quarta-feira, 24 de julho de 2019


Amigos - 32

Um dos agentes da Cuca pelo interior de Angola, comerciante em Vila da Ponte que se chamou Vila Artur de Paiva e hoje é Kuvango, era homem dos seus quarenta anos, baixo, seco e rijo, muito vivo e alegre.
Sendo eu o responsável comercial da Companhia, visitei todos eles, ajudando-os a organizar as suas vendas.
Com este, depois de visitada a sua área, disse-lhe como devia proceder, que em menos de um mês estaria a vender o dobro que vinha fazendo.
Não acreditou, mas cumpriu, e no fim desse primeiro mês telefona-me, muito animado. Tinha mais do que dobrado as vendas. E eu virei uma espécie de Nostradamus, mas sobretudo fizemos uma ótima amizade.
Português, beirão, estava em Angola desde os seus vinte anos. Para ali fora cedo por não querer cumprir o serviço militar! Estava-se em plena Segunda Guerra Mundial.
Logo ali chegado, com algum crédito junto a casas comerciais das cidades principais, foi estabelecer-se região dos ganguelas, perto de Vila da Ponte onde depois se veio a fixar. Por essa época estava a começar a construção do prolongamento da linha férrea de Lubango às minas de ferro da Jamba. Muita gente contratada (!) para essa obra, que era preciso alimentar.
Para obras públicas ou de envergadura importante, em que se empregava bastante mão de obra local, nativa ou não, o governo concedia a experientes caçadores uma licença especial de caçador profissional, que lhes permitia abater peças de caça para fornecer alimentação a esses grupos de trabalho. Eram homens com grande conhecimento das regiões onde atuavam, atiravam muito bem, e sabiam perfeitamente o que podiam e não deviam abater.
O nosso amigo antes de ir para Angola nunca tinha dado um tiro, e admirava profundamente o caçador profissional que ele recebia com frequência na sua modesta casa de comércio, e com quem já tinha saído algumas vezes. Via o outro apontar e com um só tiro sempre abatia alguma peça de caça, façanha que o fascinava. Um dia perdeu o acanhamento:
- Eu gostava muito de experimentar dar um tiro.
- Quando quiser. Vamos lá.
Pega na carabina do amigo faz uma marca numa árvore e dispara. Onde foi parar a bala, ninguém sabe. Ficou um quanto desapontado mas o caçador tranquilizou-o. Ele mesmo no princípio tinha dificuldade em acertar, mas tudo era uma questão de hábito.
O jovem sonhava em ter uma arma e ir à caça. Ao primeiro caixeiro viajante que depois disto por ali passou, comprando gêneros de produção local e recebendo pedidos de encomendas que seriam depois remetidas pelos camionistas, pediu um favor. Deu-lhe dois mil escudos para que lhe comprasse uma carabina. O dinheiro que sobrasse gastasse todo em balas. E ficou à espera, ansioso. Uns seis meses depois o mesmo viajante voltou, e trazia a arma! Que maravilha! Uma .22 Long e uma quantidade grande de caixas com balas.
Animadíssimo mal pôde esperar. Fez uma cruz no muro do pátio da sua casa, enfia uma bala na câmara, afasta-se uns dez metros, dispara, mas o tiro acerta a mais de meio metro do centro! Como era possível? O caçador profissional onde punha o olho punha o tiro e ele nada! Apontou de novo, devagar, e percebeu então porque não acertava. O cano oscilava muito. Tremia. A arma não ficava quieta, e assim ele não conseguia apontar.
- Hummm! É isso. Preciso apoiar o cano.
As janelas da sua casa tinham trancas por dentro. Pega uma delas, com um serrote faz-lhe um corte em V numa das pontas, e vai experimentar de novo. A tranca no chão, o cano apoiado dentro do V, agora sim, a arma ficava quietinha e ele apontava à vontade.
