Amigos
– 16
Em todas as famílias há tios e primos de quem mais
gostamos, outros indiferentes como já escrevi. . Hoje “vou aos tios” e até a um
primo direito do meu pai.
De todos os tios, quem sempre levou a palma das nossas
preferências, quem sempre estava alegre – às vezes com alegria... um tanto
enológica – mas sempre um encanto.
Casado com uma irmã do meu pai, não teve filhos, bastante
gordo, chegando a pesar 140 quilos, bebia o seu copo, aliás bastantes copos,
mas foi o único, para conosco, que após ficarmos sem pai, fomos uma espécie de
sobrepeso incómodo para a família, mas ele arranjava sempre uma maneira de nos
dar algum dinheirinho, da maneira mais simpática que se pode imaginar.
Aos domingos, quando almoçava toda a família em casa
dos avós, assim que ele chagava perguntava:
“Quem
pode ir comprar cigarros para mim?” – Em geral ia eu, ou
o mais velho dos irmãos, que pouco depois nos deixava também.
Dava-nos ou 10 ou 20 escudos para comprarmos um maço
de “Navy Players” que custaria uns 3 ou 4 e o troco era a “nossa fortuna por
uns dias.
Eu teria os meus 10 anos fez-me sócio do Belenenses,
como ele era, a quem se referia como o “nosso belenensezinho”!
Era sócio, mesmo minoritário, de uma grande empresa de
navegação e ao mesmo tempo representante da Peugeot em Portugal (estamos a
falar dos anos quarenta!), e o seu trabalho era na estiva, o que o levava
diariamente a bordo dos navios que aportavam em Lisboa, quer para carga como
para descarga.
Isso dava-lhe a possibilidade de comprar a bordo umas
garrafinhas de whisky ou gin por preços baixíssimos, bem como outras coisas que
faziam as delícias das senhoras, porque eram sempre novidade.
Um dia trouxe de bordo uma das primeiras manifestações
de “futuro” a que eu assisti, e de que já falei: um belo rádio que trabalhava a
pilhas!
Com a representação da Peugeot dava-lhe para trocar o
carro com alguma frequência e, como naquele tempo a mecânica ainda estava caminhando
devagar, volta e meia o carro tinha as suas manias e parava no caminho.
Sobretudo entre Sintra e Lisboa, onde sempre passávamos os verões.
O tio, sereno, encostava o carro na berma, abria o
capô, olhava para dentro e dizia com ar entendido: “Deve ser alguma coisa! O melhor é chamar o mecânico!” E ali
ficávamos na estrada à espera que alguém passasse e fosse chamar o dito
mecânico!
Sempre tranquilo, num fim de semana, já noite, íamos a
caminho da Praia Grande, onde tinham construído a segunda casa de fim de
semana, onde hoje existem prédios. Seguíamos por uma reta a caminho de Colares,
tio e tia na frente, eu atrás, mas distraído não reparou que levava os faróis
altos, quando um carro vindo de frente encostou porque estava com a luz nos
olhos. Ao passarmos por ele, o indivíduo, casca grossa, berrou: “Ó seu cabrão, olhe os faróis!”
Sem se perturbar vira-se para mim e diz: “Ó Chico! Se calhar não baixei os faróis!”
É evidente que me fartei de rir.
Mais tarde, já em 1953 era eu que tinha o meu
magnífico Triumph Gloria, 1934. Velhotinho, mas uma delícia. A lubrificação da
cabeça do motor era feita por um tubo, externo, e um dia de tanto se lhe mexer
o dito tubo começou a pingar, pouco, mas por azar em cima do coletor de escape,
o que levava a fumaça para dentro do carro.
O magnífico Triumph !
O tio, que sempre saía de casa muito bem lavado,
penteado e vestido, levava com aquele fumo todo na cara e só dizia: “Ó Chico! Este carro é ótimo!”
Uma pessoa que todos adorávamos. Já passados os
setenta anos teve um grave problema e foi-lhe amputada uma perna. Perdeu o
gosto da vida. E acabou indo embora sempre a sofrer.
