Amigos - 30
Hoje vamos à caça. Caçar foi, durante muitos dos
anos que passei em África, o que mais seduzia. Por outro lado, se sempre havia
alguma espécie de remorso por se matar o animal, por outro não se caçava mais
do que se podia depois comer, e, essa comida, fosse de rolas, perdizes,
pintadas, patos, lebres ou coelhos, antílopes ou pacaças, era uma delícia. E
daí esquecer o “mal” que se fazia pelo tão bem que sabia.
Vou começar por uma caçadinha em Portugal com um
dos mais antigos amigos com quem quem cacei.
Alentejo, aí pelos anos 50. Em casa dum amigo e
colega. Saímos para dar uma volta aos coelhos, terra lavradaseca, cor entre o
cinza e o bege, lá vamos os dois andando. De repente estaco, fico imóvel e olho
para baixo: tinha um coelho todo encolhido bem entre os meus pés! Não podia
atirar, com é óbvio, Dei um toque no traseiro do bichinho que teve a
infelicidade de correr e acabou na panela.
Esse amigo foi entretanto trabalhar para São
Tomé, onde ficou desde 1952 até 75, administrava uma roça, com uma casa senhorial
que nada ficava a dever a qualquer Ritz do planeta, e onde fiquei
esplendidamente instalado.
O tipo de casa “humilde” onde
fiquei! Aqui com o ainda meu parente,
Humberto Gomes de Amorim,
quando em 1954 (e não 58) passei
em São Tomé a caminho de angola
Eu estava na Cuca, 1963, em Luanda e fui a São
Tomé para lançar a cerveja de barril, os famosos finos, de lá, chopes de cá.
Dei “um curso” de Tiradores de Cerveja, em que o colega quis participar – com
muita habilidade! – e nos intervalos andou comigo a mostrar-me uma boa parte da
Ilha, as plantações de cacau, onde se viam antúrios e orquídeas por todo o
ledo, um inebriante cheiro de canela, uma vegetação luxuriante, uma Ilha que me
marcou bastante.
O meu colega, e muito amigo, o Júlio Cunha Rego foi sempre muito amável.
Depois que fomos corridos de África ainda nos
encontrámos em saudosos almoços de colegas, em Évora. Depois... eu no Brasil,
longe de todos...
Nesta foto, com os “alunos” do Curso de
Tiradores de Cerveja está ele na frente, no meio, tendo na mão uma pasta (muito
bonita, por acaso!) com as instruções eu atrás, à minha direita o Libório que
era o técnico da Cuca e à esquerda o nosso representante na Ilha. Os outros,
donos de bares que iniciaram a venda da cerveja em barril, cujos nomes... já lá
vão 56 anos!
§ § § § §
Um dos meus primeiros parceiros de caça, de quem
falei um tanto no livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”, onde descrevo
caçadas incríveis que, mesmo que eu viva mais 500 anos jamais vou esquecer, era
um sujeito duma alegria contagiante, um parceiro sensacional e um ótimo
caçador. Com ele as histórias permanecem vivas na memória e são muitas. Vou escolher uma tirada daquele meu livro
(esgotado !!!).
Quando se tratava de
caça grossa, normalmente pacaças, o pisteiro era fundamental. Sebastião,
o nosso habitual pisteiro era um companheirão formidável. Sempre alegre, já
avô, consciente, sabia que seguir pacaças feridas dentro da mata era temeridade
a evitar. Mas chega sempre o dia em que o inevitável acontece.
Depois de algum tempo de procura, o encontro com a
manada, capim seco muito alto mal dava para ver as costas das pacaças correndo,
o jeep avança e de cima sai um tiro que derruba um dos animais. Quando o carro
se aproxima e pára, aquele reúne forças, levanta-se de novo e foge para dentro
da mata sem que alguém volte a atirar, por falta de visibilidade.
O Ninocas, o mais maluco e alegre de todos os
parceiros de caça, com uma carabina FN
9,3, uma arma possante, corre para a entrada da mata e aí estaca. O
Sebastião aventurou-se um pouco mais, e entrou uma dezena de metros. Ele era o
pisteiro, quem tinha de indicar o caminho! Ninocas um pouco atrás, arma pronta
a atirar. De repente a pacaça, ferida e à espera de se vingar estava atenta,
avança, pega o Sebastião, e sai lá de dentro correndo, com o Sebastião agarrado
à cabeça dela e gritando:
- Aiué! Aiué! Não atira, patrão. Não atira, patrão!
