Benfiquista
doente, sofredor pelo rádio (!), sonos agitados, eficiente e respeitado
inspetor bancário, magnífico apetite, animado parceiro nos saudosos finos no
Baleizão, e nas carteadas de bridge, antigo jogador internacional da equipa de
vôlei de Portugal, belo e animado parceiro. Um metro e noventa de simpatia e
amizade que vinha de longe.
Este, é
só um primeiro retrato a la minuto, seco,
não consegue mostrar quem e como era este amigo.
Como
fanático de futebol, melhor dizendo, do Benfica, aos domingos era imperioso
sentar-se ao lado do rádio e ouvir o relato do desafio que o seu clube
enfrentava. E sofria se fosse um adversário mais valorizado. Até com os
fracotes a sua atenção não desgrudava. Por fim, se vitorioso, uma Cuca bem geladinha dava o caso por
encerrado.
Creio
que isso lhe fazia até mal ao sistema cardiovascular!
Aquele
metro noventa, secos, sem barriga, causava espanto, porque o apetite, sobretudo
quando duma jantarada em casa de amigos, o que era relativamente frequente na
“velha e dolente Luanda”, exibia-se sem quaisquer rodeios, e dava gosto aos
restantes convivas vê-lo saborear uma magnífica bacaulhazada, quase em disputa
com outro amigo de voracidade semelhante.
Ar
feliz, dava gosto ouvir as suas risadas; contagiosas.
Parte
integrante do grupo mais chegado que tínhamos em Luanda, não havia jantar ou
fadistice em nossa casa onde ele e, evidente, a sua baixinha, faltassem.
Mas ele,
e nós, nos esbaldávamos bem era numas saídas, quase religiosamente semanais,
para nos encontrarmos ao fim do dia no famoso e bem antigo Baleizão (que Deus
haja), ali, no Largo Infante Dom
Henrique, mais conhecido pelo Largo do Baleizão, onde se bebia a melhor, ou uma
das melhores cervejas a copo de Luanda. Os finos ou chopes. Juntávamos uns
quantos amigos, ocupávamos uma mesa debaixo de uma das árvores, e ficávamos
tomando uns e mais copos até que fossem horas de jantar. Conversávamos,
normalmente ríamo-nos bastante.
As
cervejarias mais frequentadas eram o Baleizão, que fazia sorvetes, picolés - desde há tanto tempo que em
Angola, para a criançada um picolé era chamado de Baleizão - o Hotel Europa e a Cervejaria Suíça. Dependia de quem na
ocasião estava tirando melhor a
cerveja, e sobretudo quem tinha os melhores e mais variados aperitivos. O
despique entre as cervejarias estava no saber tirar um fino com categoria (regulagem da pressão, temperatura,
copos bem lavados e gelados, etc.) e na invenção dos aperitivos, os tira-gosto,
que tinham que ser bons e muito baratos, uma vez que eram oferta da casa. Baratos e salgados ou picantes para levarem os
fregueses a beberem mais e mais cerveja. E bebiam. Aperitivo tinha de tudo:
dobradinha guisada, camarão sete barbas cozido, pedacinhos de pão frito, tudo
com tanto jindungo que além de deixar
a goela ardida, fogo que os finos
logo procuravam apagar, deixava ardendo também as beiças e tudo à sua volta.
Mas como eram bons! Além disto ainda havia os tradicionais tremoços, jinguba,
caju torrado na hora, raspas de bacalhau cru, pedacinhos de torresmos, quifufutila às vezes com um pouco de jindungo misturada (!) e tudo o mais que
a capacidade criativa dos donos dos bares fosse capaz de preparar. Quando havia
alguma fome extra, o Baleizão arranjava umas sanduíches de presunto cru servido
num pão ótimo e aquecido no forno, a estalar... hummm! Eram uma delícia.
Foram
grandes vivências. E essas ninguém nos tira.