Mal escureceu, chamou um dos empregados de mais confiança a quem entregou uma bateria e um farolim, e não foi preciso andarem muito para que logo surgissem a brilhar dois olhos dum pequeno cabrito do mato. O Dik-Dik (Sylviacapra grimmia), bichinho que pesa uns dez a doze quilos, comendo tranquilo umas verduras na sua própria horta. Aproximam-se a poucos metros, o cabrito despreocupado, não pára de comer.
Farolim apontado, o Maia que tinha levado três balas, mais do que suficiente para o que ele queria - o caçador profissional com cada tiro abatia uma peça - apoia a tranca no chão, assenta o cano da arma na ranhura em V, firme, aponta, dispara, e a bala segue zunindo pela noite. O cabrito, ótimo, cheio de saúde, assustou-se, pestanejou e continuou comendo. Um sinal ao ajudante para que se aproximem um pouco mais. Dez metros, menos ainda. Tranca, arma apoiada, mas a tão curta distância já não era fácil apontar. A tranca era comprida, e dificultava o apontar para baixo. Segundo tiro, e a segunda bala segue correndo atrás da primeira. Atirador mais espantado do que o cabrito!
- Psst! - e novo gesto para que avançassem. Ficaram a uns cinco metros.
Com tranca a pontaria estava mais difícil e o caçador, de fraca estatura, teve que se pôr nas pontas dos pés para tentar mirar o bichinho. Terceiro tiro. Terceira bala a zunir na noite dos ganguelas. O cabrito? Continuava a pastar, ali mesmo na frente deles.
Admirado com a falta de sorte e já sem balas.
- Kuata espingarda!
Entrega a arma ao ajudante faz-lhe sinal que fique quieto e continue a apontar o farol. Passa fora do foco, vai por detrás do pobre cabrito e dá-lhe com a tranca na cabeça! Matou.
O empregado só disse
- Háca! Patrão! - e riu com vontade.
Patrão foi avisando:
- Você não vai contar nada disto. Diz que patrão matou só no terceiro tiro, porque não está habituado neste espingarda. Ouviu?
- Sim siô. Patrão.
Entrados em casa o empregado num instante põe em cima da mesa tudo o que seria o jantar do patrão e sai para o pátio, onde sempre à volta do fogo, se juntava com os restantes empregados mesmo de outras casas comerciais. Pouco depois começam a ouvir-se sonoras e gostosas risadas, e o patrão desconfiado vai ver o que se passa. O seu ajudante na caça, aquele a quem pedira segredo absoluto do modo como apanhara o cabrito, de pé, teatralizava a história gesticulando e enfatizando mais ainda o que de ridículo a situação pedia!
Nessa noite o grande segredo ficou sendo do conhecimento de todos os habitantes daquela povoação!
Mas não desistiu. Só deixou foi de levar ajudante para a caça! Durante meses, sem que o ânimo lhe faltasse continuou a caçar, mas sempre sem sucesso, e a sua fama de péssimo matador foi-se consolidando. Aliás nem péssimo era. Não era! Sempre que regressava os vizinhos perguntavam
- Então?! O que caçaste hoje?
Nada. Sempre nada. Até que um dia...
Sempre insistindo, está numa área de capim bem alto e vê, vindo por um trilho, direitas a ele, duas Quissemas ou Burro do Mato ou Côco (Cobus Defassa Penricei). As quissemas são animais com uma altura dorsal de cerca de um metro e vinte, e peso que ultrapassa facilmente os duzentos quilos. Esconde-se atrás de uma árvore ao lado do caminho, carrega a arma e espera. Passa o primeiro animal a uns três metros, e sai o primeiro tiro. Cai uma. A outra fica especada sem saber de que lado estava o perigo, o matador carrega de novo, volta a disparar, e... mata a segunda!
Hurrraaah! Hurrraaah! Quebrara o enguiço. Tinha finalmente caçado! E logo duas quissemas!
Mas, e agora, como levar os bichões, enormes, para casa? Não tinha a menor condição de levar uma só quanto mais duas, e se fosse pedir ajuda, ninguém o ia acreditar. Solução? Simples. Cortou as quatro orelhas, meteu-as nos bolsos, e tentando aparentar tranquilidade que não tinha, volta com ar feliz à povoação, e vai direto a um vizinho, o único que tinha uma carrinha, pedir ajuda para carregar uns animais que tinha morto ali.
