sexta-feira, 31 de maio de 2019


O Vinho de Colares

Pelas faldas norte da serra de Sintra, onde os ventos do Noroeste trazem água e frescura, corre um pequenino rio que teimosamente vai-se desembaraçando para chegar ao mar.
Quantas vezes fui no Elétrico de Sintra para a Praia das Maçãs! Os meus avós tinham uma quinta em Sintra onde eu sempre passei as férias de verão e, já depois deles terem ido, ainda para lá passei uns anos.
Era uma “viagem” magnífica. Aqueles carros abertos, sempre um belo fresquinho, até porque a estrada era, e é marginada por arvoredo, sobretudo belos plátanos que em muito lugar formavam quase um túnel.
Criança, ia com os meus irmãos e alguém a tomar conta de nós, e depois, adolescente em grupo de amigos sintrenses, alguns que, como eu, ainda resistem aos tempos, e muitos que já descansam.
Demorava para percorrer aqueles quase 13 quilómetros uns 45 minutos, era quase british nos seus horários, mas ninguém se queixava pelo tempo que durava o trajeto. Atravessava o que dantes foi Concelho e hoje é só freguesia, Colares. Era um passeio extremamente agradável, tanto na ida para a praia, a descer, como no regresso a subir. O carro elétrico seguia, sempre tranquilo, e às vezes até nos permitia sair um pouco e acompanhá-lo a pé! Brincadeiras de moleque.
A linha margeava a estrada e esta aquele riozinho bonito, estreito, sempre com belíssima água a percorrê-lo, conhecido por alguns como o Rio Galamares, local que fica no caminho para a praia, mas o seu verdadeiro nome é Rio das Maçãs, que deu o nome à praia onde encontra o mar.
Rio conhecido desde... desde ninguém sabe quando, mas já João de Barros no seu livro traduzido do húngaro, a Crónica do Imperador Constantino, de 1522 – que ele diz ser antepassado dos reis de Portugal – nos conta: “Rio muy gracioso que pelo meio destes pomares corre coalhado de muita fruta e flores. E com um ruído suave se mete no mar onde faz a repartição delas, lançando-as por tantas partes, que daí a 6 ou 7 léguas se acham muitas maçãs, peras, marmelos e outros sinais de terra, com que os navegantes se alegram. E saindo dos pomares entram em terra de pão, vinho, azeite e outros géneros de mantimentos e criação de gados, que a fertilidade da terra ali dá.”
Mapa de 1923, onde se vê bem o Rio das Maçãs. A linha azul. Clicar para ampliar.

E terra de pão, bom. Ótimo. No princípio dos anos 40, havia em Colares, quase ao lado da Adega Cooperativa, uma espécie de “tasca” – naqueles tempos era o que havia – onde no regresso da praia sempre parávamos para comprar o pão e levá-lo para o almoço na quinta dos avós, onde, ao domingo  se juntavam 15 a 20 convivas. E que pão....
Terra dos saloios, “çahroi” do tempo dos árabes, nome que lhes ficou porque esse era o nome do imposto que os agricultores tinham que pagar para vender os seus produtos em Lisboa.
Entre muita coisa que os anos me “obrigaram” a guardar, muito lixo e muita coisa interessante, infelizmente não vinho, não porque se teria estragado, e porque o fui entornando goela abaixo, está um pequeno opúsculo, editado em 1938 pela Adega Cooperativa de Colares.


