamente a deferência, e sentam-se no chão, o que
deixa o chefe entre admirado, sensibilizado e confiante. A oferta habitual, um
garrafão de vinho que logo ali se abre e distribui por todos os presentes.
Objetivo dos visitantes: caçar um elefante, para o que precisam de um bom
pisteiro. E mais. Queriam acampar ao lado da aldeia. Ao fim de um longo papo,
tudo estava acordado. Monta-se a barraca de campismo, prepara-se uma refeição
simples, para deitar cedo, e antes do nascer do sol lá vão de carro com o
pisteiro até onde este entendeu que deviam parar, para dali em diante seguirem
a pé, à procura de rasto recente de elefantes.
Silêncio, pisteiro na
frente, atento ao mais ínfimo sinal, desapercebido aos caçadores, a quem de vez
em quando mostrava, quando mais evidentes: uma pegada em terra úmida, capim pisado
e dobrado, excremento fumegando, diversos tamanhos e quantidade de pegadas
indicando o número de animais. Uma pegada maior se destaca. Era esta que iriam
seguir. De vez em quando outros animais apareciam, mas como não se podia fazer
o mínimo ruído eram apreciados só com a vista e deixados em paz. Atravessaram
áreas de mata aberta, capim verde e alto. Horas e horas a andar. Numa ligeira
elevação do terreno vê-se o capim mexer, o pisteiro estaca, abana a cabeça em
sinal negativo mas que mantivessem silêncio. Não eram elefantes. Na sua frente
uma pequena manada de antílopes lindos, Nialas
ou Inhalas (Tragelaphus angasi) que com o aproximar silencioso dos caçadores
se mantiveram em alerta mas imóveis e só correram quando estes estavam quase ao
alcance de os tocarem com as mãos! Espetáculo lindo.
Continua a seguir-se o
rasto, até que ao cair do dia tiveram que retroceder. Sabiam pelo menos onde
começar no dia seguinte.
No regresso ao passarem
junto a um charco mataram um Ganso de
Esporão (Plectropterus gambensis)
uma espécie bem grande, 7 ou 8 kg, próprio de toda a região sudeste da África,
que deu um brilhante jantar! Belos bifes do peito, fritos em azeite, hummm, no
meio do silêncio, do céu limpo, as estrelas todas lá, algumas cervejas 2M a acompanhar...
Quando se levantaram, de
novo antes de começar a clarear o dia, um homem de outra aldeia que dali distava
uma a duas horas de caminhada, os aguarda. Soube, talvez por algum tipo
especial de telégrafo africano, que andavam por ali caçadores da cidade, e
pensou que estes o pudessem ajudar. Depois de pedir autorização ao chefe da
sanzala onde estavam acampados, esperou para falar:
- Bom dia, patrão! Patrão
pode dar o aspirina?
Um pedido destes, no meio
do mato?! E aspirina que tomada só para nada serve! A caixa de pronto socorro
levada para estas caçadas incluía somente comprimidos para estacar diarréia ou
para prisão de ventre, ligaduras, gazes, água oxigenada, tinturas, agulha e categut para algum ferimento maior, e
pouco mais, somente para tapear algum acidente até se chegar onde houvesse
posto de saúde ou hospital.
- Uma aspirina? Para quê?
- Filho pequeno muito
doente.
- O que tem ele? E que
idade?
- Quatro mês. Muita febre e
diarréia!
Oh! Diabo! A coisa parecia
complicada, mas a cem quilómetros de qualquer socorro, algo teria que se fazer.
Partiu-se em quatro partes
um comprimido de adulto para a diarreia, embrulhou-se cada quarto num pedaço de
papel, e entregou-se àquele pai:
- Você vai agora e dá este
pedaço ao bebé. Quando o sol estiver lá no alto dá outro pedaço. Ao pôr do sol
o terceiro, e a meio da noite o último. Amanhã volta aqui e conta como ele
está. Entendeu bem?
- Sim siô, patrão.
Brigato. - E foi embora.
A caçada prosseguiu. Segue
rasto, perde rasto, encontra outro rasto, os elefantes estão perto, agora já
foram embora, amanhã a gente encontra, o costume! Outro dia passado. No
regresso ao acampamento sempre se deparava com um pequeno animal que servia
para abastecer um pouco a barriga de todos.
Nova manhã. Ao saírem da
barraca lá está o pai da criança. A diarréia tinha passado, mas a febre não.