Aos
domingos, nos primeiros tempos da nossa estadia em Luanda, havia um trecho na
praia da Ilha, do lado do mar, que um grupo já mais antigo ocupava há anos, e
onde tinham colocado dois postes onde amarravam uma rede, para voleibolar um pouco naquele calor. O
campo, marcado no chão com o calcanhar, que logo desaparecia com os “atletas”
correndo atrás da bola, muita animada discussão se tinha sido ou não ponto, e o
nosso “internacional” era quem pontificava porque ser o único que sabia as
regras todas. E impunha-as! Nós os leigos e inábeis jogadores o que queríamos
era aquecer um pouco e depois correr e mergulhar naquelas águas magníficas. E
mais: tanto jogavam um ou dois de cada lado como seis ou sete, porque estavam
sempre entrando e saindo para ir mergulhar.
Quando
nos conhecemos? Não sei, mas éramos solteiros ainda. De tão longe que o
primeiro filho dele nasceu em Luanda, dez dias antes do nosso número três, e
quem lá esteve ao lado a consolar a jovem parturiente, foi a minha sogra!
Em
Angola as portas viviam quase sem fechadura. Lembro que este benfiquista, não
sei já em que ocasião – devia estar a mudar de casa, e a família em Portugal –
esteve algum tempo a viver lá em nossa casa, também não sei bem como, porque só
filhos nossos foram até oito e espaço de sobra não havia muito. Mas, à boa moda
angolana sempre havia lugar para mais um ou... dois.
Bem mais
tarde, quando depois do 25/abril regressámos de Moçambique e a nossa casa
estava ainda ocupada com um inquilino, fomos nós que nos albergámos na casa
dele que na altura estava até vazia.
Inspetor,
estimado e conceituado no mesmo banco onde eu também acabei as minhas
atividades profissionais em África, vivemos nesse período uma imensa incerteza
e preocupação com o futuro.
O banco
em Portugal caminhava para a bancarrota e os portugas não queriam lá os
retornados. Resultado, o Brasil foi quem nos acolheu.
De
inspetor bancário, nível de diretoria, começou por vender sapatos. Bem sei que
eram os melhores sapatos da época, com clientes certos e bons, mas certamente
foi uma grande paulada, que ele enfrentou de cabeça levantada e muita classe.
Algum
tempo depois a vida começou a correr-lhe melhor, mas, fumante inveterado, o
tabaco não lhe perdoou, como acabou também por fazer com um irmão dele. E
começam os problemas, graves, de saúde a manifestarem-se.
Volta e
meia, sustos grandes na família e nos amigos, que o iam ver no hospital.
Uma das
vezes, fui lá com o Zé Perestrello. Estava na UTI, cheio de tubos e complexas ligações
a máquinas. Estava... bem, perfeitamente consciente, o caso grave e/ou difícil,
controlado, e nós, os visitantes começámos na brincadeira com ele.
Tanta parvoada
devemos ter dito que o paciente ria a gargalhada! O barulho chamou a atenção
duma enfermeira que a primeira coisa que fez foi pôr-nos dali para fora.
Melhorou
talvez mais depressa.
Os problemas
repetiam-se. Muitas vezes fui a sua casa para lhe contar qualquer coisa que o
fizesse sair do estado de abatimento que foi tomando conta dele. E insistir que
largasse o maldito tabaco, coisa que, teimoso, nunca fez.
Regressou
a Portugal, e um dia, cedo demais, teve o descanso que merecia.
Amigo de
muitos anos, muita brincadeira e muita risada, o Fernando Fezas Vital. Saravá!
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Ainda há
pouco, a propósito de livros, escrevi um pouco sobre um outro amigo, mas creio
ter-me debruçado mais sobre o que ele escreveu do que sobre alguns detalhes que
fomos vivendo juntos e que foram cimentando a nossa amizade.