Se o patrão
atirasse podia atingi-lo, claro! e todos ficaram aterrados sem nada poder fazer
para acudir ao nosso Sebastião.
Felizmente a pacaça depois de galopar um pouco fora da mata, deve ter-se
assustado ao deparar com o jeep na sua frente, bruscamente estaca e retrocede.
Com esta parada foi o Sebastião sacudido da cabeça do bicho e safou-se! Ao
passar de novo pelo caçador este desfechou-lhe um outro tiro a poucos metros de
distância que a fez cair de vez. O Sebastião estava lívido, mas nada de
ferimento. Uma sorte louca. O resto do dia foi de grande risada com o não atira patrão, mas maior foi ainda a
risada quando ao fim do dia de volta à sanzala para aí passar a noite. Mal
chega, corre para a mulher e diz-lhe:
- Mulhé,
eu moria! Mulhé, eu moria! Quero tudo bêbado! Eu moria mesmo!
Imagine-se como foi aquele serão! Não faltou carne nem
bebida! Sebastião foi dignamente elevado à dignidade de Grande Forcado.
Infelizmente não tenho nem uma foto do grande Nelson
Peixoto, o Ninocas, nem do velho e tão amigo Sebastião, mas
guardo grande saudade deles.
Voltei a encontrá-lo em Luanda, de onde não quis sair,
quando ali fui em 1991. Caçadas... já eram. Vivia numa modesta casa, com uma
simpática companheira angolana que nos preparou um almoço principesco: lagostas
e as famosérrimas gambas daquela terra.
Sobrevivia do “esquema”, o termo usado naquele tempo
quando tudo era difícil e caríssimo de encontrar, sobretudo alimentos e
bebidas, mas à boa moda de Angola o povo encontrou maneira de sobreviver, em
terríveis condições comprando e vendendo de tudo a todos!
O Ninocas criou um esquema inteligente. Mandava vir do
sul, sobretudo de Moçamedes, alimentos frescos, como legumes, batata e outros e
trocava-os na fábrica de cigarros pelo preço da tabela dos mesmos. Só que no
mercado negro, único lugar onde se encontravam, custavam “n” vezes mais, o que
lhe dava para viver na sua simplicidade!
Como eu trabalhava com uma empresa internacional
pediu-me para ver se lhe arranjava uma barcaça de desembarque, da II Guerra,
porque poderia então multiplicar o seu negócio carregando no Sul e
descarregá-la em Luanda em qualquer praia sem necessitar de lugar no cais
sempre cheio e sempre em greve!
Foi difícil conseguir algo que lhe servisse, uma das
razões seria o altíssimo custo do transporte para Angola. Ainda trocámos alguma
correspondência, nessa altura por fax e um dia... não tive mais retorno.
Soube bem mais tarde que o meu querido amigo, o Ninocas
tinha ido descansar!
Bem merecia.
§ § § § §
Outro parceiro de caça, em que quase sempre se incluía
o Zé Neto e o Zé Batista Borges, era quase meu vizinho. Uma mão cheia de
filhos, que eu tratava como sobrinhos queridos, sobretudo o mais velho, e um
bom atirador na caça.
Volta e meia, ao andar por aqueles matos, lugares
muitas vezes isolados, parecendo perdidos no meios de nada lá se encontrava uma
casa de comércio, modesta, um português emigrado que das tripas fazia coração
para sobreviver, mas onde sempre se encontrava, pelo menos, uma cerveja
fresquinha para nos ajudar a suportar aquelas andanças ao sol, ao calor e à
muita poeira que saía das picadas.
Quando eu entrava nessas casas a primeira coisa que eu
fazia era dar uma olhada al derredor para ver se encontrava algo que me
interessasse e por ali estivesse esquecido. Comprei umas quantas recordações e
não só, nessas minhas averiguações.
Um dia, logo de entrada vislumbrei no alto dumas
prateleiras umas quantas garrafas de vinho tinto Romeiras, cheias de pó que
denunciavam um pouco a sua antiguidade. Era vinho de custo mais elevado que não
daria para beber todos os dias. E perguntei ao comerciante:
- Há quanto tempo tem aquelas garrafas ali?
Não me lembro da resposta mas voltei:
- E quanto custa cada uma?
- Posso fazer por “x”.
- Quantas tem?
Tenho uma vaga ideia que seriam umas oito ou dez.