Uma delícia e uma tristeza. Delícia pela descrição e fotos daqueles tempos – há mais de 80 anos – e uma tristeza por ver que pouco sobra da área plantada de vinha, e daí menos pomada, a melhor de Portugal.
Colares, pitorescamente situada num dos contrafortes da serra, a região ainda é belíssima pela sua exuberante vegetação, é um dos mais admiráveis centros de excursão desta região paradisíaca, como escreveu Jorge de Sena. Região afamada por suas frutas, pêssegos e maçãs, mas sobretudo pelo seu vinho.
Sabe-se que os romanos ali estiveram, e os árabes, haja em seu abono o nome que deixaram aos agricultores de toda aquela região.
Sintra foi conquistada aos mouros em 1147 e logo D. Afonso Henriques lhes proporcionou reduzidos tributos: “Os peões lavrando com um boi pagavam um sexteiro de trigo e cevada; lavrando com dois ou mais um quarteiro por alqueire de mercado; de cinco quináles de vinho e daí para cima davam um puzal. Por tudo o mais que ganhassem eram isentos de tributos.”
(Nota: um sexteiro era igual a ¾ de alqueire ou 1/6 de moio, moio igual a 60 alqueires. Quinal era uma medida de vinho equivalente a 5 almudes. Um almude teria 17 a 25 litros, mas puzal não encontrei o que seria! Mas como todas estas medidas evoluíram muito, não servem, aqui, mais do que uma ideia...)
Nota 2. Lancei um apelo a escritores e historiadores e 5 minutos depois tinha a resposta ao “puzal” = puçal, medida equivalente a 5 almudes. Dunque, igual a “quintal”! Muito obrigado meu querido amigo Dr. José Costa Carvalho)
Neste foral de 1154, Sintra limita com o Rio de Galamares! Só mais tarde começou a ter dois nomes. Rio navegável que entrava no mar por um porto sem areias. Onde?
Em 1255 D. Afonso III, concedeu o primeiro foral a Colares, e fez doação do Reguengo de Colares a Pedro Miguel e sua mulher Maria Estevão, com obrigação de plantarem vinhas. E ainda mandou publicar que quem cortasse  vinha ou derribasse caça era condenado a pagar 300 maravedis.
D. Diniz ajustou com os mouros que possuíssem terras em Colares, e doou a seu filho, infante Pedro Afonso uma adega, diversas vinhas azenhas e outros domínios em Sintra e arredores.
O Livro das Colheitas de D. Afonso IV mostra que em Sintra a produção de vinho era de três modios em Sintra e três nos arredores.
D. Fernando (1367-1383) autorizou a primeira exportação de vinho da região.
Em 1385, logo após a Batalha de Aljubarrota D. João I doou a vila de Colares ao Condestável D. Nuno Álvares Pereira, que ficou na família por séculos..
D. Manuel em 1516 renovou o foral e aumentou os privilégios de que gozavam, com a mercê de não pagarem portagem – o tal saloio – e reduzindo para um quarto o tributo dos frutos.
Tudo isto mostra que o vinho Ramisco tem desde o século XIII a sua “carta de nobreza”!
Havia naquela região dois tipos de vinho a que chamavam de Ramisco mas o verdadeiro é o vinho de areias. Pensam alguns geólogos que a costa, há cerca de mil anos estava muito mais terra adentro do que hoje. Consta até, pelo foral de Afonso III, que em Colares havia um porto de mar, do tempo do romanos, chamado Basa, que tudo leva a supor que hoje seja o Banzão!  
Foram os ventos do N e NO que carregaram a areia que hoje compõe os terrenos onde é, aliás eram, plantadas as vinhas do Ramisco.
E isso é que lhe dá toda a grande qualidade.
É bom não esquecer que foi a única cepa que a filoxera não conseguiu destruir, comendo as raízes. E para compreender um pouco isso vamos ver como se plantava esta vinha.
A profundidade das areias até atingirem o subsolo argiloso, oscila entre 3 e 10 metros. Os agricultores abriam valas de grande profundidade até alcançarem a argila onde espetavam os bacelos até 25 cm. de profundidade e, à medida que estes iam crescendo iam juntando à sua volta um pouco de areia. Demorava uns cinco anos até a cepa estar pronta. O curioso é que as raízes não se desenvolvem pela argila mas através das areias!
Ao abrirem as valas, algumas muito fundas, as cavadores corriam o risco de, com um deslizamento das laterais, ficarem soterrados. Para que isso não acontecesse tinha sempre um homem com um cesto na mão  e, se as paredes ameaçassem cair ele rapidamente atirava o cesto ao cavador que o colocava na cabeça. Assim não só podia respirar como era fácil de o removerem com rapidez!
Em 1938 havia 1690 hectares de vinhedos em chão de areia e 128 em terra rija, com uma produção de 2000 pipas (840.000 litros) e 600 agricultores. Em 1932 na tese que o prof. Gonçalves Pereira apresentou à Universidade de Toulouse diz que a produção atingia 1.276.041 litros de vinho de areias, mais de 50% do que acontecia poucos anos depois! Mas não se pode confiar nos números anteriores à criação da Adega Cooperativa.
Hoje parece que só sobram vinte e pouco hectares de vinho de areias, e não tardam a desaparece! Um crime! E uns 65 em chão rijo, o que... Hoje esses terrenos estão ocupados com construções, loteamentos e outros crimes, o que torna o plantio e cultivo em chão de areias, muito dispendioso.
Assim a produção atual, total de Vinho de Colares não deve ultrapassar os 10.000 litros, o e equivalente a escassas, muito escassas 25 pipas.
O que fica de tudo isto é que o Ramisco, tinto, de areias, é, de longe o melhor vinho de Portugal. Baixa graduação alcóolica mas uma enorme capacidade em envelhecer com grande nobreza e se poder beber com até mais de 20 anos!
Como todas as coisas, é preciso saber bebê-lo como este velho conhecedor e apreciador


