domingo, 7 de julho de 2019



Amigos - 30

Hoje vamos à caça. Caçar foi, durante muitos dos anos que passei em África, o que mais seduzia. Por outro lado, se sempre havia alguma espécie de remorso por se matar o animal, por outro não se caçava mais do que se podia depois comer, e, essa comida, fosse de rolas, perdizes, pintadas, patos, lebres ou coelhos, antílopes ou pacaças, era uma delícia. E daí esquecer o “mal” que se fazia pelo tão bem que sabia.
Vou começar por uma caçadinha em Portugal com um dos mais antigos amigos com quem quem cacei.
Alentejo, aí pelos anos 50. Em casa dum amigo e colega. Saímos para dar uma volta aos coelhos, terra lavradaseca, cor entre o cinza e o bege, lá vamos os dois andando. De repente estaco, fico imóvel e olho para baixo: tinha um coelho todo encolhido bem entre os meus pés! Não podia atirar, com é óbvio, Dei um toque no traseiro do bichinho que teve a infelicidade de correr e acabou na panela.
Esse amigo foi entretanto trabalhar para São Tomé, onde ficou desde 1952 até 75, administrava uma roça, com uma casa senhorial que nada ficava a dever a qualquer Ritz do planeta, e onde fiquei esplendidamente instalado.

O tipo de casa “humilde” onde fiquei! Aqui com o ainda meu parente, 
Humberto Gomes de Amorim,
quando em 1954 (e não 58) passei em São Tomé a caminho de angola

Eu estava na Cuca, 1963, em Luanda e fui a São Tomé para lançar a cerveja de barril, os famosos finos, de lá, chopes de cá. Dei “um curso” de Tiradores de Cerveja, em que o colega quis participar – com muita habilidade! – e nos intervalos andou comigo a mostrar-me uma boa parte da Ilha, as plantações de cacau, onde se viam antúrios e orquídeas por todo o ledo, um inebriante cheiro de canela, uma vegetação luxuriante, uma Ilha que me marcou bastante.
O meu colega, e muito amigo, o  Júlio Cunha Rego foi sempre muito amável.
Depois que fomos corridos de África ainda nos encontrámos em saudosos almoços de colegas, em Évora. Depois... eu no Brasil, longe de todos...
Nesta foto, com os “alunos” do Curso de Tiradores de Cerveja está ele na frente, no meio, tendo na mão uma pasta (muito bonita, por acaso!) com as instruções eu atrás, à minha direita o Libório que era o técnico da Cuca e à esquerda o nosso representante na Ilha. Os outros, donos de bares que iniciaram a venda da cerveja em barril, cujos nomes... já lá vão 56 anos!