- Vou levar todas.
O meu parceiro da caçada, quis logo que eu dividisse
com ele o achado arqueológico! Tive que lhe dizer que se tivesse querido que
fizesse o mesmo do que eu.
Ficou um pouco chateado, mas acabou tudo bem quando
lhe dei uma para ele beber ao jantar, quando chegasse a casa.
Pois é, o meu amigo Martim Dornellas Cisneiros um
dia teve um grave problema de saúde, foi evacuado para Portugal e nunca
mais o vi.
Num passeio no velho e famoso “Argus”
Um grande abraço, Martim. De vez em quando bebo outro
copo por nós os dois, lembrando aquelas garrafas! E as caçadas.
§ § § § §
Já escrevi várias vezes que comecei a minha vida em África, por
Benguela, em 1954, casado, as únicas pessoas que conhecia eram os meus colegas
da Lusolanda, empresa onde fui trabalhar com as máquinas agrícolas da
Massey-Harris.
Semana toda de trabalho e ao domingo um pouco de praia, naquela
maravilha que é a praia Morena com o seu porta-aviões e as suas casuarinas.
A jovem esposa, com a barriga a crescer, sentava-se na areia, o nosso
cão ao lado, e eu ia jogar um pouco de futebol (?) com os colegas para logo que
começasse a suar entrar naquele mar que só seve ter igual lá no Éden!
De repente olho para trás e vejo uma senhora que se aproxima da minha
mulher e estabelece animada conversa.
Pensei que seria para pedir dinheiro para qualquer caridade e fingi que
não via. Mas logo estava a ser chamado.
Essa senhora tinha dois filhos em Portugal, um a estudar em Coimbra e
outro de férias tinha arranjado um namorico com a minha cunhada, com quem veio
a casar.
Foram os filhos que escreveram à mãe, a dizer-lhe que estava ali um
casal novinho, etc.. para que desse um amparo social. E deu
Logo nesse dia levou-nos para jantar em sua casa. O marido não tinha
paciência para visitas, cerimónias e outras coisas, e nós logo fomos avisados
de que ele, assim que acabasse de jantar se ia meter na cama. Tudo bem.
Natural
de Moçamedes, com 15 anos faleceu o seu pai deixando viúva e cinco filhos. Este
jovem tomou nas costas o encargo de sustentar a família e foi trabalhar. Toda a
vida foi um incansável batalhador.
Acabámos o tal jantar e o senhor sentou-se na sala, numa animadíssima
conversa comigo que foi até à meia noite. Jamais isso tinha acontecido, e logo
fomos adotados por aquele tão simpático casal.
A senhora adotou a minha mulher que passou a frequentar a elite
benguelense onde as senhoras jogavam cartas.
E ele que soube eu gostava de caçar, fez o que também nunca fazia:
sábado à tarde desafiava-me para ir com ele dar uma volta pelos arredores da
cidade, para ver se caçávamos alguma coisa. Um coelho ou outro, talvez um
pequeno antílope, mas a maioria das vezes só caçámos o magnífico pôr do sol dos
morros que sobranceiam Benguela.
Vão muitos anos passados, mas os amigos o tempo não apaga da memória.
Passámos a chamar-lhes Mãe Amália e Pai Simeão Madeira de
Abreu, nesta fotografia ainda mais novo do que quando o conheci.
Quando me despedi da
Lusolanda e resolvemos voltar a Portugal, e levar os nossos poucos trastes, ele,
que tinha uma grande empresa de madeiras com marcenaria, fez questão de embalar
essa nossa mobília em madeira de lei, Jirassonde, madeira
vermelho escura, muito bonita, que exsuda uma resina cor de sangue, (Omulilosonde - chora sangue!),
Pterocarpus angolensis, de que
depois mandei fazer uma cama e uma cómoda para o quarto do nosso primeiro
filho. Infelizmente a madeira teria
precisado de secar pelo menos dois a três anos e, apesar dos móveis terem
ficado bonitos, empenaram o suficiente para serem mais tarde abandonados!
Teve um fim triste o Pai
Simeão. Quando de repente se viu em pré falência ficou desiquilibrado e teve
que ser internado, em Luanda, na psiquiatria.
Ainda o visitei algumas
vezes lá. Muito triste, magro, desligado da vida, um dia fechou os olhos. Lembro-o
com frequência, saudade e muito carinho.
Jun/2019
Lido com o maior gosto.
ResponderExcluirForte abraço