Nenhum dos caçadores era médico, mas pela descrição talvez fosse alguma coisa
do tipo febre intestinal, grave, e não houve coragem de ir caçar sabendo que a
criança podia morrer. Metem o homem no jeep andam um monte de quilómetros até à
primeira casa comercial. Entram para comprar qualquer coisa, e perguntam à
mulher do dono da casa, se tinha alguns medicamentos. Sempre havia na loja
alguma coisa para venda, mas daqueles que nada resolvem, como analgésicos e
outros quejandos.
- A senhora não tem por aí
qualquer antibiótico, mesmo já aberto, que tenha sobrado?
- Tenho ali um resto que
dei à minha filha pequena quando ela esteve doente.
Mesmo sem saber o que era,
- Eu compro esse resto.
- Não precisa. O senhor
pode levar porque isso a nós já não vai servir.
Comprou-se, além de algum
abastecimento extra para o acampamento, e mais combustível, uma colher de café,
porque o medicamento era líquido. E novamente se explicou ao pai do bebé como
administrá-lo. Uma colher de café mal cheia nos mesmos horários solares. O
tanto que sobrava no frasco devia dar ainda para uns dois dias. Era tudo quanto
se podia arranjar por ali.
E voltam para a caça.
Nesse dia a perseguição proporcionou-lhes um encontro casual com um magnifico
exemplar de Kudu (Tragelaphus strepticerus), macho solitário, com uma belíssima
armação, que teve o azar de em má hora atravessar a picada em que seguiam.
Perdeu-se o respeito ao silêncio da perseguição aos elefantes e atirou-se ao
kudu, que morreu ao primeiro tiro. Lindo animal. Volta ao acampamento. Esfolar
o bicho, limpá-lo e dividir a carne. O primeiro pedaço, pequeno, para os
caçadores, que ficaram com o contra filé, uma delícia, o resto dividido sob o
mando do chefe pelas diversas famílias da aldeia. Por fim o pai do bebé, que
por ser de outro povoado, só teve a sua parte por interferência dos caçadores,
e assim mesmo as tripas e o fígado.
Mais um dia. Ao
levantarem-se nova surpresa. Uma galinha de presente! Imagine-se uma galinha de
presente no meio do mato! Mas era o que de melhor o pai da criança conseguia
para mostrar a sua gratidão. Claro que ao fim do dia levou a galinha de volta!
Parece que tinha passado a febre do bebé, e este homem durante os restantes
dias que os caçadores por ali andaram nunca deixou de se apresentar de manhã
para ser útil de qualquer forma, carregando a arma, ajudando na caçada, sem
nunca querer interferir com o trabalho do pisteiro, mas humilíssimo e muito
grato.
Nada mais se soube da
criança. Mas o melhor dessa caçada, onde mais uma vez não se encontraram os
elefantes, foi ter-se feito alguma coisa que a todos deu uma satisfação muito
intima. Em África era assim. Dava-se com uma mão, e se a vista não seguia a
dádiva, era preciso juntar as duas para receber a paga, tal a simplicidade e
generosidade da gratidão.
O Pedro Avillez era o
representante do nosso Banco em Johannesburg, e foi um dia a Lourenço Marques
tratar de assuntos de serviço. É preciso notar que só depois de 1976 é que as
pessoas deixaram de ir a esta cidade para irem ao Maputo. Geograficamente vão
ao mesmo lugar mas até os moçambicanos fazem esta distinção!
Aproveitámos um
fim de semana para, com o habitual parceiro, ir caçar perdizes, lá para bandas
de Zandamela, entre Quissico e Chidenguele, uns 350 quilómetros a norte da
capital. Para África é sempre perto,
em termos de Europa é sempre longe.
Fomos
instaladões no belo carro da representação do Banco, um Mercedes 280,
automático, uma delícia, para quem normalmente ia num incómodo jeep para essas
farras.
Não levámos
cão, nem tínhamos, o que para perdizes é fundamental, mais ainda em terrenos
com capim alto, tão alto que por vezes nos dava pelo nariz. Ver, ainda vimos
algumas. Atirar, creio que ao todo se fez um tiro ou outro, mas perdiz caçada,
mesmo, para levar para casa e fazer aquele magnífico petisco, é que nada.