Creio
que nos conhecemos aí por 1962, em Luanda, quando o mandaram para Angola
cumprir o serviço militar, já formado em direito e talvez no início da sua
carreira diplomática no Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Aliás
por esse tempo apareceram em Angola amigos de infância que eu não via há muitos
anos, e onde foi possível recuperar antigas amizades.
A nossa
casa tinha sempre a porta aberta, com um gastronómico ritual todas as quartas
feiras, quando fazíamos o “almoço dos
solteiros”, onde apareciam civis que tinham mandado a família à “metrópole”,
e um ou mais “guerreiros” que vinham partilhar conosco, e até outros, antes
desconhecidos, com quem fizemos amizade, muitos dos quais, pós 25/4 não vimos
mais.
Para
esses almoços nunca sabíamos quantos vinham, Entre um e mais de meia dúzia!
Alguns novos vinham pela mão de camaradas já nossos amigos. O nosso “diplomata”
apareceu poucas vezes, mas também o encontrávamos em casa de colegas seus,
nossos amigos de infância.
Depois de
sairmos de Angola vim encontrá-lo como Consul Geral no Rio de Janeiro, e os
contatos foram mais frequentes, incluindo quando ele e a querida Senhora
Consulesa foram passar um fim de semana numa fazenda onde eu penei quase um
ano!
Mais uns
anos longe uns dos outros, uns raros e casuais encontros, até que em 1991 fui
eu que passei uns dias na residência dos senhores embaixadores, em Bona. Eu que
sou pouco ou nada de ir ao cinema tive uma recepção especial: a senhora
Embaixatriz tinha comprado bilhetes para irmos à segunda sessão ver o “Jurassic
Park”, o que, para quem já chegava cansado da viagem, ouvir o ronco descomunal
do “Tirano Rex”... foi dose! O que me valeu foi ter dormido nos intervalos dos
roncos!
No dia
seguinte levou-me para uma recepção na Embaixada de Espanha. Eu tinha ido à
Alemanha para visitar uma Feira de máquinas e não levava roupa “decente”! Abriu
o guarda roupa e lá encontramos um casaco que me serviu!
Infelizmente
quando esteve na Santa Sé não consegui coordenar uma ida a Roma sem que a sua
casa estivesse cheia de hóspedes!
Depois
de tudo isto, do correr dos anos, só me restaram os encontros que tenho
promovido com os velhos amigos quando vou a Lisboa.
E aí, os
abraços, pesando anos de amizade e milhares de quilômetros de saudade,
mitigavam um pouco o que não pudemos viver mais perto uns dos outros.
O último
em que estivemos juntos foi em 2012. Depois perdi, perdemos todos, este amigo
que foi uma pessoa a todos os títulos excecional António Pinto da França.
Aqui,
jovem de 30 anos, acompanhado da mulher, quando na Indonésia desempenhou uma
difícil função diplomática com imensa categoria, até hoje lembrado e
homenageado.
* * * * *
Não sei
já onde nos conhecemos. A ideia mais antiga vem de 1946 quando moravam numa
casa, em Lisboa, que ficava bem atrás da nossa, na rua seguinte, avenida
Visconde Valmor.
Muitos
anos depois, um quarto de século, fui encontrá-lo em Lourenço Marques, onde
creio que até terá nascido. Se não ali, algures em Moçambique, onde seu pai, o
famoso médico e a maior voz do fado de Coimbra, António Menano, viveu
praticamente toda a sua vida profissional.
O filho
era um dos mais hábeis relações públicas que conheci, uma simpatia contagiante,
e uma alegria que jamais acabava.
Ao mesmo
tempo um belíssimo e ótimo parceiro no golfe.
Teve um
dia que ir à (ex)Rodésia, tratar dum assunto delicado, para o que necessitava
de ali se encontrar com o ministro das Finanças.