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Um dos meus primeiros parceiros de caça, de quem falei um tanto no livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”, onde descrevo caçadas incríveis que, mesmo que eu viva mais 500 anos jamais vou esquecer, era um sujeito duma alegria contagiante, um parceiro sensacional e um ótimo caçador. Com ele as histórias permanecem vivas na memória e são muitas. Vou escolher uma tirada daquele meu livro (esgotado !!!).
Quando se tratava de caça grossa, normalmente pacaças, o pisteiro era fundamental. Sebastião, o nosso habitual pisteiro era um companheirão formidável. Sempre alegre, já avô, consciente, sabia que seguir pacaças feridas dentro da mata era temeridade a evitar. Mas chega sempre o dia em que o inevitável acontece.
Depois de algum tempo de procura, o encontro com a manada, capim seco muito alto mal dava para ver as costas das pacaças correndo, o jeep avança e de cima sai um tiro que derruba um dos animais. Quando o carro se aproxima e pára, aquele reúne forças, levanta-se de novo e foge para dentro da mata sem que alguém volte a atirar, por falta de visibilidade.
O Ninocas, o mais maluco e alegre de todos os parceiros de caça, com uma carabina FN 9,3, uma arma possante, corre para a entrada da mata e aí estaca. O Sebastião aventurou-se um pouco mais, e entrou uma dezena de metros. Ele era o pisteiro, quem tinha de indicar o caminho! Ninocas um pouco atrás, arma pronta a atirar. De repente a pacaça, ferida e à espera de se vingar estava atenta, avança, pega o Sebastião, e sai lá de dentro correndo, com o Sebastião agarrado à cabeça dela e gritando:
- Aiué! Aiué! Não atira, patrão. Não atira, patrão!
Se o patrão atirasse podia atingi-lo, claro! e todos ficaram aterrados sem nada poder fazer para acudir ao nosso Sebastião. Felizmente a pacaça depois de galopar um pouco fora da mata, deve ter-se assustado ao deparar com o jeep na sua frente, bruscamente estaca e retrocede. Com esta parada foi o Sebastião sacudido da cabeça do bicho e safou-se! Ao passar de novo pelo caçador este desfechou-lhe um outro tiro a poucos metros de distância que a fez cair de vez. O Sebastião estava lívido, mas nada de ferimento. Uma sorte louca. O resto do dia foi de grande risada com o não atira patrão, mas maior foi ainda a risada quando ao fim do dia de volta à sanzala para aí passar a noite. Mal chega, corre para a mulher e diz-lhe:
- Mulhé, eu moria! Mulhé, eu moria! Quero tudo bêbado! Eu moria mesmo!
Imagine-se como foi aquele serão! Não faltou carne nem bebida! Sebastião foi dignamente elevado à dignidade de Grande Forcado.
Infelizmente não tenho nem uma foto do grande Nelson Peixoto, o Ninocas, nem do velho e tão amigo Sebastião, mas guardo grande saudade deles.
Voltei a encontrá-lo em Luanda, de onde não quis sair, quando ali fui em 1991. Caçadas... já eram. Vivia numa modesta casa, com uma simpática companheira angolana que nos preparou um almoço principesco: lagostas e as famosérrimas gambas daquela terra.
Sobrevivia do “esquema”, o termo usado naquele tempo quando tudo era difícil e caríssimo de encontrar, sobretudo alimentos e bebidas, mas à boa moda de Angola o povo encontrou maneira de sobreviver, em terríveis condições comprando e vendendo de tudo a todos!
O Ninocas criou um esquema inteligente. Mandava vir do sul, sobretudo de Moçamedes, alimentos frescos, como legumes, batata e outros e trocava-os na fábrica de cigarros pelo preço da tabela dos mesmos. Só que no mercado negro, único lugar onde se encontravam, custavam “n” vezes mais, o que lhe dava para viver na sua simplicidade!
Como eu trabalhava com uma empresa internacional pediu-me para ver se lhe arranjava uma barcaça de desembarque, da II Guerra, porque poderia então multiplicar o seu negócio carregando no Sul e descarregá-la em Luanda em qualquer praia sem necessitar de lugar no cais sempre cheio e sempre em greve!
Foi difícil conseguir algo que lhe servisse, uma das razões seria o altíssimo custo do transporte para Angola. Ainda trocámos alguma correspondência, nessa altura por fax e um dia... não tive mais retorno.
Soube bem mais tarde que o meu querido amigo, o Ninocas tinha ido descansar!
Bem merecia.
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Outro parceiro de caça, em que quase sempre se incluía o Zé Neto e o Zé Batista Borges, era quase meu vizinho. Uma mão cheia de filhos, que eu tratava como sobrinhos queridos, sobretudo o mais velho, e um bom atirador na caça.
Volta e meia, ao andar por aqueles matos, lugares muitas vezes isolados, parecendo perdidos no meios de nada lá se encontrava uma casa de comércio, modesta, um português emigrado que das tripas fazia coração para sobreviver, mas onde sempre se encontrava, pelo menos, uma cerveja fresquinha para nos ajudar a suportar aquelas andanças ao sol, ao calor e à muita poeira que saía das picadas.
Quando eu entrava nessas casas a primeira coisa que eu fazia era dar uma olhada al derredor para ver se encontrava algo que me interessasse e por ali estivesse esquecido. Comprei umas quantas recordações e não só, nessas minhas averiguações.
Um dia, logo de entrada vislumbrei no alto dumas prateleiras umas quantas garrafas de vinho tinto Romeiras, cheias de pó que denunciavam um pouco a sua antiguidade. Era vinho de custo mais elevado que não daria para beber todos os dias. E perguntei ao comerciante:
- Há quanto tempo tem aquelas garrafas ali?
Não me lembro da resposta mas voltei:
- E quanto custa cada uma?
- Posso fazer por “x”.
- Quantas tem?
Tenho uma vaga ideia que seriam umas oito ou dez.
- Vou levar todas.
O meu parceiro da caçada, quis logo que eu dividisse com ele o achado arqueológico! Tive que lhe dizer que se tivesse querido que fizesse o mesmo do que eu.
Ficou um pouco chateado, mas acabou tudo bem quando lhe dei uma para ele beber ao jantar, quando chegasse a casa.
Pois é, o meu amigo Martim Dornellas Cisneiros um dia teve um grave problema de saúde, foi evacuado para Portugal e nunca mais o vi.
Num passeio no velho e famoso “Argus”