Meu muito querido tio Chico, Francisco Xavier de
Albuquerque d’Orey. Um dia vou chegar mais perto para lhe dizer o quanto, ainda
hoje sentimos a sua falta.
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A propósito, lembro bem dum irmão deste tio, que já
nada era à nossa família, mas que nós tratávamos como tio. Baixinho, igualmente
simpático e tranquilo, agrónomo, foi Director do Museu do Ultramar (em Belém).
Um dia apareceu em Angola numa missão técnica que se
chamou Missão do Bem-Estar Rural, dedicada ao desenvolvimento da agricultura
tradicional de Angola.
É evidente que foi uma alegria tê-lo recebido em
Luanda, onde sempre que podíamos, o tínhamos a jantar conosco. Alegre, ótima
companhia, decidimos passar a chama-lo de o Tio do Bem-Estar!
Algum tempo depois fomos nós a Portugal e ele fez
questão de nos retribuir com um jantar em sua casa, como toda a simpatia que já
conhecíamos. Nós éramos os principais convidados, mas ele convidou também um
amigo, gente MUITO importante, professor de direito, que foi colocado na nossa
mesa.
Falámos sobre Angola, onde nós muito gostávamos de
viver, e a certa altura sexa do alto
da sua cátedra, teve o desplante de dizer que África era uma... nem digo o quê,
e outras coisas parecidas o que muito me chocou, e não deixei depois de
comunicar ao anfitrião que, coitado, ficou bastante desolado.
Qual não é o meu imenso espanto quando soube, pouco
tempo depois que o sobredito sexa tinha
sido nomeado ministro do Ultramar!
Bramei aos céus! Como era possível que um indivíduo
que não gostava de África tinha sido nomeado para aquele cargo. Não digo o nome
dele. Que descanse em paz... se puder.
Estas e outras para a história de Angola.
Mas lembro com ternura e saudade o tio do Bem-Estar
Rural, José Diogo de Albuquerque d’Orey.
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Agora o único irmão homem do meu pai mais novo cinco
anos.
Sempre gostou de andar na farra, copos, confusões,
algumas idas à polícia por copos ou briguinhas, sem consequências de maior,
entrou em medicina e levou tempo a de lá sair. A farra ocupava-lhe muito tempo.
Mas acabou por de lá sair. Casou e foi como médico
para a Companhia dos Diamantes de Angola. Médico generalista.
Um dia um capataz deu um tapa na cara de um
trabalhador, durante a chamada das presenças, de manhã, e o homem caiu morto!
Um problemão. Entrou a polícia, não havia médico legista e ele com outro colega
tiveram que fazer a autópsia ao desgraçado para que o capataz não fosse
condenado por assassinato. Por estupidez e abuso de autoridade, sim.
Retalharam, durante horas o corpo do defunto, suavam
os médicos sem descobrirem a causa
mortis. Quando finalmente chegam perto da cabeça encontraram o problema: o
infeliz tinha uma das cervicais... “solta”! (o termo técnico será outro,
mas...)
Entretanto o tio lembrou-se de fazer alguns
comentários pouco abonatórios aos serviços médicos, o que lhe valeu, não lhe
renovarem o contrato, que aliás era bem pago.
Como teve a infelicidade de lhe verem lá nascer duas
filhas gémeas que não sobreviveram, não se incomodou muito por regressar a
Portugal.
E foi trabalhar com o pai, e o irmão, numa fábrica de
medicamentos de um “génio” em química; a primeira coisa que fez foi implicar
com ele, que se foi embora e a fábrica fechou. Para nossa alegria porque cada
vez que a fábrica fazia um medicamento novo, nós, crianças servíamos muito de
cobaias.
Morre o seu irmão, meu pai, e o pai deles, já velhote,
que comandava a empresa Estabelecimentos Herold, entrega-lhe a administração do
departamento agrícola: máquinas, cortiça e produtos químicos.