- Você? Você nunca matou nada! - e gozava.
Este com ar solene mete a mão no bolso e joga em cima do balcão o documento comprobatório:
- Duas quissemas. Duas. Estão a menos de dois quilómetros daqui.
- Puxa. Querem ver que é mesmo verdade!
Comerciante, mulher e filha conferem as orelhas, que eram verdadeiras. Duas do lado esquerdo e duas do direito, tinham que ser de dois animais. Querem ver que ele caçou mesmo?! A povoação despovoou-se. Todos acorrem ao local indicado, onde as quissemas jaziam. Foi uma festa. Carne para toda a gente. A consagração do caçador que, com esses dois tiros, mesmo disparados à queima roupa, deve ter aprendido como se atirava! Acabou sendo um ótimo caçador, e mais do que isso um estupendo e alegre companheiro de caça, que por fim até passou a saber que as balas fazem ricochete na água!
O interior de Angola, sobretudo o centro e sul é um planalto com altitude média acima dos 1.000 a 1.200 metros, o que lhe proporciona um clima seco, independente da quantidade de chuvas que caem, noites frias, madrugadas geladas formando com facilidade camadas de gelo na água que fica ao relento em tinas ou baldes, e temperaturas que durante o dia ultrapassam os 40º C. Nunca nessas áreas faltava cerveja gelada! Durante a noite ficavam as garrafas expostas ao frio, e de madrugada antes de se sair para a caça guardavam-se em caixas de papelão que por sua vez se embrulhavam em pesados cobertores de papa, indispensáveis para se poder dormir dentro das barracas de campismo, normalmente gélidas, e depois colocadas na melhor sombra das árvores. Ao meio dia, sob um calor de quarenta graus ou mais, os caçadores no regresso ao acampamento, sequiosos, encontrarem no meio do mato, a centenas de quilómetros do que se podia chamar civilização, uma cerveja muito gelada, era o máximo!
Nessas regiões, a saída de madrugada sob um frio que gelava até as idéias, obrigava os caçadores a agasalharem-se com múltiplas peças de roupa quente, cachecol, chapéu, luvas e tudo que pudesse proteger daquele frio imenso em cima de jeeps abertos! Assim que o sol nascia começava o streap tease!  Primeiro o cachecol, depois o blusão pesado, depois as luvas e as lãs, que tudo se ia jogando para a cabine do carro, até que por fim seguiam só em camisa quando não tiravam esta também! Ao lado do condutor ficava um monte de roupa!
Longe eram as chamadas terras do fim do mundo, lá no sul de Angola, região dos cuanhamas, dos ganguelas, dos cussos e de muitos mais, onde uma caçada pressupunha uma estadia mínima de uma semana, sendo necessário levar todo o indispensável equipamento de campismo, primeiros socorros para qualquer emergência, boas reservas de cerveja e vinho para beber e oferecer aos sobas que disponibilizassem pisteiros, que não saíam sem sua autorização, e ainda arroz, batatas, sal, café, conservas, frutas e mais um monte de bicuatas, que incluía cadeiras, mesas, camas de campanha, candeeiros Petromax, sacos de lona especiais para água de beber, que pendurados na frente do carro, com o deslocar deste mantinham a água fresca apesar do sol escaldante, enfim tudo o que uma semana daquelas dava direito. Muitas vezes levava-se cozinheiro que ficava feliz com esta variante da sua vida insossa na cidade. E até um barco, a remos ou com motor de popa quando se previa ter que atravessar algum rio mais largo.
Eram centenas de quilômetros para se atingir o coração da região, onde mais facilmente se podiam encontrar os grandes animais como o elefante. Cruzavam-se no caminho planuras imensas, savanas, chanas ou anharas (pastos úmidos e férteis) cheias de caça diversa, sobretudo antílopes desde a minúscula Seixa aos Nunces, Songos, Quissemas, e até Gnus e as enormes Gungas ou Elandes, e muitas outras espécies, que à noite os faróis dos carros refletindo nos seus olhos pontilhava de luzes. Espetáculo magnífico. Algumas áreas pareciam cidades iluminadas.