Quanto você leitora ou leitor dava para estar agora a beber uns copos com esta figura fantástica? Sentado num banco de pedra e a acompanhar esta maravilha com o pão, bom, da região... já agora com chouriço que sempre vai muito bem como conduto!
Aaahhh! Tempos que já lá vão!

28/5/2019

6 comentários:

  1. FICO À ESPERA DOS TAIS 5 ALMUDES DE COLARES, PARA ACOMPANHAR COM NOVA LEITURA DELICIADA DA CRÓNICA:. ABRAÇO

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  2. Francisco,
    Afinal, sempre foi desvendado o mistério do puzal/puçal. Deo Gratias.
    O assoreamento das fozes dos rios no litoral ocidental cá da terrinha foi um fenómeno que terá começado ainda no séc. XII e tem uma explicação simples: A desmatação/desflorestação para aumentar as terras de agricultura que uma demografia em rápida expansão exigia.
    Apesar da violência, das guerras e das pragas, o certo é que nos começos da 2ª metade da Idade Média, por toda a Europa, as populações cresciam e, havendo mais bocas para alimentar e mais braços para trabalhar, teve início um intenso processo de arroteamento de novas terras, mesmo que se não rompesse o ciclo de uma economia de subsistência. Limpou-se mato, desbastaram-se florestas, enxugaram-se pântanos - e o que antes retinha a água das chuvas, as raízes, as manchas verdes e, até, as bacias de águas paradas, foram desaparecendo.
    As chuvas passaram a lavar os solos, as enxurradas, sem obstáculos, arrastavam os inertes para as linhas de água e os rios levavam-nos até ao mar, depositavam-nos no encontro das marés, formando praias, cordões dunares, uma ou outra lagoa, uma ou outra pateira.
    Foi assim no rio Pó (Itália), por exemplo. Foi assim em Ofir, na Torreira/S. Jacinto, no Mondego (junto à Figueira da Foz), em Salir do Porto e em Porto de Mós (que ficaram distantes da linha costeira), na Areia Branca, nas lagoas de S. Martinho do Porto, de Óbidos, da Albufeira (Setúbal) e de Melides - só para dar alguns exemplos.
    Por isso, o assoreamento da ribeira das Maçãs, a que devemos o famoso Ramisco, está em boa companhia.
    Abraço
    APM

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  3. Conhecia o vinho mas não a sua história. Muito curiosa também a informação completa do plantio. Era uma Sintra tão diferente … Hoje é muito apreciada pelos turistas ( é bom em todos os aspetos para o país) mas tornou-se mais "quase" um dormitório de Lisboa nos arredores ...

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  4. O amigo é um escritor, não um escrevinhador. E sabe que não precisa de nós para ser lido e visto. Ajudar a divulgar artigos seus a amigos e conhecidos meus é espalhar conhecimento. Nós é que agradecemos.
    Um abraço
    Eduarda

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  5. Uma maravilha! Muito obrigado .
    Artur Freitas

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  6. QUE MARAVILHA DE LIÇÃO DE HISTÓRIA DE UMA REGIÃO QUE TANTO ME DIZ.
    MUITO OBRIGADO FRANCISCO. MAIS UMA VEZ!
    ABRAÇOS DO ANTÓNIO

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