Foi com
tempo, para no sábado jogar o seu golfe. Só, naquela terra, no clube de golfe
foi logo convidado para acompanhar dois jogadores. O correto entre golfistas é
(ou era?) simplesmente se cumprimentarem dizendo somente o primeiro nome e nada
de sobrenomes ou cargos.
O jogo
correu muito bem, sempre um papo descontraído, e no fim um whisky no bar. Aí,
perguntado ao que ia fazer na Rodésia, explicou que tinha que se encontrar com
o tal ministro para... não sei o que. O parceiro, amável perguntou-lhe onde
estava hospedado, disse que ia ver o que conseguia e que na manhã seguinte,
segunda feira, lhe telefonava.
Segunda
de manhã toca o telefone no quarto: “O
senhor ministro... manda avisá-lo que o pode receber pelas 10 horas!”
Tiro na
mosca. Lá vai o estrangeiro à hora
combinada e quando é introduzido no gabinete de Sua Excia. dá de cara com o seu
parceiro do golfe!
Missão
resolvida. Rapidinho e perfeitamente.
Muitas
vezes nos encontrámos em Lourenço Marques, umas vezes no golfe ou a beber uns
copos algures.
Até que chegou o malfadado
dia 21 de Outubro de 1974. Grande era já a confusão
naquela terra. A meio da tarde passam no centro da cidade alguns jipes com
soldados comandos, que desprezados e maltratados correm as ruas dando tiros
para o ar.
Essa história,
que eu vivi bem por dentro, conto-a em detalhe no meu livro “Contos Peregrinos
a Preto e Branco”.
A população
aterroriza-se. Não se sabe se é guerra entre brancos e pretos, se o que é. Os
pretos fogem dizendo que os brancos os querem matar e fazem barricadas em todas
as saídas da cidade.
Os que aí
tentaram passar, sem que fossem moradores dessas zonas periféricas, e mesmo
sendo, foram mortos. A maioria à paulada e catanada.
O meu amigo
ouve aquilo na rádio e decide ir levar o seu cozinheiro a casa. Ao chegar à
barricada pára atrás de outro carro, com três brancos dentro que apavorados
fecham as janelas. Abrem-lhes as portas, puxam-nos para fora e derrubam os
três. Mortos.
Grita para o
cozinheiro:
- Abre as janelas todas. Depressa.
Ele faz o mesmo
e abre a porta para sair, logo rodeado por uma turba de indivíduos carregando e
ameaçando com paus e catanas. Explica que vai levar o amigo a casa, mas eles
dizem que ali ninguém passa, e as ameaças aumentam.
Valeu-lhe
ser um homem alto. Talvez mais de metro e noventa. Uma voz sai do meio da turba
enlouquecida:
- “É o senhor Xico. Eu conheço-o bem.
Deixem-no passar!”
Não deixaram.
O cozinheiro que fosse a pé para casa e ele que retornasse para a cidade.
Tão nervoso
e abatido ficou que ao virar a primeira esquina e sem ver mais aquela zona de
massacre, encostou o carro. Não conseguia dirigi-lo.
Só nos
voltámos a encontrar uma vez, em Lisboa, onde com mais uns Coca-Cola nos juntámos para jantar.
Grande abraço,
lá onde estiveres, Francisco Paulo
Viterbo Menano, amigo Xico Menano.
Fev.19
Só um detalhe de correção. O Domingos nasceu dia dias depois de mim e não 10 dias antes.
ResponderExcluirTens razão. Nasceu dois dias depois!
ResponderExcluirGostei muito do BLOG aos seus amigos. O António Pinto da França era meu primo, lembro-me muito bem nessa idade … Eu fui visitar os meus avós António e maria Bernardina com 9 e 12 anos. O António estava lá a viver. Guardo recordações fantásticas de Luanda, praias, Quiçamba ? e até do rio Quanza na ultima vez já guardados com camiões de tropa dos 2 lados do carro ...Grande elogio para com os amigos, a amizade é eterna .Bj Ana
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