Apanhámos um calor imenso, fartámo-nos de andar no meio do mato sem cachorro e, depois de feita toda aquela viagem e apanhado
uma razoável estafa, desistimos, um tanto desiludidos do intento cinegético.
Lembro-me do que dizia um meu avô que também andou por África, só a caçar, que
quando se sentavam para comentar mesmo quando não se caçava nada: ninguém se feriu, não matámos ninguém,
voltámos para casa. Foi uma caçada ótima. Como esta!
Já no regresso,
sede não faltava, parámos no primeiro comerciante para beber uma cerveja e
comentámos por onde tínhamos andado.
- Essa região está
cheia de carraças. Daquela miudinha. A pior. A que provoca a febre da carraça.
- Oh! Diabo!
- Quando
chegarem a casa tomem um banho de imersão com um pouco de amoníaco misturado.
Saem todas.
De repente já
os três começaram a sentir uma coceirinha aqui outra ali! A coceira vem muita
vez da nossa cabeça.
Novamente no
Mercedão, ar condicionado, a caminho de casa.
Aquela região
costeira é uma beleza! O mar forma lagoas interiores ao longo da praia e da
estrada que corre um bom tempo mesmo ao seu lado. Estrada deserta. Dia lindo,
águas limpíssimas, de um azul que... é uma tristeza estar tão longe!
- E se a gente
tomasse já aqui um banho nestas águas maravilhosas? Aproveitamos para procurar
e catar as carraças. Se por acaso as trazemos ainda, podem agarrar-se ao estofo
do carro e depois vai ser um Deus nos acuda para acabar com elas.
Boa idéia.
Despimo-nos inteiramente, começando por uma minuciosa pesquisa nas roupas,
incluindo meias e botas. Tudo em perfeito estado de infestação insetívora.
Depois sentadões
naquela água morna, limpa, qual imensa banheira, começou a inspeção pelos pés,
pernas, virilhas, barriga, sovacos. Nada. Cabeça dentro de água bem escovada
com as unhas, não deixava qualquer hipótese às ditas carraças, carrapatos,
artrópode miserável, aracnídeo nojento, acarino da família dos ixodídeos, de
abdome unido e confundido com o cefalotórax, aberturas traqueais na parte
posterior e ventral do corpo, e hipostómio armado de espinhos. Um horror, ainda
por cima quando se sabe que as suas larvas são hexápodes.
De fato com
este complicado curriculum o nosso
cuidado em não deixar um único desses seres viverem como ectoparasitas
coceirentos nos nossos corpos, era plenamente justificável.
Por fim sempre
há uns locais do nosso corpo que só enxergamos com a nossa própria vista se nos
munirmos de conveniente espelho, objeto que normalmente não se leva para uma
caçada às perdizes. Não é necessário indicar qual é essa parte do corpo, mas
para que não fiquem dúvidas quanto à veracidade desta descrição, é bom que se
esclareça que se trata da região anal.
Para aí se
procurarem os tais animais com o hipóstomo armado de espinhos, a única solução
foi cada um virar o traseiro para outro, que tinha que pôr o seu olho bem no olho do analisado. Como era necessário que
ambos curvassem o corpo, um para expor amplamente o possível local de abrigo
dos sobreditos artrópodes, e o outro para melhor o inspecionar... O ridículo da
cena é indescritível!
Mas a bem da
verdade há que deixar consignado que nem um só dos três deixou de inspecionar e
ter sido convenientemente inspecionado!
O banho foi uma
delícia. Não apetecia sair dali, mas houve que ir embora, depois de agredida a
natureza com um espetáculo de olho por
olho, um tanto, não pornográfico, mas no mínimo, indecoroso.
Acabámos
chegando a casa, sãos e salvos e limpos.
Por via das dúvidas, eu
tomei o tal banho com amoníaco!
O outro parceiro e um grande
caçador, homem de muito caráter e amigo, meu impecável colaborador na fábrica
de cervejas. Fizemos muito trabalho em conjunto e várias caçadas.
Um dia chegou o azar. Um
desastre horrível com um elefante e o meu amigo não resistiu.
O Luis Alvim Cardoso,
deixou-me tão chocado, que decidi que nunca mais caçaria. E assim aconteceu.
Nunca
mais nada soube da sua simpática família. Se alguém souber, gostaria que me
comunicassem.
09/07/2018
Como sempre, lido com gosto.
ResponderExcluirVenha mais...