sábado, 18 de maio de 2019



“Era o Vinho meu Bem...”


Faz tempo que não bebo um copo junto com aqueles que têm paciência de ler o que vou escrevendo. O chamado beber “virtual”, mas com amizade funciona até muito bem.
Hoje vamos beber um pouco e deixar a água crescer na boca, porque uma das grandes qualidades, ou virtudes?, do vinho é que ele melhora sempre quando bebido com amigos, mais consolida a amizade, e melhor ainda quando acompanha alguma comidinha, seja aquele prato que fazia a vovó, guisado económico, mas de grande qualidade, ou aquelas saudosas tapas castelhanas, ou o terrível e insubstituível bacalhau, ou até algum daqueles pratos, modernos, de grandes chefs (atenção chefs e não chefes!), não daqueles que só enfeitam a porcelana, com uma flor, dois riscos de molhos coloridos, e duas folhinhas dum capim que só eles sabem como se chama e onde se encontra. Segredos de big-chef.
A verdade (coitado do Sidarta Gautama, o grande Buda, que morreu sem ter descoberto a verdade) sobre vinhos e comidinhas boas (algumas) foram-nos uma vez mais apresentadas, por uma linda jornalista, através dum livro magnífico que nos fala duma quantidade de vinhos e os melhores petiscos regionais de Portugal para acompanharem esses vinhos.
Não são os vinhos que acompanham a comida, mas a comida que melhor serve para acompanhar um determinado tipo de vinho. Aquilo a que hoje moderna e sofisticadamente se está a chamar “harmonização”, palavra que me recuso a usar.
Sei que existe harmonia sobretudo quando se fala de música, raramente numa família que costuma ter uma ovelha ranhosa ou mal disposta, mas no vinho...
Só há uma coisa mais que não “harmoniza” com o meu paladar, é ter sempre que encontrar em qualquer vinho aromas de frutos secos ou frescos, amoras, figos, flores e outros vegetais, e há até quem encontre aromas minerais. Eu já quis encontrar esses aromas minerais, cheirei um monte de pedras de diferentes qualidades, que lavava cuidadosamente sob água corrente para não influenciar o aroma básico, cheirei mármore, granito, basalto, quartzo, feldspato e mica, esmeraldas e até um diamante que aluguei para essa finalidade, e, humilde, confesso que, ou o meu nariz não presta ou as pedras não cheiravam a nada.
Não, desisti.
Lembro quando fui trabalhar com cerveja. 1957. Comecei a estagiar na Fábrica do Porto, e uma das coisas que me fizeram logo procurar era onde estava o gosto do lúpulo! Eu, e os meus queridos colegas, irmãos, Alfredo Figueiredo e António Melícias, bem bebíamos um monte de “finos”, mas descobrir o lúpulo... nada. Então fui para o laboratório, fiz uma infusão de lúpulo, concentrada, enchi uns seis ou oito copos com cerveja, tasquei uma boa dose da infusão no primeiro copo, um pouco menos no segundo e por aí adiante até ao último que nada levou. Chamei os colegas para ver se descobríamos o mistério. O primeiro copo era simplesmente intragável! Fomos provando os outros, intervalando com umas bolachas de água e sal para lavar as ofendidas glândulas gustativas e enganar as pituitárias e, Deus seja louvado, acabámos por encontrar o tal gosto do lúpulo no copo virgem, e nunca mais deixámos de perceber e sentir esse paladar.
Creio que vou ter que fazer o mesmo com amoras, figos e flores diversas, mas jamais as misturarei num bom copo de vinho. Quem sabe também com algum calhau!
Deixo isto para os cientistas, chamados enólogos – agora são oenólogos...!!! – e vou tascando uns copos sem me preocupar com essas minudências.
O livro a que me refiro, como não podia deixar de ser, tem referências a alguns desses aromas (belas pituitárias), que não discuto.