Teimoso que nem porta empenada e enferrujada, lá foi
levando as máquinas agrícolas com algum entusiasmo, sobretudo quando apareceram
as ceifeiras-debulhadoras, que no Brasil se chamam colheitadeiras, e que apareceram em Portugal primeiro que qualquer
concorrente, por seu intermédio.
Mas entretanto 0 Herold estava sem mais cabeças
dirigentes e foi perdendo grande parte do deu património: fábrica de tratamento
de cortiças, fábricas de adubos, equipamentos industriais e outros, o que
acabou levando a firma a uma difícil situação financeira.
Foi lá que eu comecei a minha vida profissional, mesmo
enquanto estudava e cumpria o serviço militar, aproveitando todos os feriados,
férias e muitos fins de semana, para trabalhar e assim ter um troco para me
movimentar.
Não levou muito tempo em que o relacionamento com este
tio se deteriorasse. Teimoso, não admitia discussões, mesmo técnicas, nem
sugestões, e assim acabei, dentro da mesma empresa, sócio também, por não ter
diálogo com ele. Zanga que praticamente todas as tias acompanharam, tomando o
partido do irmão! Foi pena.
Dali sai, casei, fui para Angola, e o Herold, quase
falido, foi vendido.
Passaram-se uns dez ou mais anos em que praticamente
não tivemos contato, nem com seus filhos, meus primos direitos, sem que
deixasse de ter notícias que os meus irmãos me mandavam.
Ficou sem trabalho, mas um amigo influente conseguiu
nomeá-lo administrador duma grande companhia, com direito a bom carro,
motorista e outras mordomias, e foi também levado a fazer um Curso de
Cristandade. Mudou a cabeça, esqueceu a nossa briga, como eu sempre procurara
fazer, e numa altura que fui a Lisboa, ele fez questão de me ir esperar ao
aeroporto.
E foi dessa vez que me levou direto ao Cartaxo, como
lhe pedi, porque ia cheio de saudades de beber um bom “copo de 3” do
tradicional tinto daquela região!
E nos poucos dias que passei em Lisboa sempre procurou
me acompanhar, e o nosso entendimento estava perfeito. A certa altura, ainda
com uns resquícios de teórica autoridade, lembrou-se de comentar uma atitude
(infeliz) de uma das minhas irmãs.
Não gostei, e disse-lhe: “Tio! Não acredito que queira atirar a primeira pedra. Agora que ela
precisa, mais do que nunca do apoio da família!”
Lembro bem. Comoveu-se. E respondeu-me que estava
errado e que eu lhe havia dado uma lição.
“Não dei
lição nenhuma. Nós os dois que tivemos os nossos desentendimentos,
conhecemo-nos muito bem, e eu sei que não era sua intenção ferir alguém!”
Demos um forte abraço e mantivemos depois, até ao fim
um estreito entendimento. Mas deixou-nos cedo, o tio Alberto de La Rocque Gomes
de Amorim
% % % % %
Só mais umas breves palavras sobre um primo direito do
meu pai, a quem chamávamos também de tio.
Oficial da marinha, muito novo participou na I Guerra
Mundial, piloto-aviador, fez parte da sua vida por Moçambique onde por três
vezes foi Capitão do Porto da Beira. Terminou a carreira como Diretor do
Arquivo da Marinha e no posto de Capitão de Mar e Guerra.
Simpático casal, lembro bem dele, cara de Capitão, mas
sempre sorridente e amável, com cinco filhos das nossas idades, foi também um
escritor das coisas do mar, com dois livros interessantes, ainda hoje
consultados:
- Estaleiros
Navais, em 2 volumes e um manuscrito inédito;
- História do Navio
“Gil Eanes”, o navio hospital que acompanhava os lugres que iam para a
Terra-Nova à pesca da bacalhau;
- O Nome de
Lisboa nos Navios, um interessante opúsculo, assim como
- O Nome da
Guiné nos Navios.
Chamou-se Carlos Gomes de Amorim Loureiro, e hoje a
amizade com a descendência continua muito grande.
4-dez-18
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