Um dos animais que habita nessas anharas é o Cuio ou Lebre Saltadora (Pedetes capensis). Não chega ao dobro do tamanho de uma lebre e lembra um canguru pequeno com membros posteriores muito desenvolvidos, sobre os quais se desloca saltando, e os anteriores muito pequenos de tamanho suficiente só para ajudar a levar a comida à boca. Herbívoro inofensivo, vive durante o dia em tocas, só à noite sai para se alimentar. Seus olhos refletem a luz com imenso brilho, vendo-se, quando se lhes apontam os faróis, uns pontos luminosos moverem-se aos saltos!


No caminho para as tais terras do fim do mundo, um grupo de caçadores de que eu fazia parte, mais o meu amigo, o Arnaldo que foi de motorista e dois jovens, ao atravessar uma dessas chanas ou anharas, já noite, farol ligado varrendo os lados da picada para se gozar o espetáculo, avistam perto do carro um desses cuios.
- Vamos pegá-lo!
De cima do carro continuou-se a farolinar, sem perder o cuio de vista. Os dois rapazes saltaram logo fora, e no meio da noite só se via a estreita faixa que o farol iluminava, correram para pegar o cuio, que com a forte luz a bater-lhe nos olhos saltava também sem saber para onde, mas aproximando-se do carro.
Tropeçavam os garotos em troncos caídos que naquele contraste luz-escuridão não se distinguiam, davam tombos formidáveis, mas o divertimento era superior e por nada deste mundo interrompiam aquela caçada, à mão, sem no entanto alcançarem o animal, que igualmente perdido, conseguia assim mesmo enganá-los.
Eu encostado à traseira do jeep ria com aquele espetáculo. De repente o pobre cuio num dos saltos, cego com a luz, bate na lateral do jeep e cai estonteado. Num instante despi o blusão, cobri o bicho e segurei-o! Estava terminado o pega-pega!
E agora o que fazer com ele? Adaptou-se um engradado com uma das caixas dos mantimentos e o levámos.
Já tarde da noite chegam ao local previsto para acampar, como sempre junto a uma sanzala para que aproveitar a companhia e infra-estrutura daquelas gentes. Descarrega tudo dos carros, arma-se a tenda de campismo, prepara-se uma refeição rápida, deixa-se o cuio no engradado de madeira, e deita-se a turma.
Durante toda a noite o cuio fez um incómodo barulho roendo as tábuas da caixa e esse ruído no meio do profundo silêncio do interior de África era suficiente para não deixar dormir quem tivesse o sono leve!
De manhã constatou-se que o bichinho tinha roído quase uns cinco centímetros duma das tábuas e pouco faltou para ter alcançado a liberdade. O esforço foi meritório e de qualquer modo estava decidido soltá-lo, contra a vontade do povo nativo que queria aproveitar o petisco. Resolveu-se no entanto dar uma chance ao cuio: primeiro dava-se-lhe a liberdade e só quando ele se tivesse distanciado uns cem metros podia alguém começar a correr para o pegar! Foi outra cena.
O cuio, habituado somente a sair de noite, de dia vive escondido em tocas, e por isso vê muito mal. Assim que foi solto começou a correr, sempre aos saltos, ziguezagueando, estonteado. A criançada, só ela autorizada a pegar o animal, esperava ansiosa o sinal da largada para sair atrás. Este dado, uns vinte dispararam numa tremenda algazarra para ver quem o apanhava. Acabaram por pegá-lo, e com o destino numa panela acabou este bichinho simpático.
O grande parceiro, nesta e em outras caçadas foi o Carlos Vieira da Maia.
Continuaremos a falar dele no próximo texto.

Um comentário:

  1. Descrição muito engraçada e pormenorizada do equipamento para a caçada e do convívio nas aldeias de Angola.

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