Mas apresenta uma coleção de vinhos que considero, à distância de uns 10.000 quilómetros (Portugal-Brasil, Rio), uma covardia! Serão certamente vinhos magníficos, disso não tenho a menor dúvida, mas que, ou aqui chegam por valores absurdos, ou simplesmente não chegam.
O ano passado comprei num supermercado em Lisboa umas garrafas de “Trinca Bolotas”, alentejano arretado, que me custaram, cada, € 6,50 (cerca de R$ 29), pois o preço médio no mercado brasileiro é de R$ 138! Mais de € 30!
Imaginem estar a ler um livro com descrição de vinhos magníficos, umas comidinhas muito bem confeccionadas (às vezes em quantidade... mini, mas enfim) e pensar que tudo isso é uma espécie de “Sonho de uma noite de verão”, como tão bem harmonizou Felix Mendelssohn, e é ótimo de ouvir, com um copo, qualquer, desde que seja bom, ali, à ilharga.
Já pensaram numa entrada de “ervilhas com croquete de morcela e chouriço” de Trás-Os-Montes, acompanhado com um branco Palmeirim de Inglaterra, das castas Arinto, Malvasia Fina, Roupeiro e Moscatel Galego, que só de ler o rótulo ficamos a sonhar com os Doze de Inglaterra, Magriço,  D. Álvaro Gonçalves Coutinho, Camões e até com Almeida Garrett? Lembram?
Eis entra um cavaleiro, que trazia
Armas, cavalo, ao bélico serviço;
Ao Rei e às damas fala e logo se ia
Pera os onze, que este era o grão Magriço;
Abraça os companheiros, como amigos
A quem não falta, certo nos perigos.
«A dama, como ouviu que este era aquele
Que vinha defender seu nome e fama,
Se alegra e veste ali do animal de Hele *......

Ou “uma presa de porco com gnocchi de açorda e creme de ervilhas” servido com um tinto Pera Manca, de Évora, um dos melhores vinhos de Portugal que existe desde o tempo dos romanos? Aquele que o famoso Geraldo Geraldes bebeu junto com os amigos Mendo Soares, Afonso Rodrigues, Martim Nunes e Paio Gomes quando festejaram a conquista daquela cidade aos infiéis!
Faltou um prato com beldroegas? Não, não faltou. Procure no livro que encontra.
Ahhh! Comer e beber assim, misturando belos petiscos com magníficos vinhos, deixando os sonhos da “harmonização” serem levados pela História de Portugal e ainda sabendo que estamos a tratar do físico e do estômago, por bondade e atividade do resveratrol que previne o câncer, melhora a aparência da pele e diminui o colesterol!
Livro muito recomendável, sobretudo aos amigos a quem, infalivelmente, me junto em Lisboa para os encontros super saudosos e gastronómicos, como o Trio Maravilha, os Filósofos, os Paleolíticos e os Neolíticos bem como aos apreciadores paulistas, sobretudo o Tomás, o Zé Guilherme e a Joana, que não falta!
Livro muito bem apresentado, belíssima edição, escrito com muita graça e muita qualidade variada: na escrita, nas receitas e nas apresentações dos vinhos.
Parabéns uma vez mais à Maria João, que não deixou passar em branco, nem em tinto, o meu preferido Ramisco da Adega Regional de Colares, de que sou fã desde... desde que me lembro, e que pode ser apreciado com a gulosa receita que vem na página 233...
Enfim. Covardia estar a relembrar tudo isto e ter que me limitar ao entorno carioca que vamos levando com cautela e alguma dedicação culinária sem jamais faltar nem branco nem tinto!
Saúde !

Uma dica: se não quiserem estar a cozinhar pratos complicados, que tal umas fatias de pão com chouriço que pede logo uns quantos copos do tinto ou do branco... bons.
Três sugestões, por ordem alfabética: ou vão à Assenta buscar o pão, ou a Évora, ou ao Pobral, ali, antes da Ericeira. Tem outras “fontes”, mas estas são garantidas.
Aqui, no Brasil pão bom? É mentira.

08/05/2019

2 comentários:

  1. Dispenso o lúpulo...E até levo o pão, não tão bom, mas bonzinho. Guarda uma garrafa do tinto p gente beber. Em breve.

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  2. Gostei muito. Só li hoje, tive duas netas a passar o fim de semana, os pais foram ao Douro,( um casamento da filha dum administrador da Sogrape !!!) por graça de vinhos … Escreve com muita graça e humor, é muito agradável de ler as suas postagens.Bjs Ana Mariano de Carvalho

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