Um grande abraço, Martim. De vez em quando bebo outro copo por nós os dois, lembrando aquelas garrafas! E as caçadas.

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Já escrevi várias vezes que comecei a minha vida em África, por Benguela, em 1954, casado, as únicas pessoas que conhecia eram os meus colegas da Lusolanda, empresa onde fui trabalhar com as máquinas agrícolas da Massey-Harris.
Semana toda de trabalho e ao domingo um pouco de praia, naquela maravilha que é a praia Morena com o seu porta-aviões  e as suas casuarinas.


A jovem esposa, com a barriga a crescer, sentava-se na areia, o nosso cão ao lado, e eu ia jogar um pouco de futebol (?) com os colegas para logo que começasse a suar entrar naquele mar que só seve ter igual lá no Éden!
De repente olho para trás e vejo uma senhora que se aproxima da minha mulher e estabelece animada conversa.
Pensei que seria para pedir dinheiro para qualquer caridade e fingi que não via. Mas logo estava a ser chamado.
Essa senhora tinha dois filhos em Portugal, um a estudar em Coimbra e outro de férias tinha arranjado um namorico com a minha cunhada, com quem veio a casar.
Foram os filhos que escreveram à mãe, a dizer-lhe que estava ali um casal novinho, etc.. para que desse um amparo social. E deu
Logo nesse dia levou-nos para jantar em sua casa. O marido não tinha paciência para visitas, cerimónias e outras coisas, e nós logo fomos avisados de que ele, assim que acabasse de jantar se ia meter na cama. Tudo bem.

Natural de Moçamedes, com 15 anos faleceu o seu pai deixando viúva e cinco filhos. Este jovem tomou nas costas o encargo de sustentar a família e foi trabalhar. Toda a vida foi um incansável batalhador.
Acabámos o tal jantar e o senhor sentou-se na sala, numa animadíssima conversa comigo que foi até à meia noite. Jamais isso tinha acontecido, e logo fomos adotados por aquele tão simpático casal.
A senhora adotou a minha mulher que passou a frequentar a elite benguelense onde as senhoras jogavam cartas.
E ele que soube eu gostava de caçar, fez o que também nunca fazia: sábado à tarde desafiava-me para ir com ele dar uma volta pelos arredores da cidade, para ver se caçávamos alguma coisa. Um coelho ou outro, talvez um pequeno antílope, mas a maioria das vezes só caçámos o magnífico pôr do sol dos morros que sobranceiam Benguela.
Vão muitos anos passados, mas os amigos o tempo não apaga da memória.
Passámos a chamar-lhes Mãe Amália e Pai Simeão Madeira de Abreu, nesta fotografia ainda mais novo do que quando o conheci.



Quando me despedi da Lusolanda e resolvemos voltar a Portugal, e levar os nossos poucos trastes, ele, que tinha uma grande empresa de madeiras com marcenaria, fez questão de embalar essa nossa mobília em madeira de lei, Jirassonde, madeira vermelho escura, muito bonita, que exsuda uma resina cor de sangue, (Omulilosonde - chora sangue!), Pterocarpus angolensis, de que depois mandei fazer uma cama e uma cómoda para o quarto do nosso primeiro filho.  Infelizmente a madeira teria precisado de secar pelo menos dois a três anos e, apesar dos móveis terem ficado bonitos, empenaram o suficiente para serem mais tarde abandonados!
Teve um fim triste o Pai Simeão. Quando de repente se viu em pré falência ficou desiquilibrado e teve que ser internado, em Luanda, na psiquiatria.
Ainda o visitei algumas vezes lá. Muito triste, magro, desligado da vida, um dia fechou os olhos. Lembro-o com frequência, saudade e muito carinho.

Jun/2019










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